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05 de Outubro de 2015

Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento

A revolução sexual e de costumes repercutiu e continua repercutindo fortemente no Direito de Família e Sucessões. Não é mais necessário casamento para legitimar as relações sexuais, e nem mesmo é necessário sexo para haver reprodução. As técnicas de reprodução assistida têm proporcionado o nascimento de famílias parentais, e a sexualidade vista pela ordem do desejo revolucionou o conceito de família conjugal. Isto significa que as pessoas estão mais livres para estabelecerem seus vínculos afetivos. E assim, a família está mais autêntica e cada vez mais plural, apesar das resistências de alguns, e do inoportuno PL 6.583/2013 aprovado em Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 24 de setembro de 2015, que tenta excluir direitos e avanços sociais ao dizer que famílias de pessoas do mesmo sexo não podem ser consideradas famílias. Totalmente na contramão da história.
 
Esta mudança de costumes obriga-nos a reconstruir conceitos jurídicos, para que a liberdade continue sendo o pilar do Direito Civil. Namoro, união estável e casamento têm limites muito próximos um do outro e em razão desta linha tênue entre eles, os tribunais brasileiros estão abarrotados de processos judiciais, cuja discussão central é a diferença e semelhança entre eles. Os tradicionais elementos caracterizadores da união estável já não são mais como antigamente: viver sob o mesmo teto e ter filhos, por si só, já não caracterizam ou descaracterizam uma união estável. Há união estável, e até casamento, em que os casais optam por não ter filhos ou viver em casas separadas. E pra confundir mais ainda, há namorados que moram juntos com o propósito de dividir despesas, e não de constituir família. Há também casais de namorados, cada um vivendo na casa de seus respectivos pais, que tiveram filho sem planejar e sem a intenção de constituir uma família conjugal.
 
No cerne do conceito de união estável está a ideia de núcleo familiar conjugal. E nem é como a doutrina tradicional vinha dizendo: a intenção ou objetivo de constituir família. É que na união estável, nem sempre as pessoas têm a intenção de constituir um núcleo familiar, como acontece no casamento. Na maioria das vezes começa como um namoro, sem intenção de família e o tempo vai transformando aquela despretensiosa relação em entidade familiar. Portanto a união estável é ato-fato jurídico. Daí a grande dificuldade de se estabelecer o termo inicial da união. Às vezes nem mesmo as partes sabem quando o namoro se transformou em união estável, se foi quando um levou a escova de dentes (objeto de grande intimidade) para a casa do outro, ou se quando começou a deixar roupas na casa do outro etc. Claro que esta confusão pode ser evitada se fizerem um contrato escrito deixando claras essas regras. E entendo até que este contrato pode ter efeito retroativo, da mesma forma e lógica em que se pode mudar o regime de bens no casamento.
 
Um outro grande problema, também, está em demarcar os limites e diferenças entre união estável e casamento. A regulamentação de união estável é necessária e eliminou injustiças históricas ao proteger a parte economicamente mais fraca. Mas trouxe consigo um paradoxo: quanto mais regulamenta, mais a aproxima do casamento; quanto mais próxima do casamento for, eliminando as diferenças entre um instituto e outro, mas distancia a união estável de sua ideia original. Se em tudo ela for igual ao casamento, ela deixa de existir e acaba com a liberdade das pessoas de escolherem entre um instituto e outro. Se escolho constituir minha família conjugal pela união estável é porque optei por esta via e não a outra. Se em tudo forem iguais, não terei mais duas vias de escolha, pois estarei praticamente casado, mesmo não querendo. E isto é excesso de intervenção do Estado na vida privada do cidadão.
 
Um dos objetivos do Estado Democrático de Direito é garantir aos cidadãos a liberdade de escolha de seus múltiplos projetos pessoais para a busca de sua felicidade. E o Direito Privado, com seu sistema de regras e princípios, é o amparo e a base do exercício desta autonomia de vontade. Casamento e união estável são duas formas de constituir famílias. Uma não é superior ou inferior à outra, nem melhor nem pior. Apenas diferentes. E ainda bem que há diferenças.
 
O aspecto mais polêmico da igualdade e diferença entre os dois institutos está na sucessão hereditária, estabelecida pelo Código Civil de 2002: o cônjuge é herdeiro necessário e também concorrente, e o companheiro(a)/convivente só herda na sucessão legitima de bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável (artigo 1.790). A intenção do legislador pode até ter sido valorizar mais o casamento, já que o então denominado “concubinato” sempre foi considerado uma sub família. Mas por sorte, ou ironia do destino acabou acertando na medida em que demarcou essas diferenças.
 
Equiparar em tudo estas duas formas de família significa acabar com a união estável, interferir drasticamente no desejo e autonomia de escolher uma forma de constituir família que não seja o casamento. Ainda bem que o companheiro/convivente não é herdeiro necessário e nem herdeiro concorrente. Pelo menos resta uma forma de constituir família em que o sujeito tem a liberdade de destinar seus bens após a morte para quem bem entender (se não tiver filhos). Em 16 de setembro de 2015 a Procuradoria Geral da República emitiu parecer neste mesmo sentido para o Recurso Extraordinário 878.694, (sob relatoria do ministro Luis Roberto Barroso) em que a discussão central é exatamente esta e que em breve o STF se posicionará.
 
Um passo adiante no discurso da igualdade de direitos é exatamente a consideração  dessas diferenças. E na liberdade de escolha do diferente, está a responsabilidade do sujeito por esta escolha. Em outras palavras, e parafraseando Jacques Lacan, o sujeito é responsável pelas suas escolhas. Uma forma e outra de constituir família tem vantagens e desvantagens. O que o Direito deve garantir é a liberdade das pessoas de escolherem esta ou aquela maneira de constituir família. Se não houver diferenças entre essas duas formas, não haverá mais liberdade de escolha.
 
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM.

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