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19 de Outubro de 2012

Artigo - Sobre o artigo "Lei, casamento gay e moral" - Por Marcelo Tancredi

Gostaria de fazer alguns comentários sobre o artigo de lavra do Juiz de Direito André Gonçalves Fernandes, publicado no site da Arpen.

O texto pergunta, preliminarmente, se é possível "que o Estado reconheça o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com a consequente alteração da ideia de família, sem adentrar em controvérsias morais sobre o propósito natural do casamento e o status moral da homossexualidade".

A resposta só pode ser "não"; isto é, o Estado não pode abandonar a dimensão ética ou moral, não só no labor legislativo, mas em toda a sua atuação. Aliás, qualquer ato, individual ou coletivo, deve orientar-se por valores, hierarquizando-os e prestigiando-os. A Constituição Federal o faz repetidamente, em sua óbvia dimensão axiológica.

Não é disso, porém, que se trata.

O articulista parece referir-se, em seu artigo, menos à Moral do que a uma moral. Só é possível afirmar que a homossexualidade é imoral ou antinatural com supedâneo em argumentos de índole, digamos, dogmático-confessional. Senão vejamos.

Quem defende que o casamento tem como finalidade inafastável a procriação deveria, por coerência, reivindicar sua proibição aos casais heterossexuais não-férteis (por exemplo, por doença ou opção). Ademais, há parentalidades diversas da biológica, como a constituída por adoção, perfeitamente possível aos homoafetivos. Quem disse, aliás, que a parentalidade biológica é impossível aos gays? Estes, com efeito, dispõem das mesmas técnicas de fertilização artificial acessíveis à população em geral.

A procriação deve ser tida como meta do casamento enquanto instituição, não como obrigação de cada casal, que pode, sem dramas éticos, optar pela infertilidade; ou optar, por motivos racionais, em recorrer à adoção ou fertilização artificial. Urge lembrar que não há no planeta déficit populacional, ao contrário: a superpopulação é, esta sim, problema a ser solucionado.

Mesmo doutrinas religiosas conservadoras reconhecem ao casamento outra finalidade: o auxílio mútuo entre os cônjuges, isto é, aquela especial disposição de solidariedade dirigida ao enfrentamento comum dos desafios existenciais. Ora, atingir tal finalidade é perfeitamente possível aos casais homoafetivos.

A antropologia sabe sobejamente que a espécie humana é, constante e invariavelmente, constituída de uma maioria heteroafetiva e uma minoria homoafetiva. Eis aí o "natural". Não há perigo de declínio populacional, nem de cooptação de uma comunidade pela outra. Trata-se de reconhecer a existência e a especificidade dos homoafetivos como minoria, reconhecendo-se-lhes direitos básicos, como o de casar e o de constituir família. Sim, a justiça aristotélica, em seus aspectos comutativo e distributivo, consiste em "dar a cada qual o que é seu". Duvido que Aristóteles opor-se-ia ao reconhecimento dos direitos da população homoafetiva, tendo em vista, entre outras razões, a onipresente aceitação da homossexualidade entre os gregos antigos.

A ideia de família não está, como teme o articulista, fenecendo; ao contrário, vê-se enriquecida pela mutação constitucional prestigiada pelo Supremo Tribunal Federal. Arranjos até recentemente denegridos - ou, pior, relegados ao silêncio, como se não existissem! - adquirem feição jurídica. Há famílias sem casamento, adotivas, monoparentais, anaparentais ou constituídas por casais homoafetivos. A poligamia, a poliandria e o incesto parecem postos em uma categoria à parte, rejeitados pela sociedade brasileira justamente por considerações ético-morais, o que evidencia a força de tais considerações.

Creio que toda minoria longamente desconhecida ou espezinhada comete, vez ou outra, exageros verbais reivindicativos, mas isso parece estar na dinâmica do processo de transformação social. O que está em jogo, antes que "interesses", são direitos, não meramente pessoais ou patrimoniais, mas Direitos Humanos, tão importantes que o Direito Internacional até nega aos Estados a possibilidade de melindrá-los.

A ministra aposentada do STF, Ellen Grace, afirmou, durante o julgamento da ADIn 4277 e da ADPF 132, que muitos pensavam que a época das declarações de direitos havia passado e que se tratava doravante tão-somente de concretizar direitos já definidos. À guisa de resposta, concluiu que a questão homoafetiva provava a persistência daquela época: ainda há direitos a serem constitucionalmente declarados, em uma perspectiva pluralista e democrática.

Autor: Marcelo Tancredi é Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais em Cunha(SP).

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