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03 de Setembro de 2009

Artigo - A questão da outorga conjugal - Por Flávio Tartuce

Alguns pontos do art. 1.647 do CC
O art. 1.647 do Código Civil de 2002 especifica a necessidade de outorga conjugal para determinados atos e negócios jurídicos. Trata-se de um dos mais importantes comandos legais do Código Civil de 2002, prevendo hipóteses de legitimação, capacidade especial exigida por lei para alguns fatos jurídicos. No caso, a lei prevê a necessidade de concordância do outro cônjuge, manifestada por uma autorização para o ato. O instituto se situa no plano da validade do negócio jurídico, envolvendo a capacidade (art. 104, inc. I, do CC). Por isso é que a lei prevê como conseqüência da falta da outorga conjugal a anulabilidade do ato correspondente (art. 1.649 do CC), não havendo o eventual suprimento judicial (art. 1.648 do CC).

Como primeiro esclarecimento técnico, deve-se utilizar a expressão genérica outorga conjugal, a englobar tanto a outorga marital (do marido) quanto a outorga uxória (da esposa, do latim uxor). Didaticamente deve ser evitado mencionar apenas a última, o que traz o sentido de discriminação que constava da codificação anterior.

A outorga conjugal é necessária para os atos elencados nos regimes da comunhão parcial de bens, da comunhão universal de bens e da participação final nos aquestos (em regra, salvo a exceção do art. 1.656 do CC). A norma dispensa a outorga no regime da separação absoluta, o que causa perplexidade, uma vez que a separação de bens pode ser legal (art. 1.641 do CC) ou convencional (arts. 1.687 e 1.688 do CC). Então, qual regime seria esse, o da separação absoluta? Respondendo, não há controvérsia a respeito do regime da separação convencional de bens, uma vez que o art. 1.687 é claro no tocante à livre disposição dos bens. A polêmica está na separação legal ou obrigatória, girando em torno da incidência ou não da antiga Súmula 377 do STF, pela qual são comunicáveis no regime da separação legal os bens adquiridos durante o casamento, e pelo esforço comum. Para os que entendem que a súmula ainda tem aplicação, como é o nosso caso, somente haverá separação absoluta na separação convencional, uma vez que na separação legal comunicam-se bens que foram havidos durante o casamento. Para os que concluem pela não incidência da ementa, haverá separação absoluta tanto na separação convencional quanto na legal. Destaque-se que a questão é altamente controvertida, havendo divergência em relação ao posicionamento do co-autor José Fernando Simão, que entende pela não aplicação da súmula (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Volume 5. Direito de Família. São Paulo: GEN/Método).

De toda a sorte, vejamos os atos que exigem outorga conjugal, estudando-os um a um.

De acordo com o inc. I do art. 1.647, a outorga conjugal é necessária para os atos de disposição direta de imóveis, como a compra e venda e a hipoteca. Dessa sorte, se casado é o vendedor, haverá necessidade da vênia uxória. A norma, por razões óbvias, não se aplica ao comprador, uma vez que não se justifica a restrição.

Ato contínuo, exige-se a outorga conjugal para se pleitear, como autor ou réu, acerca de bens imóveis ou direitos sobre os mesmos (art. 1.647, inc. II, do CC). A regra é processual, envolvendo legitimidade, capacidade específica para a demanda (art. 3º do CPC). Assim, interpretando-se o art. 1.649 do CC, a melhor conclusão é que a falta da outorga conjugal gera a anulabilidade da demanda, o que pode ser suprida. Há clara relação entre o dispositivo e o art. 10 do CPC, que exige o consentimento do outro cônjuge somente para propor ações que versem sobre direitos reais imobiliários. A consequência prevista no Estatuto Processual, não havendo suprimento judicial, é a invalidade do processo (art. 11 do CPC), no sentido de sua anulabilidade, pelo que consta do Código Civil de 2002 (arts. 1.647, inc. II, e 1.649).
Também é necessária a outorga conjugal para prestar fiança ou aval (art. 1.647, inc. III, do CC). A necessidade de outorga para a fiança ou caução fidejussória, contrato de garantia pessoa, já constava da codificação anterior. A grande novidade é a introdução da previsão do aval, forma de garantia pessoal para os títulos de crédito (art. 1.647, inc. III). A doutrina especializada no direito empresarial tem interpretado que nos casos de falta de outorga conjugal no aval não se pode concluir pela sua anulabilidade, como consta expressamente do art. 1.649 do CC; mas, sim, pela mera ineficácia do título em relação ao cônjuge que não consentiu (Enunciado n° 114 da I Jornada de Direito Civil). A conclusão é pertinente - apesar de contra legem -, uma vez que a solução de invalidade entra em colisão com o princípio de plena circulação dos títulos de crédito.

A outorga conjugal é necessária ainda para a doação de bens comuns de qualquer natureza, sejam móveis ou imóveis, o que tende a proteção da meação do outro consorte (art. 1.647, inc. IV, do CC). A norma dispensa a outorga na doação remuneratória, que não constitui uma liberalidade propriamente dita, mas mero ato de remuneração por uma prestação de serviços (art. 540 do CC). Cite-se, por exemplo, a doação de um veículo ao médico que salvou a vida do filho do doador.

Superada a análise dos atos que exigem a outorga, é interessante verificar que o art. 1.647 do CC é típico exemplo de norma de exceção, restritiva da autonomia privada e, diante da proteção constitucional da liberdade, fundada na dignidade humana (art. 1º, inc. III, da CF), não deve ser aplicada por analogia à união estável.

Como outrora exposto, a falta da outorga do cônjuge traz como decorrência a nulidade relativa ou anulabilidade do ato ou negócio jurídico celebrado em desrespeito ao art. 1.647 do CC, não havendo suprimento judicial. Essa foi a opção do legislador de 2002, o que geralmente ocorre quanto às questões relativas ao plano da validade dos fatos jurídicos. A anulabilidade fica confirmada pela previsão de prazo decadencial de dois anos para a correspondente ação anulatória, fluindo a decadência a partir da dissolução da sociedade conjugal.

Encerrando o presente artigo, a respeito do direito intertemporal, anote-se que pelo Código Civil de 1916, a falta da outorga conjugal gerava a nulidade absoluta do ato correspondente, conforme se podia extrair dos seus arts. 235, 242 e 252. O último dispositivo utilizava expressamente a palavra nulidade, apesar de forma atécnica prever um prazo decadencial. Como a questão da outorga conjugal está no plano da validade do negócio, deve incidir o tão aclamado art. 2.035, caput, do CC em vigor, pelo qual quanto ao plano da validade deve ser aplicada a norma do momento da celebração. A conclusão é de que, se o negócio correlato foi celebrado na vigência do CC/1916 sem a outorga conjugal, será nulo (art. 252). Por outra via, se o negócio for constituído na vigência do CC/2002, será anulável (art. 1.649).

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