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25 de Maio de 2020

Artigo – ConJur - A família na atual crise de direitos humanos - Por Jones Figueirêdo Alves

O Pacto Global das Nações Unidas discute como proteger os mais vulneráveis diante da crise de direitos humanos provocada pela Covid-19, antes entendida somente como uma emergência mundial de saúde pública. (1) Torna-se agora um dever ético-humanitário reduzir, ao máximo, as desigualdades sociais e impedir uma outra crise mais profunda, a crise da humanidade que vitimiza os seus desiguais. A família está no núcleo dessa nova crise, a dos direitos humanos.

Há um entrelace de realidades agônicas permeando a crise do coronavírus, cada vez mais avassalador em suas ondas de contágios e letalidades e aquela outra crise que afeta, com maior sofrimento e sob reduzidas oportunidades, as camadas sociais menos favorecidas.

Importa, daí, urgente revisitação nas prioridades de políticas públicas, para a proteção das famílias mais carentes, durante e depois da pandemia. Há uma crise emergente de direitos humanos, onde morre-se mais onde se tem o menos. Onde o distanciamento social é praticamente impossível, nos aglomerados urbanos dos casarios favelados, nos arruares crônicos de pobreza. Onde as indiferenças provocam outras mortes e nelas “o morrer de vulnerabilidades sociais, de frágeis ancianidades ou de serviços débeis de saúde pública, criam o nascimento das mortes indignas e incômodas” (2).

Impende uma análise jurídica de dois tempos, nos atuais de pandemia e nos vindouros de uma humanidade sujeita às “novas normalidades”, a descobrir que sua comorbidade destrutiva, quase congênita, está no desamparo aos mais vulneráveis, aqueles que mais padecem em dignidade.

Esse “segundo renascimento” é vaticinado por Ian Goldin e Chris Kutarna, na obra “A Idade das Descobertas” (2017) quando afirmam necessário:

a) “que as dores sejam mais largamente reconhecidas e partilhadas”

b) que uma nova sociedade seja “mais inteiramente humana”;

c) que uma nova terra prometida seja “um qualquer sítio novo que conserve o progresso que alcançamos ao longo do nosso presente rumo, mas que consiga ser mais equitativo. Mais amigável. E mais sensível e mais justo”. (03)

A proteção da família, como base da sociedade, tem sido uma construção constitucional de permanente prática. A família merece especial proteção do Estado e este assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram (art. 226 e § 8º da CF brasileira). A Constituição Italiana é eloquente a dizer que “a República favorece, com medidas econômicas e outras providências, a formação da família e o cumprimento das obrigações relativas, com especial consideração pelas famílias numerosas” (art. 31). As duas cláusulas ali inseridas são determinantes, enfatizando a proteção da família com “medidas econômicas” e mediante especial atenção às “famílias numerosas” e colocam, objetivamente, as bases diretivas de políticas públicas atuais e futuras.

A Constituição portuguesa, a seu turno, envolve um compromisso solidário dispondo no art. 67.1. que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”. No ponto, como resulta flagrante, não se exige apenas do Estado a destinação exclusiva de proteção das famílias, conferindo, igualmente, à sociedade em geral, um dever participante e solidário, em aglutinação dos esforços de garantia a esse desiderato constitucional.

O pergaminho português vai além, quando no art. 67.2. particulariza os deveres do Estado, em oito itens exemplificativos, dentre eles o de “definir, ouvidas as associações representativas das famílias, e executar uma política de família com carácter global e integrado”. Essa politica estabelecida mais se exige, agora, diante dos infortúnios sociais agudizados pela Covid-19 a afetar todas famílias e serve como paradigma para uma prática assecuratória dos direitos humanos em favor delas.

Não há, todavia, nos sistemas jurídicos, um “Estatuto de Proteção das Famílias”, com visão sistêmica das questões nucleares, notadamente em defesa de dignidade das entidades familiares, em suas diversas características, nos planos econômico-sociais. Em nosso país, temos micro-sistemas jurídicos, a saber do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 01.07.1990), do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 01.10.2003), do Marco Civil da Juventude (Lei nº 12.852, de 05.08.2013) e do Marco Civil da Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 08.03.2016). Todos eles a merecer o implemento continuado de politicas públicas adequadas.

No contexto do tempo atual impende ponderar a crise humanitária da família, envolvendo seus segmentos mais críticos, no caso brasileiro, a saber:

(i) Os provedores de famílias – Em exame das repercussões econômicas do coronavírus, o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE) anunciou (20.05.20) que a crise já afeta o trabalho de 53,5% das famílias brasileiras (04).

A pesquisa indicou que a) as famílias mais afetadas foram as de menor renda; b) cerca de 25% tiveram redução salarial proporcional ao tempo da jornada de trabalho; c) uma pessoa do núcleo familiar, em 14,7%, teve seu contrato suspenso ou, em 12,7%, foi demitida.

A significativa queda na renda dos provedores familiares oferece uma difícil realidade, somada ao excessivo número de desempregados ou de trabalhadores informais, flagrando a gravidade da crise humanitária, no plano laboral familiar. Importa referir:

a) o apoio financeiro do Estado não poderá ser limitado aos três meses, como previstos na Lei nº 13.982;2020, e sim continuado, no curso de todo o enredo dramático da atual pandemia. Medidas econômicas de apoio especial servirão como instrumentos imediatos e capazes de mínima proteção;

b) o conjunto da sociedade civil, permeado por iniciativas empresariais elogiáveis ou de grupos de ações solidárias, tem demonstrado uma presença proativa da solidariedade social indispensável nos momentos atuais.

(ii) Os excluídos digitais – Os mais vulneráveis situam-se também na conta da exclusão digital e “os auxílios emergenciais” conferidos pela recente lei nº 13.982, de 02.04.2020 abriram a cortina dessa vulnerabilidade social extraída das pessoas incapazes de lidar com a revolução tecnológica. Milhares de pessoas infringiram um distanciamento social responsável, precipitando necessitadas ao recebimento em agencias bancárias pagadoras dos reportados auxílios, com filas quilométricas e esperas angustiantes de inúmeras horas. Esses ritos urbanos encenaram, de forma contundente, uma exclusão digital não mais aceitável, sacrificando famílias mais carentes.

Com inteiro acerto, Marcelo Lannes refere esse déficit educacional como um déficit de realização de vida das pessoas. Impedidas de conviver dentro da sociedade digital, são prejudicadas de obterem melhores condições de trabalho e de uma busca acessível da felicidade possível (05).

A exclusão digital mais agrava as exclusões sociais, como forte indicador das desigualdades socioeconomicas, tendo a crise da pandemia da Covid-19 visibilizado, às expressas, esse problema. Não obstante a Organização das Nações tenha declarado a conectividade como um direito fundamental (2011) e o Marco Civil da Internet ditado que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania (Lei nº 12.965, de 23.04.2014, art. 7º),  a exclusão digital afeta ainda cerca de 30 milhões de brasileiros que não dispõem de acesso à internet (06).

Subtraídos de uma economia compartilhada de aplicativos e  das inovações de tecnologia, de uma capacidade digital nas tarefas mais comuns, como as de receber os seus salários, proventos ou benefícios sociais, estão subtraídos de uma existência digna por uma exclusão digital quase irreversível.

Resultam também excluídos do acesso à prestação de serviço da telemedicina, cujo uso tornou-se autorizado, em caráter emergencial, durante a crise do coronavírus (Lei nº 13.989, de 15.04.2020).(7)

(iii) Os senescentes precoces —Um critério cronológico para conceituar as pessoas idosas é adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 65 anos para os países desenvolvidos e em 60, para os em desenvolvimento.  Esse critério é inscrito na ordem jurídica de diversos países, como algo consonante com a idade biológica. Inferências que buscam afirmar verdades propositivas, desafiam, porém, o critério, em face das vulnerabilidades sociais.

Nesse sentido, Patrícia Novais Calmon defende que o parâmetro biológico deve ser considerado, com novas normativas relacionadas aos idosos que, mesmo não contando sessenta anos, possuam biologicamente essa idade. Não há negar um primado lógico de sua assertiva, como fórmula adequada à melhor tutela daquele idoso que assim possa ser havido como tal. Ou seja, as condições pessoais estabelecem a verdadeira velhice onde “o eu finalmente atingiu a si mesmo” (Sêneca).

No Brasil, as senescências precoces são advindas da pobreza e nelas a “idade social” é adiantada no tempo, por “ancianidades frágeis”. Pessoas mais carentes envelhecem mais cedo, são as que têm mais rugas no espírito. Não envelhecem pelo relógio do tempo, muito antes se tornam velhas por vidas sem dignidade.

No curso da vida humana, tal fenômeno social é um decurso de tempo que abrevia o percurso, em velhice fisiológica antecipada, pelas mazelas sociais. São as senilidades por envelhecimentos patológicos, onde ser “velho é ter idade”, mesmo antes dos sessenta anos.

O filósofo italiano Norberto Bobbio, na obra “De Senectude” (1996), aponta a velhice sexagenária apenas no sentido burocrático (08), a dizer que a velhice fisiológica começa apenas aos oitenta anos, diferente da velhice censitária ou cronológica e da velhice psicológica ou subjetiva, da qual podemos nos recuperar. Diversas são as percepções. (09)

A Itália é um país de idosos. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (Istat), 22,8% dos habitantes do país em 1º de janeiro de 2019 tinham 65 anos de idade ou mais, proporção inferior somente à do Japão, de 27,6%, conforme dados do Banco Mundial (2018). País de baixa natalidade (1,32 filho p/ mulher), com 168,9 pessoas idosas (com mais de 65) p/100 jovens, com menos de quinze anos, ali a pandemia em sua letalidade registra 89,2% dos óbitos com pessoas acima de 60 anos, enquanto nosso país, em mesma faixa etária, indica 73%.(10)

A pandemia tem indicado, na conta da mortalidade de idosos, que a velhice submetida aos estabelecimentos asilares de longa permanência, precisa receber novas politicas publicas de austeridade e de proteção familiar. Estimulem-se soluções alternativas como as do instituto da senexão, trazido pelo PL nº 105/2020, de 05.02.2020 (11) e de um tratamento legal aos cuidadores, como pais sociais, com incentivos a essa atividade de trabalho.

(iv) Os retrocessos em prognose – O Relatório “Covid-19 and Human Development: Assessing the Crisis, Envisioning the Recovery” (12), divulgado (20.05.20) pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) oferece graves previsões de comprometimento dos direitos humanos. A queda, no plano global, do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), afetará a família em seus diversos aspectos socio-economicos.

O vocábulo “prognose”, de uso médico, é utilizado aqui propositadamente, quando as projeções de redução do IDH (pela primeira vez desde 1990) são feitas justamente em decorrência da Covid-19.

A rigor, os direitos humanos estarão doentes, nos próximos anos, sob a baixa de padrões de qualidade de vida da população. As famílias serão afetadas, com a redução em 4% da renda per capita mundial e com retrocessos, a exemplo da taxa de abandono escolar (60%) e dos casamentos infantis.

No ponto, é previsto que  “a pandemia poderá levar a mais 13 milhões de casamentos de crianças na próxima década”, enquanto a agência “World Vision” (www.wvi.org/) divulgou que “quatro milhões de meninas correm o risco de se casar nos próximos dois anos por causa da pandemia do novo coronavírus” (13).

Certo que a humanidade pós-pandemia está condenada a buscar a sua felicidade perdida. Esta somente será reencontrada em uma felicidade coletiva, obrigação que o Estado do Bem-Estar Social exigirá dos governantes e da sociedade civil. Se a felicidade implica em uma melhor qualidade de vida, a única forma de sermos felizes estará na qualidade  existencial sufragada para todos. Nesse modo, os direitos humanos serão recuperados.

A partir do que disse Lev Tóst (“...Ivan Ilitch”), pode ser afirmado, em paráfrase: a vida dos mais carentes não fora o que devia ser, mas ainda é possível     corrigi-la. A família, em uma sociedade mais justa, restará, então, melhor protegida e feliz.

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