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15 de Fevereiro de 2021

Artigo - A doutrina da família multiespécie e a identidade animal - por Jones Figueirêdo Alves

1. Introdução. O recente projeto de lei n. 145/2021-CD, do dia 3 de fevereiro corrente, alterando o Código de Processo Civil, concede legitimação processual a pessoas não humanas, representadas nos processos judiciais por instituições de justiça como o Ministério Público e a Defensoria Pública, por associações de proteção animal ou por aqueles que detenham sua tutela ou guarda.
 
O referido projeto potencializa, com o seu avançado alcance, a moderna doutrina da família multiespécie. O novo olhar da lei penetra, de consequência, no espaço familiar e consagra enxergar, uma identidade individual dos animais de estimação, os de companhia que, na condição de seres sencientes, integram as famílias, reclamam uma defesa animal em todos os seus níveis, suscita novas leis regulatórias e dimensiona, afinal, um direito de família protetivo a lhes reconhecer e garantir direitos.
 
Pode-se afirmar, outrossim, que se conceitua a família multiespécie como aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com os seus animais de estimação, importando que a doutrina e uma legislação de regência operem, com maior precisão e amplitude, as relações jurídicas daí advenientes.
 
Lado outro, ganha maior significado o fato de os animais obterem nova condição jurídica, a partir de quando são eles reconhecidos como seres sencientes, não podendo ser considerados simplesmente como coisas em classe de bens móveis como semoventes. Um novo status jurídico do animal assume sua influência de libertação animal (Peter Singer, 1975), no sentido de sua “descoisificação”, e de efeito, considerarmos em causa a juridicidade necessária para a família multiespécie em suas relações jurídicas.
 
Bem a propósito, o parlamentar proponente do PL 145/2021, dep. Eduardo Costa, sublinhou que:
“Exemplos como o da orangotango Sandra e o da chimpanzé Cecília na Argentina, o do urso Chucho na Colômbia, o dos chimpanzés Hiasl e Rosi na Áustria, Tommy e Kiko nos Estados Unidos, o dos chimpanzés brasileiros Suíça, Lili, Megh e Jimmy, entre tantos outros casos mundo afora, demonstram que existe uma omissão relevante em muitos ordenamentos jurídicos que dificultam a proteção individual de determinados seres vivos” (01).
 
De fato. Pensando no problema da representação dos animais, o jurista português Fernando Araújo já advertia, pioneiramente, em 2003, no sentido de “o argumento de que os animais não podem defender-se juridicamente, nem representar-se sequer o que são os direitos que lhes atribuiríamos, é cruel, porque fomos nós que convencionámos a inferioridade deles, com base na sua inacessibilidade ao nosso sistema convencional de avaliação da coexistência, quer na crua constatação da desproporção de forças (...)”.

E adiante pondera: “O que falta, em muitos casos, é apenas a especificação de meios de acção que assegurem a defesa espontânea e individual de interesses de animais” (...).

Adiantou, então, que o obstáculo maior à efetivação dos direitos dos animais, quanto à respectiva praticabilidade contenciosa, qual o da legitimidade processual e da representação em juízo, pode ser resolvido considerando: (i) o nexo legitimador entre o representante e o animal; (ii) “a legitimidade processual daqueles que queiram representar seus interesses, pode, de iure concedendo, ser associada legislativamente à posição de interesses que as pessoas possam ter no bem-estar de animais específicos (...)” (02)

2. Os avanços normativos. Os atuais projetos de leis chegam em momento oportuno. Animais são seres sencientes: experimentam emoções e sentimentos; dotados de sensibilidade sentem prazer, dor e angústia. Deixam de ser coisas móveis ou semoventes, objetos ou bens materiais. Abandona-se a “coisificação” do animal, autonomiza-se um novo direito e em sendo de estimação (animais de companhia) tornam-se eles membros de família.

Na Itália, onde a taxa de natalidade tem regredido bastante, a cada ano pelos menos quatro mil casais que se divorciam disputam na Justiça a guarda do animal, como se filho fosse (Conjur, 30.07.16).
 
Efetivamente, “os tribunais têm entendido que o regime jurídico das coisas não é aplicável aos animais” (Alexandra Leitão, 2015), a proteção do bem-estar animal ganha uma nova e dinâmica leitura legal (a exemplo, Nova Zelândia, 2015); e o Tratado de Lisboa dispõe que os animais são considerados seres sencientes (art. 13); o que reclama, de toda comunidade europeia e da nossa, a reforma dos códigos e das leis, com a atualização adequada.
 
Nesse contexto, depois de mais de duzentos anos, o Código Civil francês, de Napoleão (1804) alterou o “status” jurídico dos animais, declarando se tratarem de seres sencientes, ou seja, “les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité” (inciso 14 introduzido ao artigo 515), conforme a Lei nº 177/2015, de 16 de fevereiro. Não mais propriedade pessoal do seu dono ou coisa, como dispunha o artigo 528 daquele Código.
 
Antes disso, com a Gesetz zur Verbesserung der Rechtssellung des Tieres in Bürgelichen Recht, de 20 de agosto de 1990, o Código Civil alemão (BGB), teve introduzido o § 90-A, onde se apresentou uma importante distinção jurídica, a sugerir uma categoria jurídica diferenciada aos animais (“os animais não são coisas”). Essa evolução legal indica a importante configuração de os animais se apresentarem, de fato, como sujeitos de direito.
 
Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça da Argentina, por sua Sala II de Decisão Penal, decidiu em 18.12.14, que os animais são sujeitos de direito, como “pessoas não-humanas”, pelo que se impõe a sua proteção. No caso da orangotango-de-Sumatra “Sandra”, concedeu-lhe, então, por ordem de habeas-corpus, a sua liberdade animal.
 
Na Suiça (2002), é previsto em direito de família (art. 651º, al. a, Código Civil), que nos casos de dissolução de casamento, de união de fato ou de partilha da herança, “o tribunal pode adjudicar o animal em litígio à parte que garanta a sua melhor acomodação e tratamento”. E mais: norma de direito sucessório (artigo 482º, nº 4), estabelece um ônus de cuidar do animal, tornando-o beneficiário de uma disposição “mortis causa”.
 
Mais recentemente, tratando do divórcio, o novo Código Civil português, com as alterações da Lei 8/2017, de 3 de março, dispõe em seu artigo 1.793.º-A, no sentido de que “os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”.
 
Aliás, no mesmo sentido, em nosso país, o Projeto de Lei n. 62/2019, da Câmara dos Deputados, quando dispõe que “para o deferimento da guarda do animal de estimação, o juiz observará as seguintes condições, incumbindo à parte oferecer: I - ambiente adequado para a morada do animal; II - disponibilidade de tempo, condições de trato, de zelo e de sustento; III - o grau de afinidade e afetividade entre o animal e a parte; IV - demais condições que o juiz considerar imprescindíveis para a manutenção da sobrevivência do animal, de acordo com suas características (art. 5º)”; torna bem certo que, para o bem-estar do animal, a relação afetiva predominante de uma das partes, orientará, induvidosamente, a definição de sua guarda.
 
Mais precisamente, o bem-estar animal será, sempre, motivo determinante de prevalência e definição para as hipóteses de sua guarda singular ou compartilhada. Inegável que a disciplina da guarda, alimentos e regulação de visitas aos animais, ainda ausente do nosso ordenamento jurídico, carece de urgente regulação legislativa.
 
Com especificidade. Jade Lanzire Aguiar refere, diante do vínculo entre humanos e animais, considerado pelas afeições subjacentes, que como seres sociais e de “vidas emocionais sofisticadas”, esses não devam ser privados da convivência, configurando-se, assim, conferir maior tutela ao resguardo dos animais a atribuição da guarda compartilhada (03)

Daí, incompreensível se apresenta, referir-se, ainda, à “posse do animal”, como se coisa fosse. No ponto, o Projeto de Lei nº 62/2019 em dispondo sobre a guarda dos animais de estimação, nos casos de dissolução litigiosa da união estável ou do vínculo conjugal entre seus “possuidores” pecou exatamente por essa imprecisão jurídica da linguagem adotada. O projeto expressa que a guarda do animal será atribuída, de forma unilateral, quando da falta de acordo, a quem demonstrar maior vínculo afetivo com o animal e maior capacidade para o exercício da “posse responsável” (?)(art. 2º), entendida como a resultante dos “deveres e obrigações atinentes ao direito de possuir (?) um animal de estimação (art. 2º, § único).

Induvidoso, todavia, que todo e qualquer diploma normativo em alterando o Código Civil ou em instituindo o Estatuto dos Direitos do Animal, deverá sempre referir-se à “guarda responsável” do animal e ao interesse do seu bem-estar.

O regime jurídico dos animais, em Portugal, tem oferecido um notável acervo normativo essencial, a partir da “Lei de Protecção aos animais” (Lei nº 92/1995, de 12 de setembro), com ampla regulação dos animais de companhia, dos animais potencialmente perigosos, daqueles com fins econômicos ou militares, os de caça, os destinados à investigação cientifica e, ainda, os cães-guia (Dec. Lei nº 118/1999, de 14 de abril).

A esse respeito, os juristas portugueses Filipe Albuquerque Matos e Mafalda Miranda Barbosa, com as alterações do Código Civil de Portugal e diante de novas leis de direitos dos animais, em sua obra “O Novo Estatuto Jurídico dos Animais” (GestLegal, Coimbra, 2017, 162 p.), incursionam sobre as inovações legais com aprofundadas reflexões. Precedendo o tema, outros juristas do país-irmão, Fátima Correia Leite e Esmeralda Nascimento, trataram em obra, de igual título, sobre o “Regime Jurídico dos Animais de Companhia” (Almedina, Coimbra, 2004, 208 p.)

Atualmente, impende anotar que, além do reportado PL n. 145/2021, tramitam na Câmara dos Deputados o PL 62/2019 e no Senado o PLS n. 542/2018, cuidando, estes, da guarda dos animais em casos de separações dos casais. Urge, portanto, que tenhamos em nosso país, um Estatuto Jurídico de igual densidade e ordenação sistêmica, a exemplo de Portugal.

3. Os avanços doutrinários. A seu turno, a doutrina jurídica tem assinado importantes estudos, a partir da referida pioneira obra “A Hora dos Direitos dos Animais”, de Fernando Araújo (2003) e do ensaio “Animal, coisa ou ‘tertium genus’?”, de José Luís Bonifácio Ramos (2009), publicados pela Almedina (Coimbra, PT). Seguem-se a coletânea “Direito (do) Animal” (Carla Amado e outros, Almedina, 2015) e a “Ética Aplicada. Animais” (coord. de Maria do Céu Patrão Neves e Fernando Araújo (Edições 70, PT, 2018).
 
No país, são significativos os estudos de Ana Sanches e Guimarães Ferreira, “A Proteção aos Animais e o Direito” (Ed. Juruá, 2014), e de José Fernando Simão, “Guarda alternada: animais domésticos” (Carta Forense, 05.07.16). Ele pondera, com inegável acerto, que “muitas orientações pretendem transpor ao animal a noção de melhor interesse que é própria do ser humano, esquecendo-se que o melhor interesse do animal pode não ser (e quase nunca o é) o melhor interesse de seus donos”. No mais, acrescentam-se, com relevância, os estudos de João Alves Teixeira Neto (“Tutela Penal de Animais, uma compreensão onto-antropológica”, 2017), Marcelo Marineli (2018) (04), Lanziere Aguiar (“Direitos dos Animais sob os aspectos da guarda...”, 2018), e de Felipe Cunha de Almeida (“Animais de Estimação e a Proteção do Direito de Família. Senciência e Afeto”, Thoth Ed., 2020).
 
04. A identidade animal registrada. A legislação portuguesa dispõe de regulações sobre o sistema de identificação de animais de companhia, tendo o Decreto-Lei nº 313/2003, de 17 de dezembro, criado o Sistema de Identificação de Caninos e Felinos (SICAFE), que “estabelece as exigências em matéria de identificação electrônica de cães e gatos, enquanto animais de companhia e o seu registro numa base de dados nacional”.  O referido decreto criou base de dados nacional, sob coordenação da Direcção-Geral de Veterinária (DGV).

Pois bem. Nas vizinhanças do reconhecimento legal no país de personalidade jurídica aos animais, como sujeitos de direito, para as demandas judiciais (PL n. 145/2021), mais òbvia e pertinente se apresenta a necessidade de a identidade animal tornar-se de registro obrigatório, para os fins do direito de família, melhor guarnecendo, com efeito, as relações das famílias multiespécies. Melhor ainda: para os fins de certificação de guarda de animal de companhia, em proteção da relação familiar preexistente e da própria causa animal.

Em ser assim, pondera-se, também com obviedade, necessárias alterações pontuais na Lei de Registros Públicos (Lei 6015/1973) para que ali também se contenha previsão legal, especifica e obrigatória aos registros de animais de estimação, os animais de companhia, que integram a família multiespécie. Ora, já se conhecem em cartórios de Registro Civil as famílias que ali se acham constituídas, mas não se sabe, com segurança estatística, quantas são as famílias multiespécies.

Anota-se, por precedente importante, o reconhecimento de identidade animal ocorrido na Comarca de Eldorado do Sul (RS), quando se obteve certidão de identidade reconhecida em cartório, do porquinho Pingo de Compaixão, em data de 06.12.2019, com os mesmos direitos dos animais de estimação; para efeito de em caso de separação dos guardiões, ser possível pedido de pagamento de alimentos.

Cuidou-se denominar “IdentPet” a identificação animal, criada por cartório de Roraima, servindo também para vinculá-lo aos seus guardiões e ao comprovar o vínculo, a existência da família multiespécie quando, em sua dinâmica, funcionam as obrigações daqueles com o animal; inclusive por ruptura da vida em comum. O “IdentPet”, atualmente tem sido expedido nos termos dos artigos 19 e 127 § único da Lei nº 6.015/1973.

Afinal, a sensibilidade do touro Ferdinando, tem reclamado em favor de todos os animais, um melhor direito.

Anotações:

(01) Web https://www.camara.leg.br/noticias/726009-projeto-permite-que-animais-figurem-individualmente-como-parte-em-processo-judicial/
(02) ARAÚJO, Fernando. A Hora dos Direitos dos Animais. Almedina, 2003, 379 p., pp. 300-301.
(03) AGUIAR, Jade Lagune Lanzieri. Direito dos animais sob os aspectos da guarda compartilhada e dano moral em caso de lesão do animal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2019, 108 p., pp. 58-59.
(04) MARINELI, Marcelo Romão. A Condição dos Animais na Sociedade Contemporânea: de Coisa a Sujeitos de Direito. In: DONNINI, Rogério (Coord.). ZANETTI, Andrea Cristina (Org.). Risco, Dano e Responsabilidade Civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, 256 p., pp. 231-255.
 
 
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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