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28 de Junho de 2004

Clipping - Folha de São Paulo - Fila para trabalho reúne desesperados de vários países

"Adoro trabalhar com brasileiros, eles vêm desesperados e são um bando de ignorantes"
NUNO
agenciador de mão-de-obra

Desesperados de várias nacionalidades faziam fila diante de uma agência da qual sairiam carros para levá-los ao trabalho numa fábrica de sanduíches frios em Leicester, que emprega imigrantes ilegais.

A quantidade de gente era espantosa. Iraquianos, afegãos, indianos, poloneses, africanos, alguns portugueses e uma massa de brasileiros aguardavam para entrar nos carros. "Estou congelando, não tinha idéia que aqui fazia tanto frio. Não tenho dinheiro nem sei como comprar uma calça aqui", disse Marileide, uma goiana de 43 anos, mostrando a única saia que tinha trazido, de pano bem fininho, sob a garoa, a uma temperatura de uns 3C.

Ninguém da agência pediu documentos. Na fábrica, após os procedimentos de higienização, pusemos botas de borracha e toca descartável e entramos num tipo de frigorífico. Nossa missão era colocar, ininterruptamente, os ingredientes que compunham os sanduíches, os mesmos que eu muitas vezes comprei nas grandes cadeias de supermercados em Londres e que agora corriam freneticamente por uma esteira.

Ao fim das primeiras cinco horas sem nenhum intervalo, comecei a pedir água. Eu já não era capaz de continuar com o trabalho que meus companheiros faziam a cada dia e tive de engolir, envergonhada, o choro de quem nunca precisou viver aquela realidade.

Após dez horas de trabalho, já com o sol raiando e uma música eletrônica no último volume dentro da van que voltava para a agência, olhei um por um dentro daquele carro -todos dormiam, exaustos- e pedi perdão, em silêncio, a cada um deles. A sensação de alívio em denunciar na TV tamanho abuso era inversamente proporcional à culpa por delatar o o meio de sustento dessa gente.

Menos dinheiro

Basta receber o primeiro pagamento para ter uma idéia da exploração. Após todos os descontos -taxas, transporte diário e acomodação-, o trabalhador recebe pouco mais que 2,80 libras (R$ 15,90) por hora.

No dia seguinte, ao voltar com seu primeiro salário -recebido somente depois da segunda semana trabalhada-, a brasileira Marileide me mostra a quantia: 68 libras ($ 386) por três dias no batente. Bem longe do que lhe oferecia o contrato.

"A gente sabe que está sendo explorada, mas, mesmo assim, dá para mandar algum dinheiro para a família", conformou-se.

Numa tarde no hotel onde estavam amontoados, os brasileiros ilegais decidiram fazer uma reunião com Miguel, o português agenciador de mão-de-obra, para cobrar melhores condições de moradia.

Perguntei-lhe, na ocasião, por que os contratos não eram traduzidos em português e se eu podia ter um recibo do aluguel. Ele respondeu: "Você nem existe, teu documento é falso".

Frio arrepiante

No último dia me perdi de José, e me mandaram para Orchard, uma fábrica onde minha função era descascar laranjas. Num local do tamanho de um estádio de futebol, onde centenas de pessoas picavam diferentes tipos de frutas, o frio era arrepiante.

À minha frente, uma mulher com típicas feições indígenas da América do Sul me confirmou ser boliviana e que tinha pago US$ 1.000 pela cidadania portuguesa em Londres. Ela também vivia com brasileiros numa casa provida por Miguel.

Na hora do intervalo, soube que José fora retirado do ônibus por "excesso de contingente". Nosso plano era fugirmos naquela tarde, mas então percebi que estava sozinha.

Corri, ainda de touca, pelas ruas desertas da zona industrial, sem encontrar nenhum telefone pelos arredores. De volta ao frigorífico, encontrei um dos meus conhecidos que tinha um celular escondido. Do banheiro, liguei para José e pedi que viesse me buscar.

Fingi passar mal. Fui levada ao escritório de Waldo, o manda-chuva português-moçambicano que supervisionava a agência de mão-de-obra nas fábricas. Ele me deu dois comprimidos e disse para eu sentar.

Lembro-me de quando vi pela última vez meu amigo do celular. "Não me chame mais de Dione, esse é o meu nome no documento", ele disse. "Meu nome é Fábio", piscou o olho, em tom de confiança. "O meu tampouco é Maria", me deu vontade de falar, com aperto no coração.

Já com o tempo calculado da viagem de José, saí do escritório, com a desculpa de ir vomitar, correndo pelas ruas até avistar o carro que surgia para o meu resgate.

Cheguei a Londres atordoada, com a sensação de ter literalmente saído de uma ficção. Levei um tempo para me adaptar à minha casa e à vida normal. Ao menos deixei duas calças e uma blusa para Marileide. E jurei nunca mais comprar um sanduíche de atum na Marks & Spencer.

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