Notícias

27 de Abril de 2013

Artigo - Fertilização in vitro expõe conflito entre cortes - Por Ana Paula Carvalhal

A vida humana é inviolável. Este é o teor do artigo 21 da Constituição da Costa Rica e foi com base nele que a Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica entendeu que as atuais técnicas de fertilização in vitro (FIV) violam o direito à vida e a dignidade humana.

Os tratados internacionais de direitos humanos e as ordens constitucionais dos estados democráticos protegem a vida humana e determinam sua inviolabilidade. A grande questão que se coloca aos juristas é determinar quando nasce esse direito inviolável, ou melhor, quando começa a vida humana? A par das indagações de índole filosófica, o progresso científico e tecnológico põe em cheque nossos conceitos sobre a vida e a morte. No campo da reprodução humana, o desenvolvimento de técnicas de fertilização in vitro, ao esmiuçar o processo da concepção, apresenta novos desafios éticos e jurídicos, demandando sua normatização.

A regulamentação das técnicas de reprodução assistida operou-se na Costa Rica por meio do Decreto Executivo 24029-S, de 3 de março de 1995, que tratou da técnica de fertilização in vitro nos artigos 9o a 13[1]. De 1995 a 2000, nasceram na Costa Rica 15 crianças por meio da FIV, procedimento realizado por uma entidade privada denominada Instituto Costarriquense de Infertilidade.

No entanto, em 15 de março de 2000, a Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça do Estado da Costa Rica, ao analisar a ação de inconstitucionalidade promovida pelo cidadão Hermes Navarro Del Valle[2], por meio da Resolução 2000-02306, declarou a inconstitucionalidade do Decreto Executivo, sustentando, inclusive, que nenhuma outra norma poderia vir a autorizar a realização da FIV enquanto a ciência não desenvolvesse novas técnicas capazes de evitar danos aos embriões[3]. Em suma, a decisão considerou que a fertilização in vitro, a partir de técnicas que levam à concepção em laboratório, viola o direito à vida e à dignidade humana, protegido desde a sua concepção, ao permitir a morte de embriões.

Como consequência da decisão da Corte Suprema, o Estado da Costa Rica passou não só a proibir tal técnica de reprodução, como também a criminalizar sua prática. Em janeiro de 2001, Gerardo Trejos, em nome de Ana Victoria Sánchez Villabolos e outros, apresentou uma denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra a Costa Rica, pedindo sua responsabilização internacional em razão da Resolução 2000-02306 da Sala Constitucional da Corte Suprema.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após investigação, considerou que houve violação aos direitos assegurados pelos artigos 11.2 (proteção da vida privada e familiar), 17.2 (direito à formar família) e 24 (igual proteção da lei) da Convenção Americana e solicitou a responsabilização internacional da Costa Rica à Corte Interamericana por conta da decisão da Corte Suprema daquele país.

Em 2010, diante das recomendações da Comissão Interamericana, o Poder Executivo da Costa Rica apresentou à Assembleia Legislativa projeto de lei objetivando permitir e regulamentar a realização de fertilização in vitro. No entanto, por força ainda da Resolução da Corte Suprema em relação à matéria, o projeto não foi aprovado.[4] Segundo as provas apresentadas à CIDH, a Costa Rica é o único país no mundo que proíbe de maneira expressa a FIV.[5]

Em 28 de novembro de 2012, foi proferida a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após exame das provas apresentadas, reconheceu-se a existência de um direito à vida privada e familiar e a formar uma família, protegido pela Convenção Americana, e que a proibição geral da prática da fertilização in vitro viola tais direitos. Dessa forma, a corte responsabilizou o Estado da Costa Rica determinando, inclusive, que fossem adotadas medidas administrativas e legais para permitir a realização da FIV por aqueles que desejarem.

O que chama atenção é que as duas cortes chegaram a soluções diametralmente opostas a partir do exame de uma mesma norma: o art. 4.1 da Convenção Americana:
"Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente."

A grande divergência gira em torno do conceito de "concepção". E, a verdade é que o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida tornaram mais complexo o seu significado.

Como restou consignado na sentença da CIDH, as técnicas ou procedimentos de reprodução assistida são um grupo de diferentes tratamentos médicos utilizados para ajudar pessoas a engravidar que incluem "a manipulação, tanto de óvulos como de espermatozoides, ou embriões". Entre essas várias técnicas encontra-se a FIV, a transferência de embriões, a transferência intratubária de gametas, a transferência intratubária de zigotos, a transferência intratubária de embriões e o aluguel de útero.

Pela FIV, os óvulos de uma mulher são removidos de seus ovários, fecundados com o esperma em um procedimento de laboratório e, uma vez concluída a fecundação, o embrião é colocado no útero da mulher. Esta técnica é utilizada quando a infertilidade decorre de obstrução das trompas de falópio, infertilidade masculina ou causas desconhecidas. A FIV segue as seguintes fases: 1) indução da ovulação; 2) aspiração dos óvulos; 3) inseminação dos óvulos com os espermatozoides coletados; 4) observação do processo de fecundação e incubação dos embriões; 5) transferência do embrião ao útero materno. O desenvolvimento embrionário nesta técnica se desenvolve ao longo de cinco dias: fecundam-se os óvulos maduros para que se transformem em zigotos; nas primeiras 26 horas o zigoto se divide em duas células, que se dividem em quatro células no segundo dia e em oito células no terceiro dia; no quarto dia, temos o desenvolvimento de uma mórula (primeiro estágio de desenvolvimento do embrião); no quinto dia chega-se ao estágio de blastocisto (camada de células que origina o embrião). A transferência pode ocorrer do segundo ao quinto dia, dependendo das características morfológicas da divisão celular observada no laboratório.

A Sala Constitucional da Corte Suprema da Costa Rica, com base no art. 4.1 da Convenção Americana, entendeu que a vida inicia-se na concepção, entendendo como concepção "a união entre o gameta masculino e o feminino", "momento em que é individualizada uma nova vida do ponto de vista genético". Assim, na medida em que muitos embriões são "destruídos, voluntaria ou involuntariamente" durante o procedimento, por "imperícia do médico ou por inexatidão da técnica", ocorreriam "violações ao direito à vida".

Por sua vez, a Corte Interamericana, invocando sua competência de última intérprete da Convenção, consignou que "o termo `concepção´ não pode ser compreendido como um momento ou processo excludente do corpo da mulher, dado que o embrião não tem nenhuma possibilidade de sobrevivência se a implantação não ocorrer". Entendeu que a FIV demonstra que pode decorrer um tempo entre a união do óvulo com o espermatozoide e a sua implantação, constatando que a definição de "concepção" dos redatores da Convenção Americana mudou.

Dessa forma, firmou o entendimento de que a concepção só ocorre com a implantação, razão pela qual não se pode invocar o artigo 4.1 da Convenção em momento anterior. Ainda, explicou que a expressão "em geral" permite inferir que o direito à vida não é absoluto, mas gradual a partir do seu desenvolvimento.

Do confronto entre a Corte Suprema da Costa Rica e a Corte Interamericana de Direitos Humanos resultou o entendimento de que há um direito, amparado pelo Pacto de San José da Costa Rica, de utilização das técnicas de fertilização in vitro pelos cidadãos que o desejarem e que tal direito não pode ser negado de forma absoluta pelo Estado sob pena de violação do direito à integridade física, liberdade e vida privada e familiar.

Assim, com base nas competências atribuídas pela Convenção (art. 2 e 63), a Corte Interamericana determinou a cessação imediata da proibição da FIV na Costa Rica, aplicando as seguintes medidas de reabilitação, satisfação e garantias de não repetição, de forma a condenar o Estado a:

1) arcar com tratamento psicológico por quatro anos às vítimas impedidas de realizar a técnica de FIV;

2) publicar, no prazo de seis meses, o resumo oficial da sentença da Corte no Diário Oficial e um jornal de ampla circulação nacional e que a sentença integral fique disponível pelo período de um ano no site oficial do poder judiciário;

3) adotar as medidas necessárias para que, com a maior brevidade possível, fique sem efeito as medidas que proibiam a prática da FIV, de modo que as pessoas que desejem utilizá-la possam fazê-lo sem impedimentos, devendo informar em seis meses as medidas adotadas;

4) regulamentar, com brevidade, os aspectos que considerar necessários para a implementação da FIV, tendo em conta os princípios estabelecidos na sentença da Corte, devendo estabelecer sistemas de inspeção e controle da qualidade das instituições e profissionais qualificados que desenvolvam esse tipo de técnica, devendo informar anualmente sobre as medidas adotadas;

5) incluir a técnica de FIV dentre seus programas e tratamentos de infertilidade, devendo informar em seis meses as medidas adotadas para tanto;

6) implementar programas e cursos permanentes de educação e capacitação em direitos humanos, direitos reprodutivos e não discriminação, dirigidos a funcionários judiciais de todas as áreas e hierarquia, devendo fazer especial menção a presente sentença;

7) pagar o valor de US$ 5 mil para cada pessoa considerada vítima perante a Corte a título de indenização por danos morais e US$ 20 mil a título de dano imaterial.

Portanto, tem-se, aqui, exemplo de promoção de direitos fundamentais decorrente da interação entre ordens jurídicas doméstica e internacional, inclusive com contraste e superação da decisão Corte Suprema nacional. A afirmação da declaração de direitos no plano supraestatal, pelo influxo de sua corte de tutela, repercutiu na ordem interna da Costa Rica, determinando a conformação do direito doméstico à jurisprudência internacional.
________________________________________
[1] Decreto Ejecutivo 23029-S disponível em: http://www.pgr.go.cr/scij/scripts/TextoCompleto.dll?Texto&nNorma=25469&nVersion=26946&nTamanoLetra=10&strWebNormativa=http://www.pgr.go.cr/scij/&strODBC=DSN=SCIJ_NRM;UID=sa;PWD=scij;DATABASE=SCIJ_NRM;&strServidor=\\pgr04&strUnidad=D:&strJavaScript=NO.
[2] O art. 75, § 2o., da Lei da Jurisdição Constitucional da Costa Rica permite que no caso de defesa de interesses difusos, disponível em: http://www.tse.go.cr/pdf/normativa/leydejusridiccion.pdf
[3] Resolución 2000-02306, de 15 de marzo del 2000, disponível em: http://wvw.nacion.com/ln_ee/2000/octubre/12/sentencia.html.
[4] Comentários ao projeto de lei, histórico da matéria na Costa Rica e razões para sua não aprovação: http://www.asamblea.go.cr/Centro_de_informacion/Centro_Dudas/Lists/Formule%20su%20pregunta/Attachments/691/fe5%20(2).pdf
[5] O Brasil não possui legislação regulamentando as técnicas de reprodução assistida. As técnicas são realizadas com base na Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.358/92 e na Resolução de 2006 da ANVISA que estabelece condições técnicas para o funcionamento de bancos de semen, óvulos e embriões. A Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) tratou da doação de embriões gerados pela fertilização in vitro para fins de pesquisas clínicas. Por outro lado, a Lei 11.935/2009 prevê que os planos de saúde cubram a FIV.

Autora: Ana Paula Carvalhal é procuradora da Fapesp e professora de Direito Constitucional da FMU. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e doutoranda em Direito do Estado pela USP.

Assine nossa newsletter