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30 de Junho de 2004

Clipping - O sentido repersonalizante das relações familiares

"O amor entre pais e filhos conduz a um profundo enriquecimento da vida do adulto e é irrenunciável pressuposto do desenvolvimento do filho" (Lamartine de Oliveira e Francisco Muniz)
Há mais de vinte anos o Professor ORLANDO GOMES, em todas suas obras de referência sempre obrigatórias, já delineava os novos rumos "dos direitos das famílias". Nossas entidades familiares, para o mestre baiano, deixavam a cada dia de serem fundadas na autoridade patriarcal - com a temível figura do pater familiae - para tornarem-se sociedades mais igualitárias, sobretudo com o crescente papel da mulher no seio familiar e a abertura das relações e convivências entre pais e filhos, no influxo de relações construídas na afetividade.

Este sentido repersonificador e despatrimonializante, também, se reflete na Constituição da República quando seu artigo 226 proclama que a "família é a base da sociedade" e no artigo 229 ao prescrever o dever dos filhos em relação aos pais de "assistência na velhice, carência e enfermidade". Tradução encontrada no Código Civil de 2002, no instante que as relações paterno-filiais sofrem profundas transformações.

Porém, inquieta-nos a questão quando tentamos descobrir em que momento esta evolução poderá ser firmemente aceita em nossos Tribunais.
De início, lembremo-nos de duas passagens de CALAMANDREI descrevendo as atuações de juizes e advogados. Sobre aqueles, o jurista italiano observa: "a missão do juiz é tão elevada em nossa estima, a confiança nele é tão necessária, que as fraquezas humanas, que não se notam ou não se perdoam em qualquer ordem de funcionários públicos, parecem inconcebíveis num magistrado.

Não falemos da corrupção ou do favoritismo, que são delitos; mas até mesmo as mais leves nuances de preguiça, negligência, de insensibilidade, quando se encontram num juiz, parecem graves culpas".

Portanto, o verdadeiro magistrado, honrando sua toga e o mister quase divino a que se refere o autor, deve estar atento às transformações, principalmente repersonalizantes nas relações entre pais e filhos, abolindo o conceito secular de patrimonialização destas.

Do mesmo modo, o autor ao tratar das funções do advogado, ensina "o advogado age sobre a realidade como o historiador, que recolhe os fatos de acordo com critérios de escolha por ele preestabelecido, e despreza os que, à luz desse critério, parecem-lhes irrelevantes. Também o advogado, como historiador, trairia seu ofício se alterasse a verdade contando fatos inventados; não o trai enquanto se limita a colher e coordenar na realidade bruta apenas aqueles aspectos vantajosos à sua tese." (1)

De igual modo, também o advogado deve ter presente o já citado sentido repersonalizante das relações familiares, igualmente rechaçando a primazia patrimonial em prol das relações socioafetivas.

Nesta trilha segue o direito civil, notadamente os direitos das famílias. Rompendo as antigas tradições. Fundando-se mais nos deveres de confiança e mútuo respeito, deixando de ser unicamente um agente econômico, tanto aqui como no exterior.

JEAN CARBONNIER, em sua última atualização de sua principal obra, narra que a sociologia jurídica da Comunidade Européia e a Corte de Estrasburgo não suportam mais a idéia geral de proteção exagerada dos filhos e da mulher, buscando novo sentido e estilo de vida a esta parte do direito em todas as nações que a compõem.(2)

Igualmente, em nosso País, desde há muito, o Professor PAULO LUIZ NETTO LÔBO já ensinava "Não deve a proteção do patrimônio suplantar a proteção das pessoas" (3).

Escancaram-se, com isso, as portas para o valor sócio-afetivo das relações familiares. Abandona-se o conceito romano de pater is est, sendo muito mais relevante a troca e o influxo de valores morais e sociais entre os membros do núcleo familiar, para que este possa desempenhar seu papel constitucional. Firmam-se várias modalidades de família e podemos exemplificar que ao lado da família de direito (concebida a partir do casamento válido), temos a família mononuclear (formada por um dos pais com seus filhos), as famílias de fato (surgidas a partir da proteção constitucional e legal das uniões estáveis) e até mesmo as famílias concebidas com base na conjugação de pessoas do mesmo sexo (que, muito embora ainda não tenha regulamentação legal, não podemos fechar os olhos para sua existência, como cega é a Justiça).

Os doutrinadores mais progressistas afastam cada vez mais a simples existência de um DNA, dentro do sentido do bio-direito, para afirmar que as relações sócio-afetivas são muito mais importantes que o estado biológico das pessoas, colocando-se em xeque até a presunção mater semper certa est. Fala-se não somente no "direito ao pai", referindo-se ao genitor masculino.

A Professora GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA elucida: "O que quero dizer é que recepciono melhor a idéia de que ele devesse ser compreendido como "direito aos pais", incluindo-se, assim, também e por certo, o direito à mãe" (4).

Por óbvio, todas estas novas visões não devem ser esquecidas pelos nossos julgadores ao se defrontarem com embates em que pais e filhos sejam atores, entendendo, também por óbvio, que nesse contexto incluem-se o genitor e a mãe, relegando, definitivamente, a intangibilidade dos sentidos de pater is est e mater sempre certa est.

No mesmo diapasão, vislumbrando a primazia e a necessidade sócio-afetiva em detrimento das relações econômicas, após ensinar a imperiosidade sempre latente e recíproca de "assistir, criar e educar", o Professor LUIZ EDSON FACHIN ensina: "O valor sócio-afetivo da família, uma realidade de existência. Ela se "bonifica" com o transcorrer do tempo, não é um dado, e sim um construído. A posse de estado de filho, mais que belas palavras. Ausente do texto codificado, presente na base informativa de reformas do direito estrangeiro, a posse de estado de filho tem nos seus elementos constitutivos um espelho: nomen, tractus e fama.

A visibilidade da relação ascendente-descendente, e vice-versa. Um tema parco na jurisprudência brasileira. Os filhos, filhos são; importa menos a origem ou ascendência. Não raro, o juízo pejorativo tomava contra os filhos a "mácula" da relação dos pais" (5).

Por isto, podemos afirmar com precisão, seguindo as lições de ROBERTO LYRA FILHO, Professor Emérito de nossa Faculdade, que o Direito se vinga na atuação de advogados e juízes destemidos e progressistas, prontos para transformá-lo, dando-lhe o rumo das novas realidades sociais.

Igualmente, nas palavras do também ex-Professor de nossa Academia JOÃO BAPTISTA VILELA: "A função do poder-dever atribuído aos pais em relação a seus filhos não está em guardá-los de todo mal, nem convertê-los em cópias de seus guardiões, senão em assisti-los e encaminhá-los à senhoria das próprias vidas. Em conduzi-los para autonomia de si mesmos." (6).

As relações familiares, - principalmente entre pais e filhos, bem como filhos e pais -, estão fundadas, e assim devem permanecer, nos conceitos de afetividade, moral e ética, para que, no novo milênio, nossa sociedade possa ser mais justa e pluralista. Calcada, como já dito, nas relações socioafetivas e não em conceitos patrimonializantes. Mesmo porque, como novamente aponta PAULO LUIZ NETTO LÔBO "o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue". (7).

Para tanto, espera-se uma nova postura dos magistrados ao julgar esta nova faceta dos "direitos da família", tão importantes para a sobrevivência do Estado Social a que se refere LOCKE.

Finalizo, da mesma forma, - porém, aplicando a presunção mater semper certa est e a afetividade da filiação -, parafraseando a Professora GISELDA HIRONAKA: "Ah, eu sei que ela é minha mãe. E isto me comove."

Autor: Frederico Henrique Viegas de Lima é Doutor em Direito pela Universidad de Valladolid - Espanha. Ex-Diretor da Faculdade de Direito da UnB- Universidade de Brasília. Professor Adjunto de Direito Civil da UnB- Universidade de Brasília

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