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21 de Novembro de 2022

Artigo - (I)mutabilidade do nome na (privatista) visão civil-romanista – Por Bernardo Moraes

Assim como, de início, a estipulação de um nome, cognome ou prenome para identificar cada um é livre aos particulares, a alteração deles, da mesma forma, não traz risco aos honestos. Desse modo, conforme frequentemente estabelecido, de forma alguma se proíbe que tu, sendo livre, mudes, por legítimo direito, o nome ou o prenome, desde que não haja alguma fraude; e não decorra disso nenhum prejuízo” – Diocl. et Maxim., C. 9, 25, 1 (de 293 d.C.).

No apagar de luzes do século XIX, uma tradicional família paulista reuniu seus principais membros para deliberar acerca de uma questão muito importante: com qual nome (vulgo, “sobrenome”) deveriam se apresentar perante a sociedade. Era a época em que a elite quatrocentona divulgava seus feitos e novidades em jornais, servindo o nome como um importante identificador do grupo ao qual fulano ou beltrano pertenciam. Para essas famílias, a adoção de um nome poderia trazer imediatamente a carga de um passado de conquistas e glórias; já a exclusão de outro afastaria memórias não tão nobres ou estabelecia rupturas (não necessariamente traumáticas) em estruturas familiares mais amplas.

Foi com esse espírito que alguns dos “Queiroz Guimarães de Moraes” (como minha bisavó Judith) se tornaram simplesmente “Queiroz de Moraes” (como meu avô Flávio e seus vários irmãos). A preferência pelo “Queiroz” (no mesmo tronco familiar de “Guimarães”) talvez tenha se imposto para manter a família vinculada à memória de dois de seus mais ilustres membros no século XIX, o Barão de Jundiaí (Antônio de Queiroz Telles) e o Conde do Parnaíba (Antônio de Queiroz Telles, que foi Presidente da Província de São Paulo[1]).

Era uma época em que esse vínculo de ancestralidade (pertencimento a uma família) constituía a razão maior dos nomes. A tal ponto de não haver grande preocupação com homônimos. Um exemplo: meu tio-tataravô (Antônio de Queiroz Telles – Conde do Parnaíba) nomeou um de seus filhos como “Antônio de Queiroz Telles”, era filho de um “Antônio de Queiroz Telles” (o Barão de Jundiaí), neto de outro “Antônio de Queiroz Telles” (natural de Portugal), teve dois irmãos nomeados “Antônio de Queiroz Telles” (falecidos na infância) e dois sobrinhos “Antônio de Queiroz Telles”[2]. Certamente o nome menos servia para identificar um indivíduo e mais para indicar sua posição social.

Daí o cuidado na escolha dos nomes. E não foi o acaso que definiu o momento da reunião familiar dos “Queiroz Guimarães de Moraes”. Não se tratava de uma escolha sem importância jurídica. Desde o ano de 1851 (com o Decreto 798, que regulamentava a Lei 586/1850) começou a se delinear no Brasil o registro civil das pessoas naturais, tendo a Lei 1.829/1870 deixado explícito o interesse público dele para fins de “recenseamento da população”. Ou seja, o nome passou a extrapolar o âmbito privado por conta da necessidade de identificação adequada de todos os que compõem o nosso povo. Como sói ocorrer, mudanças não conseguem ser efetivadas de plano: somente a partir de 1º de janeiro de 1889 é que, unificando o registro eclesiástico dos católicos com o laico dos não católicos, passou a ser obrigatório o Registro Civil das Pessoas Naturais (Decreto 10.044/1888 c.c. Decreto 9.886/1888)[3].

À época, permitia-se que se escolhessem o prenome e nomes no assento do nascimento (Decreto 9.886/1888, art. 58, 5º: “O assento do nascimento deverá conter: … 5º O nome e sobrenomes que forem ou houverem de ser postos a criança”). Ora, em uma família com tantos membros formados na, então jovem, Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (o primeiro fora Antônio de Queiroz Telles – Conde do Parnaíba – formado em 1854) era natural que se visualizasse a importância da escolha dos nomes, que poderiam se consolidar no futuro (como, de fato, ocorreu). Fez-se a escolha por decisão familiar. Por isso, Judith, nascida, antes de 1889, permaneceu “Queiroz Guimarães de Moraes”, mas seus filhos foram todos registrados como “Queiroz de Moraes” (três dos quais, meu avô incluso, formados em Direito).

Cresci ouvindo essa história familiar. E, por conta dela, sempre me soou adequado poder mudar o nome. Essa a primeira razão de eu ter estranhado uma regra que aprendi na Faculdade: de que o prenome é imutável (segundo a redação original da Lei 6.015/1973, art. 58) e de que o nome (sobrenome) só poderia ser alterado excepcionalmente e por sentença judicial (segundo a redação original da Lei 6.015/1973, art. 58).

Uma segunda razão para o meu estranhamento deriva do fato de eu ser civilista (portanto, necessariamente, privatista). E um verdadeiro civilista do século XXI não tem como sustentar adequadamente a necessidade ou conveniência da imutabilidade do nome, em particular depois de o “direito ao nome” ter sido elevado indiscutivelmente ao status de um direito da personalidade (CC, art. 16).

O direito ao nome, quanto à sua natureza, apresenta um “duplo aspecto: público e privado”[4]. O público é objetivo e ressalta, por evidente, um elemento de interesse social; o privado é subjetivo e indica valores individuais.

Quanto ao aspecto público, o direito ao nome só se justifica para atingir duas finalidades. A primeira e fundamental, já latente na nossa legislação desde 1851 e visível a partir de 1870, é a de identificar e individualizar as pessoas (em especial as naturais, mas também as jurídicas): “a salvaguarda da fixidez do nome se erige em fator impostergável de ordem e de segurança”[5]. Evidentemente, é fundamental para o Estado saber precisamente quem é o autor de um crime, quem é devedor de um tributo, quem deve ser citado em um processo, quem se candidatou a um cargo eletivo etc.

Contudo, por um lado, é preciso se questionar se o nome está realmente cumprindo essa função de corretamente identificar. No Brasil há uma altíssima incidência de alguns poucos sobrenomes, o que, por sua vez, leva provavelmente a uma “enorme variabilidade dos prenomes brasileiros”[6]. E, ainda assim, a recorrência de homônimos é muito elevada (encontrei uma vez um “Bernardo Queiroz de Moraes”, sem nenhum vínculo próximo de parentesco).

Não por acaso, algumas bases públicas de dados, importantes para políticas governamentais, têm de se socorrer de informações alternativas para uma adequada individualização das pessoas. O INSS, por exemplo, há muito identifica segurados pela conjugação de duas informações: o nome da pessoa e o nome de sua mãe. E, mesmo com essa providência, os homônimos persistiram, com óbvios inconvenientes práticos. A solução foi, aos poucos, vincular a cada pessoa um número de identificação único, imutável e individual: o CPF[7]. O sucesso desse número foi tamanho (primeiro no direito tributário, depois no previdenciário e em outras áreas do direito), que recentemente ele foi elevado ao patamar de forma padrão de identificação, inclusive para fins processuais. Se antes um operador do direito vinculava suas manifestações a seu nome, hoje, principalmente com o processo eletrônico, ele as vincula a seu CPF.

Daí, por outro lado, ser preciso se questionar se a imutabilidade do nome continua a se justificar para o fim de possibilitar uma correta identificação de cada indivíduo que compõe o povo de um país. Até para atividades de lazer, como, por exemplo, o ingresso em um clube ou academia, antes nos apresentávamos pelo nosso nome, depois por números e hoje é cada vez mais frequente, por conta da recente evolução tecnológica, o emprego da identificação biométrica que, por sua amplamente aceita segurança para bem identificar, foi inclusive adotada pela Justiça Eleitoral. E no meio digital, onde parcela muito significativa dos nossos atos da vida civil são realizados e onde a necessidade e dificuldade de se identificar as pessoas é ainda maior, o que se observa, de aplicativos de aparelhos de celular para a realização de transações bancárias a cadastros em sites governamentais de serviços (como o www.gov.br), é uma frequente conjugação do número do CPF com mecanismos de colheita de biometria (por vezes vinculados a certificados digitais). Não se exige mais o nome…

Ainda mais questionável é a outra finalidade quanto ao aspecto público do nome: indicar ancestralidade. Na Roma antiga, uma das partes do nome (o nomen gentilicum) indicava o pertencimento do indivíduo a um grupo maior, o que, a depender da época, influenciava, por exemplo, os direitos políticos de um cidadão. Ademais, os romanos valorizavam a inserção do indivíduo em um contexto temporalmente mais amplo, vinculando (por parentesco jurídico ou natural) um grupo maior de indivíduos a um antepassado distante (e já morto), no que se chamava “familia communi iure”[8]. Tal vinculação era socialmente visível pelo nomen gentilicum[9].

Também em regimes monárquicos, principalmente quando há hereditariedade de títulos de nobreza, a ancestralidade se revela importante, conferindo privilégios àqueles que portam um ou outro nome. E mesmo fora desses regimes, o nome traz a todos intuitivos indicativos acerca das origens familiares (geográficas e históricas) de alguém (meu sobrenome materno “Bissoto” indica uma família de imigrantes da região vêneta), da vinculação de uma família a alguma atividade econômica (associamos facilmente certos nomes a “famílias de banqueiros”, “famílias de agricultores” etc.) e da vinculação a alguma família com ou sem grande poder político ou econômico (indicamos algumas famílias tradicionais da política pelo nome e em alguns países, como o Japão, há uma frequente ligação de nomes a um passado mais nobre ou próspero).

Mas qual o interesse público em buscar essa vinculação a uma ancestralidade? Mais: qual a conveniência? Em uma sociedade verdadeiramente igualitária e com efetiva mobilidade social, há razoabilidade em criar laços e preconceitos completamente desvinculados da conduta social de alguém? Porque nem sempre o passado de uma família é nobre ou virtuoso… Claramente não há mais fundamento para uma imutabilidade do nome por conta de seu viés público.

Menos ainda em razão de seu aspecto privado. E esse é o que deve preponderar hoje, por ser amplamente aceito (embora não unânime) que o direito ao nome é um direito da personalidade.

De plano, uma distinção se impõe: algo é o direito de atribuir inicialmente o nome e outra coisa é o direito a ter um nome e o direito ao nome. Com relação às pessoas naturais, o direito de atribuir o nome é, em princípio, titularizado pelos detentores do poder familiar (via de regra, ambos os genitores, por interpretação da Lei 6.015/1973, art. 55, §4.º) sobre o menor que nasce com vida (se admitido que a personalidade só se inicia a partir do nascimento com vida – CC, art. 2º). O direito a ter um nome é de todo ser humano (ainda sem um nome). E o direito ao nome é de todo ser humano ao qual já se atribuiu um nome[10].

Com relação à eleição inicial do prenome, é dada ampla liberdade aos seus titulares, que não podem fazer escolhas que exponham ao ridículo o seu portador (Lei 6.015/1973, art. 55, §1.º). Comumente a opção feita indica uma expressividade de valores dos genitores, dentre os quais uma ancestralidade. Meu filho Pietro porta esse nome seja porque ele indica parte de sua ancestralidade, seja por razões religiosas, seja porque a Itália traz boas lembranças e sentimentos aos seus genitores. Aos seus genitores, não (por enquanto) ao Pietro.

Já no caso do sobrenome, há uma liberdade menor, pois é necessário “comprovar a linha ascendente” (Lei 6.015/1973, art. 55, caput). Contudo, essa linha ascendente nem sempre é facilmente demonstrável em casos, por exemplo, de ancestrais mais longínquos indígenas e africanos (por evidentes razões históricas). Minha família tem raízes indígenas (como, aliás, por razões nada nobres, têm todas as famílias dos conquistadores vindos no século XVI), mas não conseguiria comprovar essa ascendência se desejasse homenagear, no sobrenome de Pietro, nossa ascendência de índios guaianases do antigo aldeamento de São Miguel de Ururaí. O problema também ocorre com relação àqueles de ascendência africana, não podendo, no mais das vezes, marcar uma ancestralidade “perdida” (que hoje é, inclusive, verificável, em linhas gerais, por exames de DNA) no sobrenome de seus descendentes (e, com isso, indicar o pertencimento a um grupo) por não haver possibilidade real de apresentar “as certidões necessárias para comprovar a linha ascendente” (Lei 6.015/1973, art. 55, caput). Seria conveniente uma flexibilização desses critérios.

Se é conveniente uma flexibilização com relação ao direito de atribuir um nome, mais razão há para se atribuir ao seu “portador” (que, afinal, tem a titularidade do direito ao nome) real flexibilidade para alterá-lo.

Mais do que meramente identificar, do ponto de vista de seu titular, o nome tem um aspecto de distinção social: “Quando pronunciamos, ou ouvimos um nome, transmitimos, ou recebemos, um conjunto de sons, que desperta no nosso espírito, e no de outrem, a ideia da pessoa indicada, com seus atributos físicos, morais, jurídicos, econômicos etc.”[11]. Na medida em que expressa esses e outros valores, distinguindo a pessoa em sociedade, o nome (prenome e sobrenome) impacta sobremaneira no seu titular. Um impacto derivado de uma escolha não feita por seu portador.

Ora, em sendo direito da personalidade (CC, art. 16) e admitindo-se que “direitos da personalidade são os direitos particulares, que consistem nas prerrogativas concedidas a uma pessoa pelo sistema jurídico e assegurada pelos meios de direitos para fruir e dispor, como senhor, dos atributos essenciais da sua própria personalidade, de seus aspectos, emanações e prolongamentos, como fundamento natural da existência e da liberdade, pela necessidade da preservação e do resguardo da integridade física, psíquica e moral do ser humano, no seu desenvolvimento”[12], como não permitir que o seu próprio titular tenha efetiva liberdade de escolha do grupo ao qual pertence ou dos valores fundamentais que quer expressar? Esquece-se com frequência que a variabilidade da esfera jurídica das pessoas (desigualdade) deve encontrar limite nos fundamentais e comuns valores e exigências humanas (uma igualdade jurídica que tem um claro valor ético-social)[13].

É legítimo impor atributos físicos, morais, jurídicos ou econômicos que não foram escolhidos por seu titular? Como um direito da personalidade, a autopercepção do titular deveria pautar a escolha (como expressão da sua personalidade): o direito ao nome “abrange a faculdade de o usar para exprimir a identidade própria e de exigir que os outros, mas relações sociais, o atribuam ao seu titular”[14]. O caráter definitivo do nome (Lei 6.015/1973, art. 58, excepcionado em alguns poucos casos, como o do art. 56) e a taxatividade (formal) das hipóteses para alteração do sobrenome (Lei 6.015/1973, art. 57) não atendem todos os casos em que há clara razoabilidade no pedido de alteração.

Um exemplo: certa vez, ao divulgar de viva voz em uma sala de aula, os nomes completos dos monitores de uma disciplina, percebi que um deles se sentiu desconfortável. Ao término da atividade, o monitor me procurou e pediu para que eu não mais usasse o seu último sobrenome (paterno). Como sempre, acolhi sem hesitar ou pedir justificativa, mas ele expôs seu problema (para pedir aconselhamento): desejava excluir de seu registro a referência paterna porque havia vivenciado, desde jovem, incontáveis momentos de violência doméstica contra sua mãe (que, porém, nunca havia e não desejava romper o vínculo conjugal ou publicizar a situação). Tal demanda não tinha e continua não tendo qualquer suporte legal expresso.

Recentemente foi amplamente noticiado que um foragido da Justiça Paulista havia conseguido a alteração de seu nome para inserir um elemento que o vincularia a dois antepassados muito conhecidos da sociedade pernambucana. Nesse caso, houve a busca de uma vinculação pelo próprio titular do direito ao nome (Lei 6.015/1973, art. 57, I), contudo os casos de exclusão de sobrenomes são mais restritos. E mesmo que a demanda (supra referida) do aluno-monitor tivesse previsão legal, seria necessário ou conveniente ou razoável exigir uma fundamentação como aquela para o pedido (que inevitavelmente causaria injusta exposição do titular do nome e seus genitores)?

Em suma, a ausência de interesse público na imutabilidade do nome e o seu caráter de direito da personalidade só reforçam a conveniência da inversão da regra atual: de imutabilidade com exceções para uma mutabilidade com exceções.

Antes, contudo, de fazer sugestões de exceções, devo dizer que há uma terceira razão para o meu estranhamento acerca da regra da imutabilidade do nome: o fato de eu ser igualmente romanista.

Os antigos romanos não eram tão dados ao registro como nós somos. As razões são variadas. Contudo, isso não significa que não houvesse qualquer forma de registro em Roma ou que eles não se preocupassem com a questão do nome.

Desde época clássica era obrigatória a professio liberorum natorum: uma declaração de nascimento de descendentes perante autoridade competente e para fins de registro (apud acta). Não se tem certeza acerca do seu conteúdo, mas eram elementos muito prováveis desse registro: a data e o local de nascimento, o nome do pai e da mãe (filiação) e o nome do nascido. Eram documentos comuns, principalmente na praxe provincial (por influência grega)[15], porque era obrigatória tal declaração em 30 dias a partir do nascimento[16].

O nome era preferencialmente, mas não obrigatoriamente, composto por um nome (nomen ou nomen gentilicum), um prenome (praenomen) e um cognome (cognomen)[17] – D. 28, 2, 1. Estabelecido o nome, ele era absolutamente mutável: “as palavras que denominam coisas são imutáveis, as que denominam os seres humanos são mutáveis” (D. 30, 4 pr.). É interessante notar que a regra era a mutabilidade apesar de os romanos, mesmo sem a nossa tecnologia (que possibilita a identificação adequada das pessoas por outros modos), expressamente indicarem a mesma finalidade fundamental para o nome: “de fato, os nomes foram imaginados com o fim de indicar os homens, não importando em nada se eles são conhecidos de qualquer outro modo” (Inst. 2, 20, 29). Esse fato histórico só faz confirmar que “não há princípio a priori da imutabilidade do nome (prenome, sobrenome)”[18].

Havia, porém, exceções. Uma mais evidente é que não poderia alguém pretender alterar seu nome para o fim de se furtar à aplicação da lei ou obter vantagem indevida: “Assim como, de início, a estipulação de um nome, cognome ou prenome para identificar cada um é livre aos particulares, a alteração deles, da mesma forma, não traz risco aos honestos. Desse modo, conforme frequentemente estabelecido, de forma alguma se proíbe que tu, sendo livre, mudes, por legítimo direito, o nome ou o prenome, desde que não haja alguma fraude; e não decorra disso nenhum prejuízo” (C. 9, 25, 1). Há vantagem indevida quando, por exemplo, alguém altera o nome para simular parentesco inexistente e, com isso, obter vantagem patrimonial (P.S. 5, 25, 11); em havendo prejuízo para particulares, pode ser proposta ação por injúria (D. 47, 10, 6), dado o sentido amplo da ideia de injúria em Roma (Inst. 4, 4 pr.).

Com base no Corpus Iuris Civilis, a romanística do século XIX ainda menciona a hipótese de usurpação indevida de fama alheia, em que há o uso não autorizado de nome alheio para induzir a erro terceiros acerca da identidade de uma pessoa. Há, portanto, uma apropriação indevida da situação jurídica de alguém. O exemplo clássico é de uma cantora desconhecida que se apropria do nome de uma famosa, com o objetivo de obter vantagem econômica da reputação desta última, ou de um escritor que, com o mesmo fim, se apropria do nome de outro consagrado e escreve uma “continuação” para um romance “best seller”[19].

Do conjunto das fontes, percebe-se que, para se considerar ilícita a adoção do nome de terceiro, não basta o fato de ter ele boa fama (de ser um nome com boa reputação – D. 36, 1, 65, 20 e D. 39, 5, 19, 6); é preciso que esteja caracterizada a fraude (C. 9, 25, 1, já citado), no sentido de se querer enganar terceiros para obter vantagem indevida[20] (não necessariamente com reflexos econômicos imediatos: pense-se na hipótese de alguém que assume nome de terceiro famoso para se candidatar a cargo eletivo, induzindo os eleitores a erro quanto à identidade do candidato).

Essa regra geral passou ao ius commune medieval e só séculos depois começou a ser excepcionada (no sentido cada vez maior de restrição à possibilidade de mudança de nome) por estatutos locais[21].

No aspecto público, se, por um lado, era possível a mudança no nome, por outro, a utilização de um nome falso levava à aplicação da pena do crime de falsificação (D. 48, 10, 13 pr.), com penas muito severas: “a Lei Cornélia sobre as falsificações, a qual é também chamada de testamentária, inflige uma pena àquele que, conscientemente, com dolo, tenha escrito, tenha aposto selo (assinado), tenha lido em voz alta em público ou tenha forjado um testamento ou outro instrumento falso, ou que tenha fabricado, tenha esculpido ou tenha reproduzido um sinete falso. E a pena dessa lei, no caso de escravos, é o último suplício, que também se observa na lei sobre os sicários e os envenenadores, já no caso dos livres, a deportação” (Inst. 4, 18, 7).

Essa regulamentação romana do nome pode servir de modelo para direito civil contemporâneo. Desde a adoção expressa da regra da imutabilidade do prenome (Decreto 18.542/1928, art. 72) foram surgindo exceções no plano legislativo e jurisprudencial[22]: erro gráfico que não altere a pronúncia (Decreto 4.857/1939, art. 72, parágrafo único), evidente erro gráfico ou sentença do juiz no caso de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores (Lei 6.015/1973, art. 59, parágrafo único, c.c. art. 56, parágrafo único – em suas redações originais), alteração imotivada do prenome no primeiro ano após a maioridade (Lei 6.015/1973, art. 57 – em sua redação original), alteração de nome de estrangeiro de pronunciação e compreensão difíceis (Lei 6.815/1980, art. 42 – em sua numeração original), substituição por apelidos públicos notórios (Lei 9.708/1998, que alterou a Lei 6.015/1973, art. 58), fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime (Lei 9.807/1999, que alterou a Lei 6.015/1973, art. 58), alteração do prenome de pessoa transgênero (ADIN 4.275/DF), alteração imotivada do prenome uma única vez (Lei 14.382/2022, que alterou a Lei 6.015/1973, art. 56). Já quanto ao nome (sobrenome), a legislação não fixa expressamente sua imutabilidade ou definitividade, mas certamente a regra é a sua imutabilidade, que pode ser excepcionada, principalmente nos casos previstos na Lei 6.015/1973, art. 57 (com redação dada pela Lei 14.382/2022).

Esse movimento de flexibilização, associado à ausência atual de fundamento ou conveniência para a manutenção da regra da imutabilidade, indica que chegou o momento de uma mudança de paradigma[23]: da imutabilidade para uma mutabilidade com exceções (como a fraude à lei imperativa, o prejuízo a terceiros homônimos ou a obtenção de vantagem indevida, caracterizada, por exemplo, pela usurpação de fama alheia com o objetivo de obter vantagem de terceiros de boa-fé[24]).

Não há nada mais romano do que isso…


* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.

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[1] Tinha laços políticos com o Imperador do Brasil, tendo-o hospedado em sua casa quando de uma viagem para São Paulo.

[2] Cf. L. G. S. Leme, Genealogia paulistana VII, São Paulo, Duprat, 1905, p. 29 e ss.

[3] Para detalhes acerca da evolução legislativa brasileira acerca do tema, cf. V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado notarial e registral – 2 – Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, 2ª ed., São Paulo, YK, 2022, p. 178 e ss.

[4] R. Limongi França, Do nome civil das pessoas naturais, 3ª ed., São Paulo, RT, 1975, p. 149. Cf., igualmente, M. Nuzzo, Nome (diritto vigente), in ED 28 (1978), p. 304.

[5] R. Limongi França, Do nome civil cit., p. 174. Chega-se ao ponto de caracterizar o nome como uma “institution de police civil” – M. Planiol – G. Ripert, Traité élémentaire de droit civil I, 11ª ed., Paris, LGDJ, 1928, p. 156.

[6] “Uma pesquisa dos sobrenomes constantes na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) Migra de 2013 constatou que os cinco sobrenomes mais frequentes no Brasil (Silva, Santos, Oliveira, Souza e Pereira) compõem 45% dessa base, e que apenas 18% dos indivíduos têm ao menos um sobrenome germânico, italiano, do leste europeu ou japonês, em regra mais variáveis. Extrapolando os dados, isso significa que pelo menos metade da população pode depender de um antropônimo chamativo para se destacar na grande massa de Silvas, Santos, Oliveiras, Souzas e Pereiras e outros sobrenomes muito recorrentes. E a forma mais simples de atingir esse objetivo é usar e abusar da criatividade na escolha do prenome. Talvez isso explique, em parte, a enorme variabilidade dos prenomes brasileiros” – T. Olcese, O que há num nome? Nomes próprios e ancestralidade na Roma antiga, disponível [on-line] in https://www.contraditor.com/o-que-ha-num-nome-nomes-proprios-e-ancestralidade-na-roma-antiga/ [02-11-2022].

[7] Sobre a importância do CPF para a mudança de paradigma da regra da imutabilidade do nome, cf. V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado 2 cit., p. 196.

[8] “O termo ‘família’ refere-se também à indicação de algum conjunto de pessoas, que se sustenta em algum laço exclusivo de parentesco dos próprios membros ou no vínculo comum de todo parentesco consanguíneo. Chamamos de ‘família de laço exclusivo de parentesco’ muitas pessoas que estão, natural ou juridicamente, sujeitas ao poder de uma única pessoa, como, por exemplo, um paterfamilias, uma mãe de família, um filho-familias, uma filha-familias e aqueles seguintes que sucedem no lugar deles, como, por exemplo, os netos e netas e os seguintes. (…) Chamamos de ‘família de vínculo comum’ todos os agnados, pois, posto que morto o paterfamilias e tendo cada qual a sua própria família de laço exclusivo de parentesco, ainda assim todos que tiverem estado sob o poder de um mesmo paterfamilias corretamente são tidos como da mesma família, porque são originários da mesma casa e tronco familiar” – D. 50, 16, 195, 2.

[9] “Em Roma, por outro lado, os nomes próprios alcançaram uma significação muito mais profunda. Na experiência romana, a função essencial do nome era indicar o pertencimento do indivíduo a um grupo humano numérica e temporalmente mais extenso. Pode-se dizer (com alguma licença poética, é claro) que a finalidade do nome era inserir o indivíduo na invisível corrente que liga o passado, o presente e o futuro” – T. Olcese, O que há num nome? Nomes próprios e ancestralidade na Roma antiga, disponível [on-line] in https://www.contraditor.com/o-que-ha-num-nome-nomes-proprios-e-ancestralidade-na-roma-antiga/ [02-11-2022].

[10] Cf. F. C. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado – Parte especial – VII – Direito de personalidade – Direito de família – Direito matrimonial (existência e validade do casamento), São Paulo, RT, 2012, p. 136.

[11] S. Vampré, Do nome civil, Rio de Janeiro, Briguet, 1935, p. 38.

[12] D. Gogliano, Direitos privados da personalidade, São Paulo, Quartier Latin, 2012, p. 229.

[13] A. Cupis, I diritti della personalità, 2ª ed., Milano, Giuffrè, 1982, p. 26.

[14] C. A. Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4ª ed., Coimbra, Coimbra, 2005, p. 214.

[15] Alguns exemplos em R. Cavenaile, Corpus papyrorum Latinarum, Wiesbaden, Harrassowitz, 1958, p. 265 e ss.

[16] E. C. S. Marchi – D. R. M. Rodrigues – B. B. Q. Moraes, As bases romanísticas do Código Civil brasileiro I – traduções e estudo comparado, São Paulo, YK, 2022, p. 45.

[17] Para aspectos não jurídicos em geral sobre o nome no mundo romano, cf. M. Lentano, Nomen – il nome proprio nella cultura romana, Bologna, Mulino, 2018, passim.

[18] F. C. Pontes de Miranda, Tratado VII cit., p. 147.

[19] R. Jhering, Rechtsschutz gegen injuriöse Rechtsverletzungen, in Jahrbücher für die Dogmatik des heutigen römischen und deutschen Privatrechts 23 (1885), pp. 321 e 322.

[20] V. Scialoja, Sul diritto al nome e allo stemma, in Studi giuridici III – Diritto privato I, Roma, Anonima Romana Editoriale, 1932, p. 56.

[21] E. Spagnesi, Nome (storia), in ED 28 (1978), p. 300.

[22] Para uma visão geral dessas alterações, cf. V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado 2 cit., p. 194 e ss.

[23] Aproximadamente nesse sentido, cf. V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado 2 cit., p. 195.

[24] Vale lembrar que o direito ao nome “abrange igualmente a faculdade de defender o uso exclusivo do nome contra uma ‘usurpação’ por parte de terceiro” – C. A. Mota Pinto, Teoria geral cit., p. 214.

*Bernardo Moraes é bacharel, doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), especialista (“perfezionato") em Direito Romano pela Università di Roma I – La Sapienza, professor associado (graduação e pós-graduação) da FDUSP (Direito Civil e Direito Romano) e procurador Federal (AGU).

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