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21 de Maio de 2018

Clipping - R7 - O direito de existir: mutirão em SP atende população sem documentos

Defensoria Pública de São Paulo e APADEP realizaram mutirão de documentação pessoal no Pateo do Collegio, marco zero da capital
A vendedora Andreia de Oliveira não pôde registrar a filha de cinco anos no cartório, não pôde se casar, tampouco pôde fazer qualquer tipo de viagem nos últimos 17 anos. Isso porque não possui documento de identidade nem certidão de nascimento — sendo assim, Andreia oficialmente não existe para o Governo Federal.

A vendedora faz parte do grupo de três milhões de pessoas que não possuem certidão de nascimento no Brasil, como aponta o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Desses, mais de 132 mil são crianças de 0 a 10 anos.

Perdendo a identidade

A história de Andreia começa cedo, quando era adolescente e ainda morava na cidade natal de Tome-Açú, interior do Pará, aos 17 anos. “Não me dava muito bem com a minha família, então resolvi viver minha vida”, conta ao R7. Nesse momento, ela aceitou a oferta de um namorado mais velho para ir trabalhar na cidade japonesa de Fukushima. “Ele trocou o meu nome na minha certidão para que fosse possível ir para o Japão com ele e sumiu com o meu documento”.


“Há 17 anos eu sou ninguém”
Andreia de Oliveira

A vendedora morou no país oriental por cinco anos: “foi um tempo bom”, avalia. Ao voltar para o Brasil, desembarcou em São Paulo e por aqui ficou até então. Nesse percurso, também perdeu o RG. “Há 17 anos eu sou ninguém”, diz em voz baixa, com as mãos entrelaçadas e bem apertadas.

Trabalha desde então em bicos: “Faço faxina ali, vendo mercadoria em ruas por lá, e assim vou vivendo”. Andreia se desdobra porque também tem uma filha de cinco anos para criar, chamada Maria Eduarda — também considerada ninguém pelo governo, uma vez que não possui certidão de nascimento.

Anos atrás, a criança foi recolhida pelo Conselho Tutelar e tirada das mãos de sua mãe em uma rua do centro da maior cidade da América Latina. A pequena Maria Eduarda ficou longe da vendedora durante duas semanas, Andrea diz ter conseguido reverter a situação pela misericórdia dos agentes.

Enquanto a mãe tenta se tornar cidadã brasileira, mesmo aos 40 anos de idade, a menina está aos cuidados da avó paterna, em Diadema, na região metropolitana paulista.

Andreia recebeu hoje a ajuda de defensores que fizeram um mutirão no Pateo do Collegio, marco zero de São Paulo, para aqueles que pretendem obter, regularizar ou retificar os documentos pessoais. “Eu tenho esperança de que dessa vez vai dar certo”, sorri. A vendedora já foi negada por atendentes do Poupatempo e Cartório, os quais, segundo ela, dizem que não podem lhe ajudar.

O perfil dos desemparados pelo governo são aqueles que estão em situações de vulnerabilidade, como os povos indígenas, comunidades quilombolas, povos ciganos, ribeirinhos, imigrantes, população de rua, trabalhadores rurais e grupos LGBTT, aponta o coordenador administrativo da APADEP (Associação Paulista dos Defensores Públicos) Marco Chibebe. “E por isso a importância do evento, de dar voz a quem não tem voz. De dar nome a quem não tem nome”, diz.

Difculdade em reverter a situação

O alagoano Genésio Abílio da Silva, de 64 anos, também entra na estatística do IBGE. “Eu não tenho certidão nem RG há 13 anos, porque fui roubado”, relata. Desde então, ele tentou duas vezes reverter a situação: “me disseram que sem certidão não se resolve nada, mas eu fui roubado, como ia ter?”, indaga.

Silva também foi ao mutirão para encontrar uma saída para o problema que assola milhares de brasileiros, que, assim como ele, não possuem condições financeiras de resolver os problemas jurídicos sozinhos. “Eu sou sustentado pelo meu filho, não consigo pagar um advogado para entrar com uma ação judicial para resolver isso”, conta.

“Eu não aguento mais viver sendo um marginal”
Genésio Abílio da Silva

“Eu não aguento mais viver sendo um marginal”, afirma. “Praticamente, estou na mesma situação que meu irmão, morto”, compara — o irmão de Silva morreu há cinco anos. Silva acredita que agora é o seu momento. “É a chance que eu tenho de me tornar alguém digno”, considera.

Retificação de nome

A recente decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de reconhecer que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam à cirurgia, com desnecessidade de autorização judicial prévia, fez com que se registrasse diversos sorrisos nesta tarde na sede da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

A costureira Vanessa Alves é uma delas. Natural de Panelas, no Pernambuco, mudou-se para a capital paulista quando tinha 17 anos, após um convite de sua tia para morar com ela. Dois anos depois, aos 19, se assumiu trans — identidade de gênero a qual seu pai não reconhece. “Ele me aceita como gay apenas, mas temos uma boa relação apesar disso”, diz.

Quase uma década depois de muita luta e dificuldade, a costureira finalmente tem a chance de ser reconhecida como Vanessa Alves. “É o meu grito. Essa sou eu. Estou muito feliz e muito nervosa, porque vai mudar a vida e para muito melhor”.

O nervosismo de Vanessa é justificável, reconhece o coordenador do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria, Erik Saddi Arnesen. “As instituições de Justiça demoraram muito tempo para se dedicar à população T, que é totalmente alheia ao serviço público. Estamos tentando recuperar isso”, diz.

Arnesen acredita que a população T sofre muita retaliação, consequência da sociedade: “É complicado o jeito que se trata qualquer um da sigla (LGBTT). Precisamos evoluir nessa questão e um jeito é a retificação de nome, dando dignidade praqueles que precisam”.

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