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17 de Dezembro de 2008
Artigo - A incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão
1. Introdução
Com o advento do Código Civil de 2002, surgiram expectativas de uma remodelação ideológica e principiológica relativas ao seu campo de atuação, partindo-se do pressuposto de que as determinações legais introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, após a Constituição Federal de 1988, preconizariam uma visão muito mais antropocêntrica e condizente com a nova era jurídica de contemplação a preceitos que visem respeitar e garantir direitos fundamentais, bem como preservar o finalismo jurídico, desatrelando-se de regras positivas engessadoras para atender ao espírito e à real finalidade do que preceitua um determinado dispositivo legal.
Entretanto, o Código Civil vigente, em alguns pontos específicos, desconsidera os axiomas atuais e deixa ainda transparecer a velha e tradicional preponderância da proteção patrimonial a determinadas situações que se destina a disciplinar em detrimento de outros valores, ocasionando polêmicas e os mais diversos questionamentos acerca de suas determinações. Isso não é diferente quando o assunto em voga diz respeito à destinação dos proventos pessoais do trabalho de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens.
Numa análise prematura dos artigos 1.659, VI e 1.668, V, do Diploma Civil vigente, tem-se por certo que as verbas trabalhistas de cada cônjuge, que concretizou sua união nos moldes da comunhão parcial e universal de bens, não se comunicam ao casal, pertencendo única e exclusivamente ao nubente que as auferiu. Essa determinação tem ensejado reflexos jurídicos de toda ordem por diversos doutrinadores, a fim de assentar a polêmica e definir a melhor forma de aplicação do dispositivo em estudo a cada caso concreto.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por inúmeras vezes, tem decidido com base na interpretação literal do dispositivo em pauta, ou seja, conduz à linha de raciocínio de que os proventos do labor pessoal de cada cônjuge não se comunicam.
Tomando como base o contexto da sociedade contemporânea, no qual a pluralidade das pessoas possui patrimônio exclusivamente auferido dos frutos de sua atividade laboral, pode-se concluir que muitos doutrinadores entendem que a aplicação literal dos dispositivos em tela importaria na ausência total de patrimônio comum entre os consortes, mesmo nos regimes de comunhão.
A importância da proposição desta pesquisa está consubstanciada na relevância para as ciências jurídicas em assentar a celeuma da incomunicabilidade dos proventos, buscando uma maior segurança jurídica, bem como a certeza dos efeitos patrimoniais que a união marital implicará na vida dos consortes. Ressalta-se, também, que a grande maioria dos matrimônios realizados no nosso País possui como norteadores para disciplinar os aspectos patrimoniais dessa união os regimes de comunhão.
Com a ocorrência de tais circunstâncias, ganha especial relevo a preocupação em não confundir o patrimônio exclusivo, normalmente aquele trazido à nova união, com o acréscimo decorrente do crescimento patrimonial pela conjugação de esforços na realização plena da vida em comum dos nubentes.
Para o desenvolvimento da presente pesquisa, utilizar-se-á o método dialético e, como embasamento teórico, os princípios da isonomia entre os cônjuges, da liberdade e da razoabilidade e proporcionalidade, sua aplicação no direito de família e nos regimes de bens, e também a sua íntima ligação em diversos aspectos com o tema proposto.
Em seguida, buscar-se-á um maior aprofundamento do conteúdo dos artigos do Código Civil que dispõem sobre os regimes de bens, apresentando-se todas as suas distinções, peculiaridades e conseqüências advindas de sua adoção na união conjugal.
Ainda, realizar-se-á o levantamento das posições jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e doutrinárias no que concernem à incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão, e também apontamentos sobre os principais aspectos das argumentações em defesa de um ou outro ponto de vista, bem como o confronto de suas idéias, buscando assentar a celeuma jurídica que permeia as mesas de discussões relacionadas ao assunto tratado.
Por fim, importante ressaltar que, diante da complexidade envolvida no tema proposto, não nos é conveniente a pretensão de esgotamento do assunto, e sim apenas a exposição do problema, com todas as suas peculiaridades, e da necessidade de buscar uma solução adequada.
2. Princípios jurídicos aplicáveis aos regimes de bens
2.1. Princípio da isonomia entre os cônjuges
Em decorrência de uma abrupta evolução cultural a partir do século XIX, inúmeros paradigmas, nos mais variados âmbitos societários, vêm demonstrando-se obsoletos e merecedores de reformulações, que por si só já ocorrem à medida que vão sendo incorporados novos padrões comportamentais à sociedade contemporânea.
No direito de família se vislumbram claramente essas mudanças, especialmente no que concerne ao tratamento jurídico dispensado aos cônjuges, que estabeleceu com afinco uma isonomia de tratamento de forma a reconhecer a importância e a capacidade de ambos os consortes na mantença da sociedade conjugal em todos os seus aspectos, desde a educação da prole até o suporte financeiro.
Isso se deve em grande parte a uma nova postura feminina frente à sociedade marital, encarando juntamente com o cônjuge varão a árdua incumbência na busca do sustento da família ou, como em muitas oportunidades, chamando para si a responsabilidade do sustento do lar em decorrência do abandono do marido ou até mesmo do desemprego deste, em virtude das instabilidades na conjuntura econômica nacional.
A independência econômica da mulher se revela como o fator determinante de suas conquistas, traduzindo-se o seu poder aquisitivo num poderoso instrumento capaz de fazer valer suas opiniões e reivindicações perante todos em caráter definitivo e principalmente perante seu cônjuge, assumindo no seio familiar uma posição até então inédita, participativa e colaborativa, em detrimento do antigo comportamento impregnado de submissões.
Atento a essa silenciosa revolução, o legislador constitucional somente fez coroar a mulher moderna oficialmente com a recepção pela Carta Magna de alguns artigos alusivos a essa isonomia, pois, factualmente, as suas conquistas já haviam sido mais do que acatadas, reconhecidas e festejadas pela sociedade, consagrando a superação do caráter patriarcal do Direito de Família.
É o que refere Cristiano Chaves de Farias:
A Constituição Federal consagrou no caput do art. 5º (ao cuidar dos direitos e garantias individuais) que todos são iguais perante a lei, indicando o caminho a ser percorrido pela ordem jurídica. Já no inciso I do referido artigo resolve acentuar as cores da isonomia, explicitando que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". E mais, ao cuidar da proteção jurídica da família, no art. 226, volta a tratar da igualdade entre homem e mulher, deliberando que, "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". (2006, p. 66).
Ao passo em que ganhou terreno na seara familiar, a mulher atrai para si, como conseqüência natural dessa revolução comportamental, o dever recíproco de direção do lar e de suporte financeiro da família, obrigações anteriormente atribuídas exclusivamente ao marido. Entretanto, ao contrário do que possa parecer, essas atribuições conferidas à mulher não foram encaradas como uma obrigação imposta, e sim como uma oportunidade de demonstrar sua real e irrefutável capacidade de assumir a direção do lar conjuntamente e de maneira igualitária com seu companheiro, afastando de modo irreversível um tempo discriminatório e de submissão, aliando a igualdade e a liberdade com responsabilidade. Como ressalta Maria Berenice Dias (2006, p. 55) "a organização e a própria direção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (cc1511) tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração (cc1567). São estabelecidos deveres recíprocos e atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher (cc1566)".
Outro aspecto merecedor de destaque, ao se referir sobre o princípio em tela, encontra-se no inciso II, do artigo 1.641, do Código Civil de 2002, que diz que "é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de sessenta anos". Nas palavras de Washington de Barros Monteiro (2004, p. 216) "a principal modificação advinda do Código Civil de 2002 quanto às causas da imposição legal desse regime consistiu em igualar o limite de idade do homem e da mulher, em sessenta anos, em acatamento ao princípio constitucional da plena igualdade (Constituição Federal, art.5º, n. I, e art. 226, § 5º)".
Pode-se vislumbrar que o que traz o referido dispositivo em seu contexto diz respeito à equiparação dos sexos quando estabelece a igualdade quanto ao aspecto cronológico relacionado à imposição do regime de separação obrigatória de bens, mais uma vez revestindo o princípio da igualdade dos cônjuges com um conteúdo material e concreto capaz de modificar as relações, atribuindo-lhes efeitos jurídicos diversos.
2.2 Princípio da liberdade
Como preceito de grande relevância e fundamento básico para a formação da sociedade conjugal, a "liberdade é o poder do homem para agir numa sociedade político-organizada por determinação própria, dentro dos limites legais e sem ofensa a direitos alheios". (DINIZ, 1998, p.118 e 119).
Considerando juridicamente, tem-se a liberdade como um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, que diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". (BRASIL, 2005).
Nessa roupagem, consubstancia-se a liberdade como cláusula pétrea constitucional e, por conseguinte, impossível de modificação, inerente a todo e qualquer cidadão. Como afirma Maria Berenice Dias (2006, p.53) "a liberdade e a igualdade, correlacionadas entre si, foram os primeiros a serem reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana".
O casamento, como toda a sociedade, provoca conseqüências jurídicas. E ainda que não deva esse instituto possuir um cunho predominantemente patrimonial, faz-se necessário organizar as relações de bens entre os casais, visto que, principalmente após o desfazimento dessa sociedade, advém indefectivelmente conseqüências jurídicas concernentes ao patrimônio dos consortes.
O Código Civil vigente traz em seus dispositivos quatro modalidades de regimes patrimoniais. São eles: comunhão parcial de bens, comunhão universal, participação final nos aqüestos e separação de bens, suprimindo o regime dotal, hoje obsoleto no país, e incluindo o da participação final nos aqüestos. Os regimes não estão dispostos taxativamente no código civil, podendo as partes optar ou não por tais regimes, caracterizando sua disposição como meramente exemplificativa.
Importante ressaltar aqui a limitação da intervenção estatal, cabendo-lhe somente atribuir o regime da comunhão parcial de bens em caráter supletivo aos casais que, na ocasião de sua habilitação, silenciaram no que diz respeito ao regime patrimonial.
Entretanto, a faculdade de se contratar livremente quanto ao regime de bens não é de toda absoluta, devendo-se observar os limites da lei quando da realização do contrato, sendo proibidas cláusulas que se contraponham à norma legal, sob pena de nulidade dessas cláusulas ou, dependendo do caso, nulidade do pacto antenupcial. Como ressalta Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 116) "a livre estipulação deferida aos cônjuges também não é absoluta, pois o artigo 1655 do referido diploma declara nula a convenção ou cláusula dela que controvenha disposição em lei".
Reputam-se da mesma forma inválidas cláusulas que configurem afronta à moral, dispensa a elementos essenciais ao matrimônio, imposição de comportamento ou restrição de direitos a qualquer dos nubentes. Em corroboração a essa assertiva, Arnoldo Wald (2002, p. 108 e 109) escreve que "nos pactos antenupciais, as partes têm a mais ampla liberdade para incluir as cláusulas e condições que desejarem, desde que não atentem contra disposições legais imperativas e não prejudiquem direitos inerentes à situação ocupada pelas partes na família, como marido, mulher, ou como pais da prole comum".
Outra ressalva a essa liberdade de escolha está no artigo 1.641 e seus incisos, do Código Civil, que dizem ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, da pessoa maior de sessenta anos e de todos que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Essa imposição tem por escopo evitar eventuais prejuízos que possam ser ocasionados a uma das partes ou a terceiros em virtude do casamento.
Tal dimensionamento jurídico, que coíbe certos atos, não incorre de forma alguma em abalo ao lume de que se reveste o princípio da liberdade. Essas coibições apenas afastam a prática de abusos, que porventura possam ser cometidos a pretexto desse direito, em nome de uma segurança jurídica garantidora dos objetivos e da natureza da união conjugal.
No que diz respeito à mutabilidade do regime de bens na constância do casamento, consubstancia-se esta mais uma inovação do Código Civil vigente em contraponto à legislação de 1916, na qual vigoravam os preceitos da imutabilidade de regime patrimonial após a realização do casamento, a fim de resguardar interesses de uma das partes que pudesse sofrer prejuízo, tendo em vista ser considerada mais frágil na relação conjugal, e evitar o locupletamento da outra parte.
Hodiernamente, visto estar afastada a idéia de fragilidade em virtude do sexo dos nubentes e ser a igualdade conjugal uma realidade fática, a legislação contempla a idéia da mutabilidade justificada, que consiste na possibilidade de os nubentes, em mútuo consentimento, na constância do matrimônio e sob o controle jurisdicional, modificarem seu regime de bens de acordo com seus interesses, ressalvados os interesses de terceiros interessados.
Defensor ferrenho da idéia da mutabilidade dos regimes de bens, Rolf Madaleno acentua:
Considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes, apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro. (2001, p. 173).
São, também, pertinentes estas considerações acerca da liberdade dos cônjuges: tal faculdade acarreta, em inúmeras oportunidades, a total independência para qualquer dos nubentes no trato com questões patrimoniais que dizem respeito ao interesse de toda a família. Portanto, adverte-se que esses atos, por não se referirem apenas a direitos próprios, devem ser eivados de boa fé e responsabilidade sob o risco de se ocasionar graves e irreversíveis prejuízos que podem comprometer totalmente a estrutura financeira da sociedade familiar.
2.3 Princípio da razoabilidade e da proporcionalidade
A razoabilidade e a proporcionalidade consistem em primados constitucionais inseridos na Carta Política implicitamente e invocados cada vez com mais freqüência como norteadores hermenêuticos das normas legais com influência em todas as esferas do ordenamento. Atribui-se ampla e profunda inter-relação aos dois institutos, tanto que, em algumas doutrinas como a norte-americana, o princípio da proporcionalidade é chamado de razoabilidade, e, no nosso ordenamento jurídico, razoabilidade constitui uma característica essencial ao princípio da proporcionalidade, razão pela qual, para o desenvolvimento desse item e com o escopo de evitar eventuais redundâncias ao se referir a um e após ao outro instituto, ambos serão tratados conjuntamente, sobrepujando-se o princípio da proporcionalidade por ser este um instrumento de controle de excesso da atuação estatal frente aos direitos individuais e sociais. Conforme afirma Gilmar Ferreira Mendes (2000, p. 250) "a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade".
Tal instituto, desde sua origem, apresenta-se em sua substância eivado de valores inerentes à personalidade humana que asseguram ao homem uma liberdade intangível, oponível a todos, inclusive ao poder estatal. A evolução do ordenamento jurídico, por sua vez, começa a atingir grandes proporções, de modo a se insurgirem os questionamentos acerca da sujeição total dos casos cuja prestação jurisdicional era postulada às inflexíveis emoldurações de uma legislação positivada. Destarte, inicia-se um repensar do direito no que concerne à sua finalidade e às necessidades do caso concreto em detrimento da severa realização do que abstrata e genericamente era prescrito em lei. Assim insurge-se o princípio da proporcionalidade, e desde então vem inserindo valores e influenciando o direito brasileiro em todas as suas esferas de modo irrestrito.
Todavia, a despeito do imenso alcance desse instituto de modo a abranger todas as searas do ordenamento pátrio, faz-se mister ressaltar a pertinente relação do princípio da proporcionalidade com o direito de família, que, por seu caráter especialmente subjetivo, requer dos juristas e aplicadores do direito um tino muito mais aprofundado e complexo do que a mera aplicação daquilo que se encontra prescrito na legislação. Como se percebe, nessa esfera do direito, encontram-se os aspectos mais íntimos e sentimentais da pessoa humana, que são os assuntos inerentes às relações com seus entes queridos, fazendo com que todo e qualquer conjunto de normas positivadas, por mais prolixo e complexo que seja, mostre-se insuficiente na resolução dos casos concretos carentes de uma solução acautelada. Nesse sentido disserta Eduardo Carlos Bianca Bittar:
Uma mecânica subsunção do fato à norma criaria uma situação de injustiça para aquele que é parte em um processo público. Recorre-se, portanto, a um critério de abrandamento da rigidez legislativa fazendo-se o julgador como se o próprio legislador fosse caso este estivesse diante da concretude casuística. O apelo à razão é o mesmo que o apelo à natureza das coisas que se encontram em profunda mutação, diante de relativa estabilidade das leis. (2005, p.118).
Consubstanciando-se numa regra cogente importante não apenas no controle da função legiferante de normas abstratas, mas também destinado à autoridade judiciária encarregada de concretamente aplicá-las, o princípio da proporcionalidade, ainda que pertinente a todos os direitos individuais, dispensa ao direito à liberdade e ao direito à propriedade uma chancela especial de modo a ser mais incisivo em sua atuação. Para Helenilson Cunha Pontes (2005, p. 241) "o princípio da proporcionalidade talvez represente a mais solene garantia constitucional de concretização dos direitos individuais, ao limitar e nortear a atuação estatal em todos os seus níveis, sobretudo no que tange à disciplina de direitos relativos à liberdade e propriedade".
E é neste ponto, o de contrabalanço dos direitos fundamentais em litigância, que se pode inicialmente vislumbrar a estreita relação do referido preceito com a temática abordada nesse trabalho: quando se fala em regime de bens, há a referência sobre as disposições que tutelam toda a relação patrimonial entre os nubentes na constância do matrimônio e, por conseguinte, suas conseqüências quando de um possível desfazimento da sociedade conjugal.
Sendo o princípio da proporcionalidade um valioso instrumento na busca da segurança jurídica, na ponderação entre direitos fundamentais e na garantia do direito de propriedade em todos os seus aspectos, muito relevante e de grande contribuição se faz a sua relação com o presente trabalho, pois seu objeto de estudo é a destinação patrimonial advinda dos proventos pessoais de cada cônjuge quando do rompimento da relação conjugal (especificamente a relação disciplinada pelos regimes de comunhão). E, por vezes, as indagações e controvérsias a respeito desses valores são tamanhas que ensejam a busca da tutela jurisdicional a fim de dirimir seus conflitos. Nesse caso, representando o Estado, entra em cena o magistrado para desempenhar a árdua tarefa de decidir sobre a partilha desses proventos.
O Código Civil atual, em seu artigo 1.659 caput e inciso VI, dispõe que na separação do casal, cuja união foi regida pela comunhão parcial de bens, os proventos pessoais de cada cônjuge são incomunicáveis. Porém, como referido anteriormente, no direito de família não basta a simples aplicação do dispositivo. O assunto exigirá do magistrado muito mais do que um simples enquadramento do caso concreto ao que preceitua a norma, pois, no caso em tela, corre-se o grande risco de se cometer injustiça, prejudicando uma das partes, visto que tais valores muitas vezes fazem parte de uma vida de economias, talvez décadas de privações, a fim de se alcançar um grande montante e realizar um projeto de vida sonhado e que, por conta da separação, vê-se desfeito.
O princípio da proporcionalidade vem, nesses casos, em socorro ao magistrado, propiciando um adequado embasamento e trazendo elucidações na persecução de uma decisão justa. Pertinente ressaltar que há muito se fala em proporcionalidade relacionada à busca da segurança jurídica, cabendo destacar as brilhantes palavras de Aristóteles:
O justo nesse sentido é, portanto, o proporcional, e o injusto é aquilo que transgride a proporção. O injusto pode, assim, incorrer no excesso ou na deficiência (no 'demasiado muito' ou no 'demasiado pouco'), o que é realmente o que percebemos na prática, pois quando a injustiça é feita, aquele que a faz (o agente) detém o excessivo do bem em pauta e a vítima da injustiça, detém o deficiente ou insuficiente desse bem, embora seja vice versa no caso de um mal, porque um mal menor comparado a um maior é tido como um bem, uma vez que o menor de dois males é mais desejável do que o maior; entretanto, o que é (efetivamente) desejável é bom e quanto mais desejável for, maior bem será. (2002, p.142 e 143).
Visando o justo é que o magistrado pode firmar-se na proporcionalidade como um baluarte a servir diretamente para aplicação de uma decisão que atenda aos preceitos buscados pelo direito. E para ilustrar essa problemática enfrentada pelo magistrado, no sentido de procurar evitar o cometimento do injusto ao caso concreto, pode-se citar algumas indagações oriundas dessa questão:
Uma delas seria como determinar a situação patrimonial de um cônjuge que, antes da separação, por consenso familiar, dedicava grande parte de sua vida aos cuidados com a prole, nada percebendo de bens em virtude da inexistência de salário próprio, enquanto o outro provia o sustento comum e adquiria bens com os frutos de seu trabalho, conservando parte de sua remuneração em espécie em alguma aplicação. Seria justo considerar incomunicável o que fora astutamente reservado, conferindo esse valor somente ao cônjuge que o poupou sem nada atribuir à outra parte?
Ou, então, como considerar a incomunicabilidade total dos proventos no caso de um cônjuge oportunista, que poupa e investe os rendimentos obtidos com o labor, enquanto o outro suporta total ou quase totalmente a mantença familiar?
Ainda, seria adequada a comunicabilidade, desconsiderando o texto legal, para a situação do cônjuge que não mede esforços na boa administração pecuniária, garantindo o sustentáculo patrimonial familiar, enquanto o outro, pródigo, canaliza seus ganhos para seu próprio deleite e superfluidades pessoais?
É, portanto, necessário se inferir que a justiça envolve, ao menos, quatro termos, ou seja, especificamente: dois indivíduos para os quais há justiça e duas porções que são justas. E haverá a mesma igualdade entre as porções tal como entre os indivíduos, pois não sendo as pessoas iguais, não terão porções iguais - é quando os iguais detêm ou recebem porções desiguais, ou indivíduos desiguais (detêm ou recebem) porções iguais que surgem conflitos e queixas. (ARISTÓTELES, 2002, p.141).
Aristóteles, em sua grandiosa obra Ética a Nicômaco, referência da literatura jurídica mundial, associa a justiça à proporcionalidade, sendo esta comparada a uma razão aritmética de modo a ser estabelecida levando-se em consideração o contexto no qual um fato está inserido. O fato, por sua vez, é um acontecimento real, e o contexto é o conjunto de circunstâncias que cercam esse acontecimento. Quando se tem a tutela de um conflito, parte-se de uma análise desse contexto para apurar as relações entre os indivíduos e se estabelecer o que cabe a cada um de acordo com o seu envolvimento, seu merecimento e sua necessidade.
Dessa forma, seja-nos permitido aduzir que se tem na proporcionalidade um poderoso instrumento a serviço da jurisdição das famílias, sendo possível avaliar qual a melhor interpretação casuisticamente considerada, devendo-se recorrer a esse preceito sem hesitar para se alcançar uma justiça distributiva de caráter proporcional, dando a exata estimativa para a participação de cada indivíduo no caso concreto.
3. Regimes patrimoniais de comunhão
3.1. Comunhão parcial de bens
O regime da comunhão parcial é considerado pela doutrina atual o que melhor atende aos princípios de justiça e às finalidades do casamento. Através dele, realiza-se a divisão dos bens adquiridos no casamento (excetuados alguns bens dispostos no código, que serão vistos adiante) por serem considerados frutos da mútua colaboração entre os consortes. Sua regulamentação está disposta entre os artigos 1.658 e 1.666 do Código Civil vigente.
Também denominado de regime de comunhão dos aqüestos, foi admitido como o regime oficial do país na ausência de estipulação diversa entre os cônjuges a partir da Lei do Divórcio - n.º 6.515 de 26-12-1977 -, substituindo a comunhão universal que até então vigorava. Essa modificação vinha expressa no artigo 50 da referida lei e foi incluída no Código Civil de 1916 em seu artigo 258, sendo mantida pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 1640, que diz: "não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial". (BRASIL, 2005).
Dessa forma, se a opção dos cônjuges quanto ao regime de bens for pela comunhão parcial, basta que se realize uma referência na petição de casamento no processo de habilitação, fazendo-se necessário pacto nupcial por escritura pública nas demais escolhas, conforme o parágrafo único do referido artigo.
Acerca do regime da comunhão parcial, Sílvio Rodrigues, citado na obra de Arnaldo Rizzardo (2004, p.633) aduz que "este regime, ao estabelecer a comunhão dos aqüestos, estabelece uma solidariedade entre os cônjuges, unindo-os materialmente, eis que seus interesses tornam-se comuns a partir do casamento, o que infunde maior autenticidade nos desideratos que determinam a aproximação de um casal. De outro lado, permite conservar a individualidade de cada cônjuge e uma justa divisão dos bens quando da separação judicial".
Assim, constitui-se a comunhão parcial numa mescla do regime da comunhão universal e da separação de bens, formando, por conseguinte, duas classes de bens: uma formada pelo patrimônio exclusivo dos consortes e outra formada pelos bens comuns a ambos, devendo prevalecer a sua comunicabilidade quando do desfazimento da união.
O artigo 1.660, do Código Civil, estabelece os bens comunicáveis na comunhão parcial. Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 369) "os dispositivos não apresentam maior dificuldade de entendimento".
Inobstante a sua fácil compreensão, cabem algumas considerações sobre a matéria.
O inciso I, do artigo 1.660, refere-se aos bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que em nome de um dos cônjuges. Nesse caso, presume o ordenamento que o patrimônio fora adquirido com a colaboração mútua do casal, nada importando que o bem se transcreva em nome de um ou de outro consorte. A esse respeito, destaca-se a opinião de Arnaldo Rizzardo (2004, p. 639) que ensina: "o simples convívio, e mesmo que um dos cônjuges não preste a menor colaboração na obtenção dos rendimentos ou em trabalhos no lar, o patrimônio é comum, o que gera, seguidamente, profundas injustiças".
O inciso II trata dos bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior. Pode-se citar como exemplo o que se aufere em virtude de jogos, loterias, disputas e, ainda, descobertas, criações artísticas, entre outros.
O inciso III dispensa comentários, já que deixa bem visível a referência a doações, legados ou heranças feitas a ambos os cônjuges, denotando-se claramente que o autor da liberalidade, ao fugir da regra e atribuir bens explicitamente ao casal, deseja beneficiar o conjunto familiar e não somente um dos dois.
O inciso IV relata a comunicabilidade das benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge. Se realizadas tais benfeitorias durante o casamento, pressupõe-se sejam estas custeadas com a participação do marido e da mulher, de modo que o valor despendido será pertencente igualitariamente a ambos os consortes.
O inciso V, do artigo 1.660 do diploma civil de 2002, refere-se aos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. A comunhão parcial tem por natureza excluir o patrimônio anterior e confundir os posteriores à realização do casamento. Por isso, quaisquer frutos de bens, independentemente se comuns ou particulares, se percebidos na vigência da união ou nesse tempo se configurar o direito à sua percepção (como por exemplo, aluguéis), são pertencentes ao casal.
Vistos os bens comuns, serão expostos agora os bens que ficam excluídos da partilha quando da separação. Os artigos 1.659 e 1.661 do Código Civil vigente (artigos 269, 270 e 272 do diploma de 1916) trazem a lista completa desses bens.
O inciso I, do artigo 1.659, refere-se aos bens que cada cônjuge possuir ao casar e aos que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e aos sub-rogados em seu lugar. No que concerne aos bens que cada cônjuge possui ao casar, sua exclusão se mostra evidente, pois é da essência da comunhão parcial que haja comunicabilidade dos bens adquiridos somente após o matrimônio. Já a segunda parte do inciso (e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão) merece algumas observações:
No caso da doação, o doador tem a faculdade de eleger o destinatário de sua liberalidade. Se assim o fez, dedicando patrimônio a apenas um dos consortes, o outro não poderá participar desse benefício, visto que, se fosse da vontade do doador, expressaria sua intenção de beneficiar o casal. Já no relativo aos auferimentos por sucessão, importante citar as palavras de Sílvio Rodrigues, que explica:
Figure-se o exemplo do nubente, herdeiro necessário, cujo ascendente é vivo por ocasião do casamento. Embora a legítima a que terá direito por morte do ascendente não passe de uma expectativa de direito, a causa de sua aquisição, por subseqüente morte daquele, constitui uma perspectiva cuja probabilidade de ocorrer é imensa. Ademais, trata-se de causa de ganho anterior ao casamento. (2004, p.179).
A causa de ganho do patrimônio por sucessão é o vínculo familiar com o ascendente de um dos cônjuges que obviamente se originou muito antes de os nubentes se conhecerem. Por esse motivo, torna-se evidente e justificada a exclusão de tais ganhos. Visivelmente desnecessária se mostra a última parte do inciso que diz "e os sub-rogados em seu lugar", visto que o inciso posterior já trata dessa hipótese com suficiente abrangência.
O inciso II trata de bens adquiridos na constância do casamento, com valores exclusivos de um dos cônjuges, substituindo um bem particular por outro. Ao se referir a esse inciso, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 234) refere que "é a aplicação do princípio da sub-rogação. Vende-se um bem que o cônjuge tinha quando casou, e compra-se outro em negócio celebrado durante a sociedade conjugal. Perdura a manutenção do patrimônio próprio, embora se altere a espécie de bens".
Portanto, os bens pertencentes exclusivamente a um dos cônjuges podem ser vendidos para a aquisição de outros bens que se revestirão com a mesma incomunicabilidade dos substituídos. Porém, uma ressalva faz-se imprescindível ao abordar essa matéria. Quando se substitui um bem particular por outro bem de maior valor, mediante o pagamento da diferença, o valor referente a essa diferença se comunica aos consortes.
As obrigações anteriores ao casamento constam no inciso III do referido artigo. Se o patrimônio anterior à união não deve se comunicar, assim também devem ser as dívidas contraídas antes do casamento. Tal dispositivo tem a finalidade de salvaguardar o patrimônio do nubente que nada tem a ver com as dívidas passadas e particulares de seu par, elidindo, assim, uma possível ação de credores.
Todavia, há um ponto controvertido pela doutrina ao abordar esse assunto. Os juristas contrapõem-se com relação às dívidas contraídas para pagar os aprestos do casamento ou que se reverteram em proveito comum. De um lado, defendendo a exclusão dessas dívidas em qualquer hipótese, está Sílvio Rodrigues, que discorre:
Pelo regime da comunhão parcial, destaca-se o patrimônio anterior ao casamento. Assim separado o acervo de cada um previamente existente, também as obrigações anteriores são exclusivas do respectivo cônjuge. E nem mesmo as obrigações em função do casamento, se assumidas por apenas um, serão estendidas ao outro cônjuge, diferentemente do que ocorre no regime da comunhão universal. (2004, p. 180 e 181).
Ainda nessa mesma linha de pensamento, Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 367) aduz que "na comunhão parcial, não se comunicam as obrigações de cada consorte, ainda que contraídas para os aprestos".
De outra banda, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 635) ressalva que a dívida anterior ao casamento "apenas entra na responsabilidade comum se proveniente de despesas com os aprestos do casamento, ou se reverterem em proveito comum".
Parece-nos mais razoável a segunda assertiva, já que, inobstante a causa da obrigação seja anterior ao casamento, a cerimônia pertence a ambos os consortes, e o benefício proveniente da dívida aproveita os dois.
As obrigações decorrentes de atos ilícitos também são excluídas, segundo o inciso IV, salvo se revertidas em proveito do casal. A época em que ocorreu o ato ilícito é indiferente, nesse caso, obrigando-se somente o cônjuge causador do ato. Importante se faz a contribuição de Carvalho Santos, citado na obra de Arnaldo Rizzardo, (2004, p. 635) afirmando que "a responsabilidade pelo ato ilícito é pessoal e, por isso mesmo, como conseqüência, pessoal é a dívida resultante dessa responsabilidade".
Com isso, o cônjuge que não deu causa ao ato ilícito se exonera da obrigação de repará-lo, respondendo o causador com seus bens particulares e sua meação no patrimônio comum. Porém, se ambos obtiverem benefício decorrente do ato ilícito, há obrigação recíproca de reparação.
Conforme o inciso V, os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão também gozam de incomunicabilidade na partilha. Essa exclusão se deve ao caráter personalíssimo desses bens, sendo que somente devem pertencer a um dos consortes em sua individualidade ou utilizada para sua profissão. Ainda, tais objetos não devem possuir um valor muito elevado de modo a representar uma grande monta em relação aos bens do casal e não devem ter sido adquiridos com esforço comum.
Nos incisos VI e VII constam os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge e as pensões, meio soldos, montepios e outras rendas semelhantes, matéria muito discutida e fruto de inúmeras controvérsias na doutrina e jurisprudência atuais. A incomunicabilidade concernente a esses rendimentos é o tópico desse trabalho e será minuciosamente analisada no decorrer da pesquisa.
Os bens cujo título tenham uma causa anterior ao casamento também são incomunicáveis, como refere o artigo 1.661 do Código Civil de 2002. Essa disposição se mostra um tanto óbvia, visto que o artigo 1.659 e seus incisos exaurem as hipóteses de exclusão e em suas entrelinhas já trazem o conteúdo do dispositivo. Entretanto, esse artigo pode ser considerado como um reforço de que as aquisições anteriores ao matrimônio, mesmo que pendentes à época de sua celebração e percebidas posteriormente, estarão excluídas do rol dos bens comunicáveis.
Quanto aos bens móveis, estabelece o artigo 1.662 a presunção de que foram adquiridos na constância do casamento, devendo haver a sua comunicabilidade. Contudo, como expressa o dispositivo, a idéia de que são pertencentes ao casal é presumida, podendo qualquer dos nubentes que deseja reservar para si a propriedade de bens móveis que trouxer à união, guardar documentos que comprovem sua aquisição exclusiva e anterior ao matrimônio ou elaborar um inventário minucioso sobre tais bens, com o reconhecimento através da assinatura de ambos. Ainda, os documentos a serem utilizados para afastar a comunicabilidade dos móveis devem apresentar sua perfeita descrição e individualização e a data de sua aquisição.
Para concluir, resta dispensar uma explicação acerca da administração dos bens no regime da comunhão parcial, aduzindo que qualquer dos cônjuges pode exercê-la livremente, consoante artigo 1.663 do novo Código Civil, necessitando a anuência expressa de ambos os consortes somente em negócios que envolvam imóveis. Porém, em casos de malversação do patrimônio, a gerência pode ser atribuída judicialmente a somente um dos nubentes.
3.2. Comunhão universal de bens
A comunhão universal, com sua origem consuetudinária dos primeiros tempos da nação lusitana, era o regime legal do Brasil na ausência de deliberação das partes, até ser substituída pela comunhão parcial, com o advento da Lei do Divórcio. Sua regulamentação encontra-se nos artigos 1.667 a 1.671 do diploma civil de 2002 e, em sua essência, todos os bens se comunicam, com poucas exceções, traduzindo-se esses bens numa massa única formada pelo patrimônio de ambos os consortes.
Compreendidos nessa massa estão os bens presentes e futuros, inclusive as dívidas do casal, pois, como afirma Washington de Barros Monteiro (2004, p. 198) "não é só o ativo dos cônjuges que se comunica, também o passivo. A comunicação opera-se igualmente no bom e no mau, no certo e no duvidoso".
Além dessa comunicação extremamente abrangente, outra peculiaridade desse regime é considerar todos os bens integrantes da massa insuscetíveis de retorno à propriedade originária quando do desfazimento da união. Conforme as explicações de Arnaldo Rizzardo (2004, p. 643) "há praticamente uma despersonalização do patrimônio individual, surgindo um patrimônio indivisível e comum, sem definir, especificar, ou localizar a propriedade nos bens".
São requisitos para essa universalização dos bens na sociedade conjugal o casamento válido e a convenção por instrumento público, reconhecendo-se, a partir daí, quotas partes iguais atribuídas a um e a outro nubente, relativas a cada bem integrante dessa comunhão. A esse respeito, Caio Mário da Silva Pereira contribui:
Na constância do casamento, nenhum deles tem direito exclusivo a qualquer das coisas que se acharem em estado de indivisão. É igualmente vedado a um ou outro apossar-se de qualquer delas, privando o consorte de sua utilização. A ambos, entretanto, compete defender a coisa possuída contra as vias de fato ou pretensões de terceiros. Somente com a cessação da sociedade conjugal, e liquidação da comunhão, é que vem a caber a cada um dos consortes (ou respectivos herdeiros) os bens que se comportam na sua meação. (2002, p.135 e 136).
E por referirmo-nos ao fato de a liquidação da massa de bens somente ocorrer em casos de cessação da união, devemos frisar que as formas dessa cessação estão estritamente dispostas no artigo 1.571 do diploma civil vigente. São elas: a morte de um dos cônjuges, a separação e o divórcio e a sentença de nulidade ou anulação do casamento.
Inobstante a essência da comunhão universal traduzida pela vasta comunicação dos bens, há algumas ressalvas que fogem à regra. Essas exceções, segundo Washington de Barros Monteiro, "são ditadas pelo caráter personalíssimo dos efeitos em questão, ou representam natural decorrência de sua própria índole". (2004, p. 198).
O jurista Fábio Ulhoa Coelho (2006, p. 75) traz brilhante explicação acerca da razão dessas exceções, aduzindo que "sempre preserva a lei uma margem mínima de incomunicabilidade de bens, em atenção à proteção dos cônjuges, que normalmente estão embriagados pelo espírito de desprendimento deles exigido às vésperas do matrimônio e não têm, por isso, plena isenção para tratar dos assuntos patrimoniais com racionalidade".
O artigo 1.668 e seus incisos explicitam de forma taxativa o rol de bens que extravasam o âmbito de comunicabilidade estabelecido pela comunhão universal.
O seu inciso I se refere aos bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar. Mostra-se de fácil entendimento esse dispositivo, visto que o testador ou doador, ao inserir referida cláusula, evidentemente objetivou excluir o outro cônjuge da liberalidade ofertada. E para esclarecer um ponto de grande importância quando se aborda essa matéria, Fábio Ulhoa Coelho (2006, p. 76) ressalta que, de igual forma, se gravado o bem com cláusula de inalienabilidade, esta importa implicitamente sua incomunicabilidade. Por outro lado, a cláusula de incomunicabilidade, por si só, não impede a alienação do bem gravado. No que concerne à segunda parte do inciso, trata-se mais uma vez de sub-rogação real, como explicado anteriormente ao analisarmos a comunhão parcial.
Os bens gravados de fideicomisso e os direitos do fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva, estão explícitos no segundo inciso do artigo em estudo. Ocorre a situação na qual o fideicomitente (autor da liberalidade) designa uma mesma herança ou legado na ordem sucessiva para duas pessoas, condicionando a transferência da propriedade do bem da primeira pessoa para a segunda a um acontecimento futuro. Enquanto não realizada a condição determinada pelo fideicomitente, a incomunicabilidade da herança ou legado mostra-se óbvia por duas justificativas:
Em relação ao fiduciário (primeiro sucessor), porque sua característica de proprietário está condicionada a um acontecimento futuro ou à sua própria morte, caracterizando-se sua propriedade, segundo Arnaldo Rizzardo (2004, p. 645), como "restrita e solúvel", devendo conservar o bem para depois restituí-lo ou entregar ao fideicomissário.
No que concerne ao fideicomissário (segundo sucessor), porque precisa aguardar a realização da condição ou a morte do fiduciário para se tornar o proprietário do bem, traduzindo-se sua relação com a herança ou legado até a implementação do evento como mera expectativa de direito, visto que pode morrer antes do fiduciário, ocasionando a caducidade do fideicomisso, caso em que se estabelece de forma irrestrita e definitiva a propriedade em favor deste último. Realizando-se o implemento da condição ou ocorrendo a morte do fiduciário, a propriedade consolida-se definitivamente em favor do fideicomissário, passando o bem, a partir daí, a ser comunicável ao seu cônjuge.
O inciso III trata da exclusão das dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos ou reverterem em proveito comum. O passivo contraído anteriormente à união deve ser adimplido pelo cônjuge devedor com seus bens particulares ou com os que trouxer para a sociedade. A despeito da inexistência de patrimônio exclusivo e do fato de formarem os bens comuns uma massa indissolúvel durante a constância do casamento, injusto seria ver-se o credor impossibilitado de cobrar seu crédito antes do desfazimento da união. Portanto, a exigibilidade de tal crédito é imediata, e, como ensina Sílvio Rodrigues (2004, p. 188) "a execução recai somente sobre a meação do devedor, exonerando-se a meação do outro cônjuge".
Contudo, se a dívida contraída for revertida em proveito comum, como as despesas de viagem do casal, ou decorreu para os aprestos matrimoniais, como a compra dos móveis, o débito é de ambos os consortes, devendo ser suportado de forma igualitária.
As doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade também são excluídas da comunhão, consoante inciso IV do artigo 1.668. Essa exclusão se mostra um tanto desnecessária, à medida em que a liberalidade com cláusula de incomunicabilidade é abordada com suficiente amplitude no inciso I do dispositivo em tela. Referindo-se especificamente ao inciso IV, com muita propriedade, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 646) chama atenção para as hipóteses de fraude à execução ou contra credores nas quais um dos cônjuges, na tentativa de frustrar o adimplemento de uma dívida própria, doa seus bens ao outro consorte. Neste caso, a liberalidade pode ser considerada ineficaz ou desconstituída por meio de ação pauliana.
O inciso V considera como exclusivos os bens referidos nos incisos V a VII do artigo 1.659 do novo Código Civil. Relativo ao inciso V do artigo 1.659, a matéria já foi exaurida quando abordada a comunhão parcial. Quanto aos incisos VI e VII, repetindo o já mencionado, serão abordados no decorrer da pesquisa.
Por fim, vistos os bens excluídos da comunhão universal, importante lembrar que seus frutos não gozam da mesma incomunicabilidade quando percebidos na vigência da união ou pendentes à época da dissolução, tornando-se bens comuns. No que compete à administração de todos os bens comuns, essa se rege nos mesmos termos da comunhão parcial, sendo de incumbência de ambos os cônjuges, atribuindo-se, por sua vez, a gerência dos bens particulares ao seu respectivo proprietário, ressalvadas estipulações diversas nos pactos antenupciais.
4. A incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão
4.1. Esclarecimentos acerca da abrangência da expressão "incomunicabilidade dos proventos trabalhistas"
O presente trabalho tem como objeto principal de estudo dois dispositivos do Código Civil de 2002, quais sejam: o artigo 1.659 e seu inciso VI e o artigo 1.668 e seu inciso V. O primeiro dispositivo comporta o enunciado que determina a exclusão dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge que concretizou seu casamento escolhendo como regime patrimonial a comunhão parcial de bens. Já o segundo trata da exclusão desses mesmos proventos para o cônjuge que se casou elegendo como regime patrimonial a orientar sua união a comunhão universal de bens. Este último, porém, determina tal exclusão de forma indireta, reportando-se ao primeiro dispositivo, que é alusivo à comunhão parcial de bens, para estabelecer idêntica situação no caso da comunhão universal.
Presume-se, por conseguinte, que quando se trata da partilha dos auferimentos laborais, tanto na comunhão parcial de bens como na comunhão universal, os efeitos são os mesmos. Por essa razão, ao se tratar especificamente do assunto neste capítulo, procurar-se-á referir-se à incomunicabilidade dos proventos laborais de maneira genérica, de modo a abranger os dois regimes patrimoniais, inobstante alguma citação trazida ao trabalho faça referência específica a um ou outro regime de comunhão.
Primeiramente, cabível uma breve conceituação, com o escopo de esclarecer alguns pormenores acerca da expressão "a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge", que será utilizada.
Quanto à expressão "incomunicabilidade", seu sentido no trabalho em tela é de fácil compreensão, podendo-se deduzir o significado sem maiores dificuldades. A despeito da singeleza de seu entendimento e para ilustrar com maior propriedade o conteúdo de sua significação, cita-se as palavras de Antonio de Paulo (2002, p. 166), que diz que incomunicabilidade é o "caráter de certos bens que, por determinação legal ou por disposição de vontade, não entram na comunhão do patrimônio".
Portanto, denomina-se incomunicável todo o bem, móvel ou imóvel, que, por lei ou convenção dos nubentes, não ingressa no rol dos bens destinados à partilha quando da separação conjugal, pertencendo na sua integridade a um só cônjuge.
Por sua vez, a palavra "proventos" veio com o Código Civil de 2002 em substituição à expressão "frutos cíveis do trabalho", da qual se utilizava o legislador de 1916 para se referir à exclusão das verbas trabalhistas nos regimes de comunhão. Se considerado o sentido técnico-jurídico atual da palavra "proventos", exprime a idéia de auferimentos obtidos com a aposentadoria do servidor público ou empregado. No entanto, quando o legislador se utilizou dessa expressão no inciso VI do artigo 1.659, visou uma significação mais abrangente. Veja-se a explicação de Paulo Nader:
Na linguagem técnica, provento significa os rendimentos auferidos pelos inativos; todavia, no inciso VI do artigo 1659, o legislador deu ao vocábulo um sentido mais amplo, a fim de abranger toda a espécie de recebimento em função de emprego, público ou privado (vencimentos, salários), de aposentadoria ou trabalho profissional, como honorários e pro labore. (2006, p. 476).
Cabe também ressaltar as palavras de Débora Vanessa Caús Brandão (2007, p. 210), que refere que "a lei empregou a palavra 'provento' genericamente, a fim de englobar todas as formas de remuneração por trabalho prestado".
Para todos os efeitos, então, ao se referir à expressão em pauta no presente trabalho, far-se-á de modo que abranja as aposentadorias em geral e também toda a remuneração obtida pelo trabalho prestado, seja o salário mensalmente percebido, o FGTS, a participação nos lucros, o PIS, entre outros.
4.2 Visão doutrinária e jurisprudencial da incomunicabilidade dos proventos nos regimes de comunhão
Como visto anteriormente, o artigo 1.659, inciso VI, e o artigo 1.668, inciso V, ambos do Código Civil atual, estabelecem a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes patrimoniais de comunhão no ordenamento jurídico brasileiro. Numa análise literal e prematura dos dispositivos (os quais já foram contemplados por inúmeras vezes sob essa ótica pelos tribunais brasileiros), dessume-se se constituir a incomunicabilidade como característica inerente à grande maioria dos bens auferidos na constância do casamento, levando-se em conta que no contexto da sociedade contemporânea quase a totalidade do que se aufere provém da atividade laboral.
Por conta disso, insurge-se a celeuma jurídica em razão da incongruência que se estabelece, comparando-se a consideração literal do que determinam os dispositivos com a finalidade da união conjugal regida pelos moldes das comunhões, visto que, na essência desses regimes, praticamente o todo patrimonial é comunicável.
Em suas explanações referentes ao assunto, Débora Vanessa Caús Brandão (2007, p. 210) lança uma dúvida, questionando sobre "como harmonizar a exclusão dos proventos do cônjuge da comunhão com o próprio regime da comunhão parcial, cuja essência é a comunhão do adquirido na constância do casamento".
Destarte, enseja-se vultosa discussão sobre o assunto, traduzida pela divergência de pensamentos jurisprudenciais e doutrinários, fulcrados nos mais diversos argumentos e abordando a problemática sob os mais distintos aspectos, buscando uma resposta adequada, a fim de assentar a celeuma, estabelecendo de forma definitiva e uniforme a preponderância de um ou de outro posicionamento. A complexidade que gira em torno da matéria é extremamente acentuada a ponto de fazer titubear os próprios juristas, influenciados ora por uma, ora por outra corrente. Outros como Sílvio de Salvo Venosa, por exemplo, preferem se reservar à imparcialidade:
O novel legislador foi expresso, encerrando a celeuma, estatuindo que se exclui da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (art. 1659, VI). O Projeto nº 6960, porém, exclui esse tópico do rol, adotando posição contrária, para evitar com isso problemas de ordem prática. Na verdade, é difícil precisar o momento exato em que os valores deixam de ser proventos do trabalho e passam a ser bens comuns, volatizados para atender as necessidades do lar conjugal. (2005, p. 368).
Em meio aos questionamentos sobre a destinação das verbas trabalhistas, ganha especial relevo a preocupação em não confundir o patrimônio exclusivo com o que deve ser partilhado de forma igualitária pelos consortes em virtude da conjugação de esforços na realização plena da vida em comum. E, na ânsia de assentar essa polêmica, as opiniões divergem, baseadas numa gama de argumentos que se multiplicam em função de fundamentar um ou outro posicionamento, que se revela, em síntese, contra ou a favor da incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge.
Para melhor ilustrar a divergência doutrinária e jurisprudencial que habita as mesas de estudos de grande parte dos civilistas brasileiros no que concerne a essa matéria, serão expostas algumas das mais respeitadas opiniões acerca do assunto, enfatizando-se os principais aspectos e peculiaridades constantes nas explanações de cada autor. De um lado, entre os que se contrapõem à incomunicabilidade dos proventos nos regimes de comunhão, encontram-se nomes de grande peso, como Sílvio Rodrigues, Paulo Nader, Rolf Madaleno, Maria Berenice Dias, Carlos Roberto Gonçalves e Alexandre Guedes Alcoforado Assunção.
Manifestando-se sobre o assunto, Maria Berenice Dias considera a exclusão dos proventos nos regimes de comunhão como absolutamente desarrazoada:
Flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte as suas economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. O casamento gera comunhão de vidas (CC 1511). Os cônjuges têm dever de mútua assistência (CC 1566 III) e são responsáveis pelos encargos da família (CC 1565). Assim, se um dos consortes adquire os bens para o lar comum, enquanto o outro apenas acumula as reservas pessoais advindas de seu trabalho, os bens adquiridos por aquele serão partilhados, enquanto o que este entesourou resta injustificadamente incomunicável. De regra, é do labor pessoal de cada um que advêm os recursos necessários à aquisição dos bens conjugais. (2006, p. 206).
A autora atenta para o caso de quem não tem atividade remunerada, como quem se dedica ao trabalho doméstico, o que na maioria das vezes é feito pela mulher. Ressalta a importância dessa atividade para a constituição do patrimônio conjugal, por possibilitar a ocorrência de sobras orçamentárias.
Sob essa mesma ótica se posiciona Rolf Madaleno, censurando a legislação no que se refere à incomunicabilidade de proventos trabalhistas no regime da comunhão parcial de bens. Entende que tais disposições desestimulam a colaboração mútua dos cônjuges no escopo de formar patrimônio, pois o que assumir a mantença familiar restará lesado, ao passo que o outro, que economizou, locupletar-se-á às suas custas. Assevera também o autor que o legislador de 2002, na tentativa de corrigir as falhas do Código Civil de 1916, cometeu flagrante injustiça ao inserir o inciso VI do artigo 1.659 no Diploma Civil atual:
Antes tivesse o legislador abortado a ressalva de incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, ainda que no regime da comunhão parcial, quando se sabe que, de regra, é do labor pessoal de cada cônjuge que advém os recursos necessários para a aquisição dos bens conjugais Premiar o cônjuge que se esquivou de amealhar patrimônio, preferindo conservar em espécie os proventos de seu trabalho pessoal é incentivar uma prática de evidente desequilíbrio das relações conjugais econômico-financeiras, mormente porque o regime matrimonial de bens serve de lastro para a manutenção da célula familiar. (MADALENO, 2005, p. 181).
Há também os que refutam a incomunicabilidade dos proventos, todavia sem criticar os dispositivos em estudo, apenas atribuindo-lhes uma interpretação distinta da literal. Aduzem que a incomunicabilidade a que se reporta o inciso VI diz respeito apenas ao direito de percepção desses numerários, passando esses a serem comuns a partir de seu recebimento. A esse raciocínio é adepto Sílvio Rodrigues, que, por sua vez, opta pela manutenção dos dispositivos:
O direito ao recebimento de tais valores, ou seja, à pensão, montepio, meio-soldo, salários etc., não se comunica com o casamento, em virtude de seu caráter personalíssimo. Mas, recebida a remuneração, o valor obtido passa para o patrimônio do casal. Da mesma maneira, os bens adquiridos com o seu produto. Assim, por exemplo, se um dos cônjuges, antes de casar, tinha direito a determinada pensão, tal direito não se comunica por força do casamento posterior. Mas o direito que mensalmente receber, após o casamento, comunica-se após o vencimento da prestação. Esse entendimento não frustra a regra do art. 1659, VI e VII, porque, se o casamento, por exemplo, for dissolvido por separação judicial, o cônjuge separado terá, além de sua meação, o direito à pensão e salários que não se comunicou. (2004, p.183).
Outro jurista que ataca a incomunicabilidade em moldes interpretativos, sem, contudo, ferir diretamente os dispositivos em tela, é Carlos Roberto Gonçalves:
Deve-se entender, na hipótese, que não se comunica somente o direito aos aludidos proventos. Recebida a remuneração, o dinheiro ingressa no patrimônio comum. Da mesma forma os bens adquiridos com o seu produto. Em caso de separação judicial, o direito de cada qual continuar a receber o seu salário não é partilhado. Se se interpretar que o numerário percebido não se comunica, mas somente o que for com ele adquirido, poderá esse entendimento acarretar um desequilíbrio no âmbito financeiro das relações conjugais, premiando injustamente o cônjuge que preferiu conservar em espécie os proventos de seu trabalho, em detrimento do que optou por converter suas economias em patrimônio comum. (2006, p. 417).
De outra banda, encontram-se doutrinadores que sustentam o entendimento de que as verbas trabalhistas são incomunicáveis e, portanto, não devem entrar na partilha quando da separação conjugal. Essa ótica doutrinária é fundamentada principalmente no fato de possuírem os proventos um caráter personalíssimo, ou seja, por serem destinados esses numerários única e exclusivamente ao prestador do serviço que deu origem ao seu recebimento. Dentre os mantenedores dessa outra lógica pertinente aos proventos se destacam: Arnaldo Rizzardo, Virgílio Parnagiotis Stavridis, Fábio Ulhoa Coelho, Orlando Gomes, Eduardo de Oliveira Leite, Silmara Juny Chinelato e Vicente Arruda, e outros.
Todos consideram os proventos como incomunicáveis quando do desfazimento da sociedade conjugal, porém advertem que essa exclusão das verbas trabalhistas abrange somente o que se conserva em espécie pelo consorte que as auferiu, seja em sua posse ou aplicado em estabelecimento bancário. As aquisições patrimoniais, mesmo que realizadas exclusivamente com esses valores, entram para a comunhão, tornando-se, portanto, integrantes do rol de bens que devem ser partilhados em decorrência da separação. Essa tendência é corroborada nas palavras de Arnaldo Rizzardo, que ensina:
Por tal disposição, os proventos de trabalho de cada cônjuge não se comunicam. O dispositivo se restringe unicamente aos proventos, salários, vencimentos ou rendimentos de atividade pessoal, seja no comércio ou em outros setores, não incluindo os bens adquiridos com os proventos. As aquisições, mesmo resultante dos proventos, passam para a comunhão. (2004, p. 636).
Essa tendência também é explicitada por Virgílio Parnagiotis Stavridis. Explica ele que o legislador corrigiu grande equívoco do Código Civil de 1916, pois este excluía os frutos civis do trabalho dos consortes na comunhão universal (art. 263, XII) e os incluía na comunhão parcial (art. 271, VI), sendo que o artigo 269, IV, dispunha que tudo que não se comunicasse na comunhão universal não podia se comunicar na comunhão parcial.
No que se refere ao alcance da disposição, parece que não quis o legislador deixar dúvidas quanto à não comunhão dos rendimentos decorrentes do trabalho, assalariado ou não, de cada cônjuge. Utilizou a expressão proventos, que, apesar de ter, atualmente, sentido técnico-jurídico de rendimentos decorrentes da aposentadoria do empregado, ou do servidor público, quer exprimir, num sentido mais amplo e comum, salário, vencimentos, subsídio ou qualquer rendimento, seja de trabalho assalariado ou não, e ainda os rendimentos decorrentes da aposentadoria. Assim, entende-se que qualquer verba percebida como ganhos decorrentes de atividade laborativa do cônjuge esteja excluída da comunhão, compondo apenas seu patrimônio particular. (2002, p. 342).
Ainda, impossível discorrer sobre essa seara jurídica sem referir os ensinamentos de Orlando Gomes. Citado na obra de Lydia Neves Bastos Telles Nunes (2005, p. 122), o doutrinador assevera que os proventos pessoais de cada cônjuge devem ter como destinação primordial a manutenção familiar, proporcionando o suporte para as suas despesas. Os valores que excederem essa responsabilidade integram o patrimônio exclusivo de quem os auferiu, se conservada a sua procedência. Porém, uma vez alterada sua espécie pela compra de bens, integram o patrimônio comum.
Vistos alguns dos diversos posicionamentos doutrinários favoráveis e contrários à incomunicabilidade dos proventos, passar-se-á a ilustrar o trabalho com alguns posicionamentos jurisprudenciais que auxiliarão a denotar a dissonância acerca da matéria em questão. Tais decisões, assim como os raciocínios doutrinários, apresentam suas variações nos mais diversos aspectos e contêm em sua fundamentação os mais diversos argumentos, com a finalidade de justificar suas opiniões.
A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão, se manifestou considerando literalmente o dispositivo que exclui os proventos na união conjugal, positivados no Código Civil:
DIVÓRCIO DIRETO. ALIMENTOS. DECLARAÇÃO DE DIREITO E PARTILHA DE BENS. CRÉDITOS TRABALHISTAS DO VARÃO. DESCABIMENTO. 1. Considerando que os litigantes foram casados pelo regime da comunhão parcial de bens, forçosa a exclusão dos créditos trabalhistas reclamados, que constituem apenas frutos civis do trabalho do varão. Inteligência do art. 269, inc. IV, e art. 263, inc. XIII, do CCB/1916 e art. 1.659, inc. VI, do CCB/2002. 2. Considerando que a ex-mulher sempre se dedicou ao lar, teve e criou os filhos, agora adultos, ficou desatualizada e sem condições de concorrer no competitivo mercado de trabalho, restando plenamente justificada a manutenção do liame obrigacional alimentar, como efeito residual do casamento desfeito. Recurso provido em parte.[1]
Fora reformada a parte da sentença que determinava a partilha dos créditos trabalhistas provenientes de reclamatória do marido, conferindo, assim, com o acórdão, a totalidade dos valores ao varão, cumprindo ipsis litteris o determinado no artigo 1.659, VI, do Código Civil de 2002.
Ainda, no referente à Sétima Câmara, faz-se mister destacar um acórdão, cuja relatora é a Desembargadora Maria Berenice Dias, que em seus ensinamentos, como demonstrado anteriormente, defende a todo custo a comunicabilidade dos proventos obtidos na vigência da sociedade conjugal.
Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo separando contra a decisão interlocutória que determinou o bloqueio dos valores depositados junto a estabelecimento bancário a pedido da separanda, a fim de se avaliar, no decorrer do processo, a pertinência de sua partilha. O agravante alegou serem proventos oriundos de rescisão contratual trabalhista e, portanto, incomunicáveis.
UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. INDENIZAÇÃO TRABALHISTA. A indenização trabalhista havida, ou não, durante o relacionamento, é fruto civil do trabalho, na definição do Código Civil de 1916, ou provento do trabalho, na nova denominação dada pelo atual Código Civil, e não integra o patrimônio comum, o que afasta a pretensão para bloquear o valor correspondente a tal verba.
POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO, VENCIDA A RELATORA.[2]
Fora dado provimento ao agravo por maioria, considerando os valores como incomunicáveis na qualidade de proventos pessoais, sendo vencida a relatora, que votou pela manutenção da decisão proferida pelo juiz. Quanto ao posicionamento da Desembargadora, conveniente expor uma ressalva referente ao FGTS. Os auferimentos oriundos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, segundo a doutrinadora, são incomunicáveis. Isso porque, consoante seu entendimento (DIAS, 2006, p. 207), o referido crédito possui um caráter personalíssimo, em benefício da pessoa do trabalhador, não integrando o conceito de aqüestos, diferentemente dos demais proventos. A doutrinadora cita, para ilustrar sua obra no concernente ao assunto, o seguinte acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL. SEPARAÇÃO. PARTILHA DE BENS. FGTS. devem ser excluídos do acervo a ser partilhado os valores recebidos DO FGTS, eis que tais verbas são indenizatõrias e CONSTITUEM proventos pessoais do trabalhador. art. 263, xiii, DO cÓDIGO CIVIL DE 1916. descabe arbitrar aluguel A SER PAGO PELA separanda EM RAZÃO DA utilização de imóvel do casal, ESPECIALMENTE QUANDO COM ELA SE ENCONTRAM LÁ RESIDINDO OS FILHOS. enquanto não ultimada a partilha de bens, tal imóvel é de propriedade COMUM. PROVERAM, PARCIALMENTE. por maioria.[3]
Por último, entende-se ser de grande contribuição destacar este último acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. PARTILHA DE BENS. VERBAS TRABALHISTAS recebidas pelo ex-cônjuge. INCOMUNICABILIDADE. arts. 269, IV e 263, XIII, do antigo Código Civil, combinados com o art. 2.039 do novo Código Civil.
As verbas trabalhistas, ainda que tenham sido auferidas durante o casamento, tanto no regime da comunhão universal, quanto no da comunhão parcial de bens, são incomunicáveis e, portanto, não podem ser objeto de partilha, porquanto são "frutos civis" do trabalho do ex-cônjuge.[4]
Nesse caso, a autora ajuizou ação postulando a divisão de valores oriundos de reclamatória trabalhista do ex-marido. O juízo indeferiu de pronto a inicial por impossibilidade jurídica do pedido e extinguiu a demanda sem o julgamento de mérito. A autora, no entanto, apelou, aduzindo serem verbas concernentes ao período de convívio marital. O Tribunal recebeu, porém julgou desprovido por maioria o recurso, sendo vencido o voto do Relator Rui Portanova, que defendeu a comunicabilidade dos créditos.
Interessante frisar parte da manifestação do Relator, extraída do acórdão: "Durante algum tempo decidi que créditos trabalhistas eram incomunicáveis. Mas mudei minha posição. Hoje penso que verbas oriundas de indenização trabalhista podem ser patrimônio comum a ser partilhado, se o seu período aquisitivo se deu na vigência do casamento ou da união estável".
Com essa última exposição, denota-se que as incertezas relativas à questão da incomunicabilidade das verbas trabalhistas variam tanto de acordo com a pessoa dos juristas como também à época em que os mesmos explicitam seus pareceres, defendendo ora uma, ora outra opinião.
Em que pese tais contradições, a tendência jurisprudencial do Rio Grande do Sul (ainda que não unânime) se traduz por considerar incomunicáveis os proventos de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal. Porém, a despeito dessa predominância dos Tribunais, insurgem-se questionamentos por parte da doutrina e dos magistrados acerca de tal consideração, que acentuam de modo crescente a celeuma instaurada em razão da matéria, que, ao que se percebe, está distante de uma solução uniformizada e livre de polêmicas.
5. Conclusão
Com o estudo apresentado, foi possível constatar a abrangência da problemática que envolve a destinação das verbas trabalhistas percebidas pelos cônjuges nos regimes de comunhão. Destarte, seja permitido destacar algumas observações que se fazem pertinentes e imprescindíveis ao abordar a matéria.
Em caso de consagração dos dispositivos em seu sentido literal, corre-se o risco de ensejar o desvirtuamento da economia individual de cada consorte, que deseja resguardar para si o produto de seu trabalho como forma de garantir um quinhão exclusivo em caso de separação, implicando redução ou quase ausência de patrimônio comum, prejudicando o desenvolvimento da família como um todo e destoando absolutamente do que deve ser a essência do matrimônio constituído nos moldes dos regimes de comunhão.
Já, em caso de não atender aos dispositivos, comunicando toda e qualquer verba trabalhista, enseja a possibilidade de ofensa ao aspecto profissional do nubente, desmerecendo seu esforço particular na busca pelo progresso e desconsiderando suas privações e economias no intuito de alcançar um determinado fim. Ocorre, nesse caso, o abalo do caráter pessoal da profissão, destituindo, muitas vezes, o consorte de seu direito de livre destinação de suas economias, fruto do trabalho que somente ele realizou, lesando-o plenamente em sua liberdade e individualidade.
A fria opção por uma ou outra corrente, por vezes, conduz ao inevitável cometimento de irreparáveis prejuízos a uma das partes e, por conseguinte, locupletamento da outra, o que é incessantemente combatido pelo Direito. Oportuniza-se, indefectivelmente nesse caso, uma considerável afronta, não apenas ao princípio da isonomia entre os cônjuges, mas à igualdade na sua mais ampla acepção, pois o que preceitua referida norma não é uma uniformidade jurídica dispensada à universalidade dos casos, e sim um tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais, estabelecendo tratamentos diferentes, porém adequados ao contexto de cada caso.
Por sua vez, a inércia do sistema jurídico, ao não assumir uma postura definitiva diante de tal celeuma, abala o princípio da livre estipulação do regime de bens. Considerando a importância do casamento, por ser este um dos principais pontos de partida para a formação de uma nova família, a maior parte de suas regras são marcadas por um protecionismo e inflexibilidade aos quais cabe aos consortes apenas aderi-los, exercendo sua autonomia unicamente em relação aos efeitos patrimoniais.
E sendo os efeitos patrimoniais o pouco que se pode dispor conforme a vontade, diz-se haver total liberdade quanto à convenção do regime de bens. Todavia, não se podendo precisar qual a definição do ordenamento quanto à questão em tela, não se podem prever os efeitos de uma união matrimonial norteada pelos regimes de comunhão quanto às percepções auferidas da atividade laboral. Conseqüentemente, não pode um ordenamento ostentar a plena liberdade quanto à convenção do regime de bens se não se pode mensurar os rumos dessas disposições de vontade, restando a liberdade, nesse âmbito, ferida em sua plenitude.
No decorrer da pesquisa, restou evidenciado que toda a discussão gerada em torno da matéria foi determinada e acentuada pela evolução de dois fatores primordiais.
O primeiro é a família, cujos valores e objetivos não mais são determinados pela discricionariedade paternalista, o que ocorria num passado não muito distante. Esse instituto, protegido constitucionalmente em tempos hodiernos, assume um caráter democrático, consagrando a afetividade como valor máximo e fator essencial à sua constituição, possibilitando, assim, o reconhecimento da importância da figura materna e lhe conferindo uma posição de equilíbrio e isonomia em todos os aspectos e decisões que envolvem o contexto familiar.
O segundo, por sua vez, é o próprio direito, que adquire uma postura muito mais dinâmica e realista frente aos impasses da sociedade, buscando atender ao finalismo e ao espírito da lei, possuindo nos princípios a estrutura sobre a qual se pode concretizar a justiça, e se desatrelando dos engessamentos e limitações que a regra escrita, outrora, muitas vezes o submetia.
A árdua tarefa de disciplinar a problemática exigirá uma temerosa cautela que não se resume em distorções hermenêuticas ou o falho apoio em meras interpretações literais. Na trajetória em busca de uma solução adequada, compreendem-se aspectos de extrema relevância que vão desde a valorização da profissão e do trabalho doméstico até a preservação da dignidade e da individualidade de cada consorte. Tais aspectos se apresentarão ora se somando, para dar razão a uma das partes, ora se contrapondo, por pertencerem a lados opostos.
A despeito dessa contraposição, todos esses aspectos, sem exceção, são merecedores de um profundo respeito e consideração por parte do magistrado, que deverá analisar cuidadosamente o caso concreto com todas as circunstâncias que o envolvem, lançando mão de um juízo de proporcionalidade, seja para abrandar o rigor da lei, seja para garantir o texto legal, a fim de contrabalançar os vários direitos envolvidos na relação jurídica e que se encontram à espera de justiça.
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[1] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70010990331, Sétima Câmara Cível. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 20/04/2005. Disponível em: . Acesso em: 12-03-2008. ANEXO II.
[2] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n. 70006870554, Sétima Câmara Cível. Relatora: Maria Berenice Dias. julgado em 01/10/2003. Disponível em: . Acesso em: 13-03-2008. ANEXO III.
[3] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70007191034, Sétima Câmara Cível. Relator:Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 05/11/2003. Disponível em: . Acesso em: 15-03-2008 ANEXO IV.
[4] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70014694574, Oitava Câmara Cível. Relator: Rui
Portanova. Julgado em 24/08/2006. Disponível em: . Acesso em: 16-03-2008 ANEXO VI.
Autora: Beatriz Helena Braganholo é Advogada, professora das disciplinas de Direito de Família e das Sucessões da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo e sócia do IBDFAM.
Autor: Homero Alvenis Dutra é Bacharel de Direito pela Universidade de Passo Fundo.
Com o advento do Código Civil de 2002, surgiram expectativas de uma remodelação ideológica e principiológica relativas ao seu campo de atuação, partindo-se do pressuposto de que as determinações legais introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, após a Constituição Federal de 1988, preconizariam uma visão muito mais antropocêntrica e condizente com a nova era jurídica de contemplação a preceitos que visem respeitar e garantir direitos fundamentais, bem como preservar o finalismo jurídico, desatrelando-se de regras positivas engessadoras para atender ao espírito e à real finalidade do que preceitua um determinado dispositivo legal.
Entretanto, o Código Civil vigente, em alguns pontos específicos, desconsidera os axiomas atuais e deixa ainda transparecer a velha e tradicional preponderância da proteção patrimonial a determinadas situações que se destina a disciplinar em detrimento de outros valores, ocasionando polêmicas e os mais diversos questionamentos acerca de suas determinações. Isso não é diferente quando o assunto em voga diz respeito à destinação dos proventos pessoais do trabalho de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens.
Numa análise prematura dos artigos 1.659, VI e 1.668, V, do Diploma Civil vigente, tem-se por certo que as verbas trabalhistas de cada cônjuge, que concretizou sua união nos moldes da comunhão parcial e universal de bens, não se comunicam ao casal, pertencendo única e exclusivamente ao nubente que as auferiu. Essa determinação tem ensejado reflexos jurídicos de toda ordem por diversos doutrinadores, a fim de assentar a polêmica e definir a melhor forma de aplicação do dispositivo em estudo a cada caso concreto.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por inúmeras vezes, tem decidido com base na interpretação literal do dispositivo em pauta, ou seja, conduz à linha de raciocínio de que os proventos do labor pessoal de cada cônjuge não se comunicam.
Tomando como base o contexto da sociedade contemporânea, no qual a pluralidade das pessoas possui patrimônio exclusivamente auferido dos frutos de sua atividade laboral, pode-se concluir que muitos doutrinadores entendem que a aplicação literal dos dispositivos em tela importaria na ausência total de patrimônio comum entre os consortes, mesmo nos regimes de comunhão.
A importância da proposição desta pesquisa está consubstanciada na relevância para as ciências jurídicas em assentar a celeuma da incomunicabilidade dos proventos, buscando uma maior segurança jurídica, bem como a certeza dos efeitos patrimoniais que a união marital implicará na vida dos consortes. Ressalta-se, também, que a grande maioria dos matrimônios realizados no nosso País possui como norteadores para disciplinar os aspectos patrimoniais dessa união os regimes de comunhão.
Com a ocorrência de tais circunstâncias, ganha especial relevo a preocupação em não confundir o patrimônio exclusivo, normalmente aquele trazido à nova união, com o acréscimo decorrente do crescimento patrimonial pela conjugação de esforços na realização plena da vida em comum dos nubentes.
Para o desenvolvimento da presente pesquisa, utilizar-se-á o método dialético e, como embasamento teórico, os princípios da isonomia entre os cônjuges, da liberdade e da razoabilidade e proporcionalidade, sua aplicação no direito de família e nos regimes de bens, e também a sua íntima ligação em diversos aspectos com o tema proposto.
Em seguida, buscar-se-á um maior aprofundamento do conteúdo dos artigos do Código Civil que dispõem sobre os regimes de bens, apresentando-se todas as suas distinções, peculiaridades e conseqüências advindas de sua adoção na união conjugal.
Ainda, realizar-se-á o levantamento das posições jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e doutrinárias no que concernem à incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão, e também apontamentos sobre os principais aspectos das argumentações em defesa de um ou outro ponto de vista, bem como o confronto de suas idéias, buscando assentar a celeuma jurídica que permeia as mesas de discussões relacionadas ao assunto tratado.
Por fim, importante ressaltar que, diante da complexidade envolvida no tema proposto, não nos é conveniente a pretensão de esgotamento do assunto, e sim apenas a exposição do problema, com todas as suas peculiaridades, e da necessidade de buscar uma solução adequada.
2. Princípios jurídicos aplicáveis aos regimes de bens
2.1. Princípio da isonomia entre os cônjuges
Em decorrência de uma abrupta evolução cultural a partir do século XIX, inúmeros paradigmas, nos mais variados âmbitos societários, vêm demonstrando-se obsoletos e merecedores de reformulações, que por si só já ocorrem à medida que vão sendo incorporados novos padrões comportamentais à sociedade contemporânea.
No direito de família se vislumbram claramente essas mudanças, especialmente no que concerne ao tratamento jurídico dispensado aos cônjuges, que estabeleceu com afinco uma isonomia de tratamento de forma a reconhecer a importância e a capacidade de ambos os consortes na mantença da sociedade conjugal em todos os seus aspectos, desde a educação da prole até o suporte financeiro.
Isso se deve em grande parte a uma nova postura feminina frente à sociedade marital, encarando juntamente com o cônjuge varão a árdua incumbência na busca do sustento da família ou, como em muitas oportunidades, chamando para si a responsabilidade do sustento do lar em decorrência do abandono do marido ou até mesmo do desemprego deste, em virtude das instabilidades na conjuntura econômica nacional.
A independência econômica da mulher se revela como o fator determinante de suas conquistas, traduzindo-se o seu poder aquisitivo num poderoso instrumento capaz de fazer valer suas opiniões e reivindicações perante todos em caráter definitivo e principalmente perante seu cônjuge, assumindo no seio familiar uma posição até então inédita, participativa e colaborativa, em detrimento do antigo comportamento impregnado de submissões.
Atento a essa silenciosa revolução, o legislador constitucional somente fez coroar a mulher moderna oficialmente com a recepção pela Carta Magna de alguns artigos alusivos a essa isonomia, pois, factualmente, as suas conquistas já haviam sido mais do que acatadas, reconhecidas e festejadas pela sociedade, consagrando a superação do caráter patriarcal do Direito de Família.
É o que refere Cristiano Chaves de Farias:
A Constituição Federal consagrou no caput do art. 5º (ao cuidar dos direitos e garantias individuais) que todos são iguais perante a lei, indicando o caminho a ser percorrido pela ordem jurídica. Já no inciso I do referido artigo resolve acentuar as cores da isonomia, explicitando que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". E mais, ao cuidar da proteção jurídica da família, no art. 226, volta a tratar da igualdade entre homem e mulher, deliberando que, "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". (2006, p. 66).
Ao passo em que ganhou terreno na seara familiar, a mulher atrai para si, como conseqüência natural dessa revolução comportamental, o dever recíproco de direção do lar e de suporte financeiro da família, obrigações anteriormente atribuídas exclusivamente ao marido. Entretanto, ao contrário do que possa parecer, essas atribuições conferidas à mulher não foram encaradas como uma obrigação imposta, e sim como uma oportunidade de demonstrar sua real e irrefutável capacidade de assumir a direção do lar conjuntamente e de maneira igualitária com seu companheiro, afastando de modo irreversível um tempo discriminatório e de submissão, aliando a igualdade e a liberdade com responsabilidade. Como ressalta Maria Berenice Dias (2006, p. 55) "a organização e a própria direção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (cc1511) tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração (cc1567). São estabelecidos deveres recíprocos e atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher (cc1566)".
Outro aspecto merecedor de destaque, ao se referir sobre o princípio em tela, encontra-se no inciso II, do artigo 1.641, do Código Civil de 2002, que diz que "é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de sessenta anos". Nas palavras de Washington de Barros Monteiro (2004, p. 216) "a principal modificação advinda do Código Civil de 2002 quanto às causas da imposição legal desse regime consistiu em igualar o limite de idade do homem e da mulher, em sessenta anos, em acatamento ao princípio constitucional da plena igualdade (Constituição Federal, art.5º, n. I, e art. 226, § 5º)".
Pode-se vislumbrar que o que traz o referido dispositivo em seu contexto diz respeito à equiparação dos sexos quando estabelece a igualdade quanto ao aspecto cronológico relacionado à imposição do regime de separação obrigatória de bens, mais uma vez revestindo o princípio da igualdade dos cônjuges com um conteúdo material e concreto capaz de modificar as relações, atribuindo-lhes efeitos jurídicos diversos.
2.2 Princípio da liberdade
Como preceito de grande relevância e fundamento básico para a formação da sociedade conjugal, a "liberdade é o poder do homem para agir numa sociedade político-organizada por determinação própria, dentro dos limites legais e sem ofensa a direitos alheios". (DINIZ, 1998, p.118 e 119).
Considerando juridicamente, tem-se a liberdade como um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, que diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". (BRASIL, 2005).
Nessa roupagem, consubstancia-se a liberdade como cláusula pétrea constitucional e, por conseguinte, impossível de modificação, inerente a todo e qualquer cidadão. Como afirma Maria Berenice Dias (2006, p.53) "a liberdade e a igualdade, correlacionadas entre si, foram os primeiros a serem reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana".
O casamento, como toda a sociedade, provoca conseqüências jurídicas. E ainda que não deva esse instituto possuir um cunho predominantemente patrimonial, faz-se necessário organizar as relações de bens entre os casais, visto que, principalmente após o desfazimento dessa sociedade, advém indefectivelmente conseqüências jurídicas concernentes ao patrimônio dos consortes.
O Código Civil vigente traz em seus dispositivos quatro modalidades de regimes patrimoniais. São eles: comunhão parcial de bens, comunhão universal, participação final nos aqüestos e separação de bens, suprimindo o regime dotal, hoje obsoleto no país, e incluindo o da participação final nos aqüestos. Os regimes não estão dispostos taxativamente no código civil, podendo as partes optar ou não por tais regimes, caracterizando sua disposição como meramente exemplificativa.
Importante ressaltar aqui a limitação da intervenção estatal, cabendo-lhe somente atribuir o regime da comunhão parcial de bens em caráter supletivo aos casais que, na ocasião de sua habilitação, silenciaram no que diz respeito ao regime patrimonial.
Entretanto, a faculdade de se contratar livremente quanto ao regime de bens não é de toda absoluta, devendo-se observar os limites da lei quando da realização do contrato, sendo proibidas cláusulas que se contraponham à norma legal, sob pena de nulidade dessas cláusulas ou, dependendo do caso, nulidade do pacto antenupcial. Como ressalta Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 116) "a livre estipulação deferida aos cônjuges também não é absoluta, pois o artigo 1655 do referido diploma declara nula a convenção ou cláusula dela que controvenha disposição em lei".
Reputam-se da mesma forma inválidas cláusulas que configurem afronta à moral, dispensa a elementos essenciais ao matrimônio, imposição de comportamento ou restrição de direitos a qualquer dos nubentes. Em corroboração a essa assertiva, Arnoldo Wald (2002, p. 108 e 109) escreve que "nos pactos antenupciais, as partes têm a mais ampla liberdade para incluir as cláusulas e condições que desejarem, desde que não atentem contra disposições legais imperativas e não prejudiquem direitos inerentes à situação ocupada pelas partes na família, como marido, mulher, ou como pais da prole comum".
Outra ressalva a essa liberdade de escolha está no artigo 1.641 e seus incisos, do Código Civil, que dizem ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, da pessoa maior de sessenta anos e de todos que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Essa imposição tem por escopo evitar eventuais prejuízos que possam ser ocasionados a uma das partes ou a terceiros em virtude do casamento.
Tal dimensionamento jurídico, que coíbe certos atos, não incorre de forma alguma em abalo ao lume de que se reveste o princípio da liberdade. Essas coibições apenas afastam a prática de abusos, que porventura possam ser cometidos a pretexto desse direito, em nome de uma segurança jurídica garantidora dos objetivos e da natureza da união conjugal.
No que diz respeito à mutabilidade do regime de bens na constância do casamento, consubstancia-se esta mais uma inovação do Código Civil vigente em contraponto à legislação de 1916, na qual vigoravam os preceitos da imutabilidade de regime patrimonial após a realização do casamento, a fim de resguardar interesses de uma das partes que pudesse sofrer prejuízo, tendo em vista ser considerada mais frágil na relação conjugal, e evitar o locupletamento da outra parte.
Hodiernamente, visto estar afastada a idéia de fragilidade em virtude do sexo dos nubentes e ser a igualdade conjugal uma realidade fática, a legislação contempla a idéia da mutabilidade justificada, que consiste na possibilidade de os nubentes, em mútuo consentimento, na constância do matrimônio e sob o controle jurisdicional, modificarem seu regime de bens de acordo com seus interesses, ressalvados os interesses de terceiros interessados.
Defensor ferrenho da idéia da mutabilidade dos regimes de bens, Rolf Madaleno acentua:
Considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes, apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro. (2001, p. 173).
São, também, pertinentes estas considerações acerca da liberdade dos cônjuges: tal faculdade acarreta, em inúmeras oportunidades, a total independência para qualquer dos nubentes no trato com questões patrimoniais que dizem respeito ao interesse de toda a família. Portanto, adverte-se que esses atos, por não se referirem apenas a direitos próprios, devem ser eivados de boa fé e responsabilidade sob o risco de se ocasionar graves e irreversíveis prejuízos que podem comprometer totalmente a estrutura financeira da sociedade familiar.
2.3 Princípio da razoabilidade e da proporcionalidade
A razoabilidade e a proporcionalidade consistem em primados constitucionais inseridos na Carta Política implicitamente e invocados cada vez com mais freqüência como norteadores hermenêuticos das normas legais com influência em todas as esferas do ordenamento. Atribui-se ampla e profunda inter-relação aos dois institutos, tanto que, em algumas doutrinas como a norte-americana, o princípio da proporcionalidade é chamado de razoabilidade, e, no nosso ordenamento jurídico, razoabilidade constitui uma característica essencial ao princípio da proporcionalidade, razão pela qual, para o desenvolvimento desse item e com o escopo de evitar eventuais redundâncias ao se referir a um e após ao outro instituto, ambos serão tratados conjuntamente, sobrepujando-se o princípio da proporcionalidade por ser este um instrumento de controle de excesso da atuação estatal frente aos direitos individuais e sociais. Conforme afirma Gilmar Ferreira Mendes (2000, p. 250) "a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade".
Tal instituto, desde sua origem, apresenta-se em sua substância eivado de valores inerentes à personalidade humana que asseguram ao homem uma liberdade intangível, oponível a todos, inclusive ao poder estatal. A evolução do ordenamento jurídico, por sua vez, começa a atingir grandes proporções, de modo a se insurgirem os questionamentos acerca da sujeição total dos casos cuja prestação jurisdicional era postulada às inflexíveis emoldurações de uma legislação positivada. Destarte, inicia-se um repensar do direito no que concerne à sua finalidade e às necessidades do caso concreto em detrimento da severa realização do que abstrata e genericamente era prescrito em lei. Assim insurge-se o princípio da proporcionalidade, e desde então vem inserindo valores e influenciando o direito brasileiro em todas as suas esferas de modo irrestrito.
Todavia, a despeito do imenso alcance desse instituto de modo a abranger todas as searas do ordenamento pátrio, faz-se mister ressaltar a pertinente relação do princípio da proporcionalidade com o direito de família, que, por seu caráter especialmente subjetivo, requer dos juristas e aplicadores do direito um tino muito mais aprofundado e complexo do que a mera aplicação daquilo que se encontra prescrito na legislação. Como se percebe, nessa esfera do direito, encontram-se os aspectos mais íntimos e sentimentais da pessoa humana, que são os assuntos inerentes às relações com seus entes queridos, fazendo com que todo e qualquer conjunto de normas positivadas, por mais prolixo e complexo que seja, mostre-se insuficiente na resolução dos casos concretos carentes de uma solução acautelada. Nesse sentido disserta Eduardo Carlos Bianca Bittar:
Uma mecânica subsunção do fato à norma criaria uma situação de injustiça para aquele que é parte em um processo público. Recorre-se, portanto, a um critério de abrandamento da rigidez legislativa fazendo-se o julgador como se o próprio legislador fosse caso este estivesse diante da concretude casuística. O apelo à razão é o mesmo que o apelo à natureza das coisas que se encontram em profunda mutação, diante de relativa estabilidade das leis. (2005, p.118).
Consubstanciando-se numa regra cogente importante não apenas no controle da função legiferante de normas abstratas, mas também destinado à autoridade judiciária encarregada de concretamente aplicá-las, o princípio da proporcionalidade, ainda que pertinente a todos os direitos individuais, dispensa ao direito à liberdade e ao direito à propriedade uma chancela especial de modo a ser mais incisivo em sua atuação. Para Helenilson Cunha Pontes (2005, p. 241) "o princípio da proporcionalidade talvez represente a mais solene garantia constitucional de concretização dos direitos individuais, ao limitar e nortear a atuação estatal em todos os seus níveis, sobretudo no que tange à disciplina de direitos relativos à liberdade e propriedade".
E é neste ponto, o de contrabalanço dos direitos fundamentais em litigância, que se pode inicialmente vislumbrar a estreita relação do referido preceito com a temática abordada nesse trabalho: quando se fala em regime de bens, há a referência sobre as disposições que tutelam toda a relação patrimonial entre os nubentes na constância do matrimônio e, por conseguinte, suas conseqüências quando de um possível desfazimento da sociedade conjugal.
Sendo o princípio da proporcionalidade um valioso instrumento na busca da segurança jurídica, na ponderação entre direitos fundamentais e na garantia do direito de propriedade em todos os seus aspectos, muito relevante e de grande contribuição se faz a sua relação com o presente trabalho, pois seu objeto de estudo é a destinação patrimonial advinda dos proventos pessoais de cada cônjuge quando do rompimento da relação conjugal (especificamente a relação disciplinada pelos regimes de comunhão). E, por vezes, as indagações e controvérsias a respeito desses valores são tamanhas que ensejam a busca da tutela jurisdicional a fim de dirimir seus conflitos. Nesse caso, representando o Estado, entra em cena o magistrado para desempenhar a árdua tarefa de decidir sobre a partilha desses proventos.
O Código Civil atual, em seu artigo 1.659 caput e inciso VI, dispõe que na separação do casal, cuja união foi regida pela comunhão parcial de bens, os proventos pessoais de cada cônjuge são incomunicáveis. Porém, como referido anteriormente, no direito de família não basta a simples aplicação do dispositivo. O assunto exigirá do magistrado muito mais do que um simples enquadramento do caso concreto ao que preceitua a norma, pois, no caso em tela, corre-se o grande risco de se cometer injustiça, prejudicando uma das partes, visto que tais valores muitas vezes fazem parte de uma vida de economias, talvez décadas de privações, a fim de se alcançar um grande montante e realizar um projeto de vida sonhado e que, por conta da separação, vê-se desfeito.
O princípio da proporcionalidade vem, nesses casos, em socorro ao magistrado, propiciando um adequado embasamento e trazendo elucidações na persecução de uma decisão justa. Pertinente ressaltar que há muito se fala em proporcionalidade relacionada à busca da segurança jurídica, cabendo destacar as brilhantes palavras de Aristóteles:
O justo nesse sentido é, portanto, o proporcional, e o injusto é aquilo que transgride a proporção. O injusto pode, assim, incorrer no excesso ou na deficiência (no 'demasiado muito' ou no 'demasiado pouco'), o que é realmente o que percebemos na prática, pois quando a injustiça é feita, aquele que a faz (o agente) detém o excessivo do bem em pauta e a vítima da injustiça, detém o deficiente ou insuficiente desse bem, embora seja vice versa no caso de um mal, porque um mal menor comparado a um maior é tido como um bem, uma vez que o menor de dois males é mais desejável do que o maior; entretanto, o que é (efetivamente) desejável é bom e quanto mais desejável for, maior bem será. (2002, p.142 e 143).
Visando o justo é que o magistrado pode firmar-se na proporcionalidade como um baluarte a servir diretamente para aplicação de uma decisão que atenda aos preceitos buscados pelo direito. E para ilustrar essa problemática enfrentada pelo magistrado, no sentido de procurar evitar o cometimento do injusto ao caso concreto, pode-se citar algumas indagações oriundas dessa questão:
Uma delas seria como determinar a situação patrimonial de um cônjuge que, antes da separação, por consenso familiar, dedicava grande parte de sua vida aos cuidados com a prole, nada percebendo de bens em virtude da inexistência de salário próprio, enquanto o outro provia o sustento comum e adquiria bens com os frutos de seu trabalho, conservando parte de sua remuneração em espécie em alguma aplicação. Seria justo considerar incomunicável o que fora astutamente reservado, conferindo esse valor somente ao cônjuge que o poupou sem nada atribuir à outra parte?
Ou, então, como considerar a incomunicabilidade total dos proventos no caso de um cônjuge oportunista, que poupa e investe os rendimentos obtidos com o labor, enquanto o outro suporta total ou quase totalmente a mantença familiar?
Ainda, seria adequada a comunicabilidade, desconsiderando o texto legal, para a situação do cônjuge que não mede esforços na boa administração pecuniária, garantindo o sustentáculo patrimonial familiar, enquanto o outro, pródigo, canaliza seus ganhos para seu próprio deleite e superfluidades pessoais?
É, portanto, necessário se inferir que a justiça envolve, ao menos, quatro termos, ou seja, especificamente: dois indivíduos para os quais há justiça e duas porções que são justas. E haverá a mesma igualdade entre as porções tal como entre os indivíduos, pois não sendo as pessoas iguais, não terão porções iguais - é quando os iguais detêm ou recebem porções desiguais, ou indivíduos desiguais (detêm ou recebem) porções iguais que surgem conflitos e queixas. (ARISTÓTELES, 2002, p.141).
Aristóteles, em sua grandiosa obra Ética a Nicômaco, referência da literatura jurídica mundial, associa a justiça à proporcionalidade, sendo esta comparada a uma razão aritmética de modo a ser estabelecida levando-se em consideração o contexto no qual um fato está inserido. O fato, por sua vez, é um acontecimento real, e o contexto é o conjunto de circunstâncias que cercam esse acontecimento. Quando se tem a tutela de um conflito, parte-se de uma análise desse contexto para apurar as relações entre os indivíduos e se estabelecer o que cabe a cada um de acordo com o seu envolvimento, seu merecimento e sua necessidade.
Dessa forma, seja-nos permitido aduzir que se tem na proporcionalidade um poderoso instrumento a serviço da jurisdição das famílias, sendo possível avaliar qual a melhor interpretação casuisticamente considerada, devendo-se recorrer a esse preceito sem hesitar para se alcançar uma justiça distributiva de caráter proporcional, dando a exata estimativa para a participação de cada indivíduo no caso concreto.
3. Regimes patrimoniais de comunhão
3.1. Comunhão parcial de bens
O regime da comunhão parcial é considerado pela doutrina atual o que melhor atende aos princípios de justiça e às finalidades do casamento. Através dele, realiza-se a divisão dos bens adquiridos no casamento (excetuados alguns bens dispostos no código, que serão vistos adiante) por serem considerados frutos da mútua colaboração entre os consortes. Sua regulamentação está disposta entre os artigos 1.658 e 1.666 do Código Civil vigente.
Também denominado de regime de comunhão dos aqüestos, foi admitido como o regime oficial do país na ausência de estipulação diversa entre os cônjuges a partir da Lei do Divórcio - n.º 6.515 de 26-12-1977 -, substituindo a comunhão universal que até então vigorava. Essa modificação vinha expressa no artigo 50 da referida lei e foi incluída no Código Civil de 1916 em seu artigo 258, sendo mantida pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 1640, que diz: "não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial". (BRASIL, 2005).
Dessa forma, se a opção dos cônjuges quanto ao regime de bens for pela comunhão parcial, basta que se realize uma referência na petição de casamento no processo de habilitação, fazendo-se necessário pacto nupcial por escritura pública nas demais escolhas, conforme o parágrafo único do referido artigo.
Acerca do regime da comunhão parcial, Sílvio Rodrigues, citado na obra de Arnaldo Rizzardo (2004, p.633) aduz que "este regime, ao estabelecer a comunhão dos aqüestos, estabelece uma solidariedade entre os cônjuges, unindo-os materialmente, eis que seus interesses tornam-se comuns a partir do casamento, o que infunde maior autenticidade nos desideratos que determinam a aproximação de um casal. De outro lado, permite conservar a individualidade de cada cônjuge e uma justa divisão dos bens quando da separação judicial".
Assim, constitui-se a comunhão parcial numa mescla do regime da comunhão universal e da separação de bens, formando, por conseguinte, duas classes de bens: uma formada pelo patrimônio exclusivo dos consortes e outra formada pelos bens comuns a ambos, devendo prevalecer a sua comunicabilidade quando do desfazimento da união.
O artigo 1.660, do Código Civil, estabelece os bens comunicáveis na comunhão parcial. Segundo Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 369) "os dispositivos não apresentam maior dificuldade de entendimento".
Inobstante a sua fácil compreensão, cabem algumas considerações sobre a matéria.
O inciso I, do artigo 1.660, refere-se aos bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que em nome de um dos cônjuges. Nesse caso, presume o ordenamento que o patrimônio fora adquirido com a colaboração mútua do casal, nada importando que o bem se transcreva em nome de um ou de outro consorte. A esse respeito, destaca-se a opinião de Arnaldo Rizzardo (2004, p. 639) que ensina: "o simples convívio, e mesmo que um dos cônjuges não preste a menor colaboração na obtenção dos rendimentos ou em trabalhos no lar, o patrimônio é comum, o que gera, seguidamente, profundas injustiças".
O inciso II trata dos bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior. Pode-se citar como exemplo o que se aufere em virtude de jogos, loterias, disputas e, ainda, descobertas, criações artísticas, entre outros.
O inciso III dispensa comentários, já que deixa bem visível a referência a doações, legados ou heranças feitas a ambos os cônjuges, denotando-se claramente que o autor da liberalidade, ao fugir da regra e atribuir bens explicitamente ao casal, deseja beneficiar o conjunto familiar e não somente um dos dois.
O inciso IV relata a comunicabilidade das benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge. Se realizadas tais benfeitorias durante o casamento, pressupõe-se sejam estas custeadas com a participação do marido e da mulher, de modo que o valor despendido será pertencente igualitariamente a ambos os consortes.
O inciso V, do artigo 1.660 do diploma civil de 2002, refere-se aos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. A comunhão parcial tem por natureza excluir o patrimônio anterior e confundir os posteriores à realização do casamento. Por isso, quaisquer frutos de bens, independentemente se comuns ou particulares, se percebidos na vigência da união ou nesse tempo se configurar o direito à sua percepção (como por exemplo, aluguéis), são pertencentes ao casal.
Vistos os bens comuns, serão expostos agora os bens que ficam excluídos da partilha quando da separação. Os artigos 1.659 e 1.661 do Código Civil vigente (artigos 269, 270 e 272 do diploma de 1916) trazem a lista completa desses bens.
O inciso I, do artigo 1.659, refere-se aos bens que cada cônjuge possuir ao casar e aos que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e aos sub-rogados em seu lugar. No que concerne aos bens que cada cônjuge possui ao casar, sua exclusão se mostra evidente, pois é da essência da comunhão parcial que haja comunicabilidade dos bens adquiridos somente após o matrimônio. Já a segunda parte do inciso (e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão) merece algumas observações:
No caso da doação, o doador tem a faculdade de eleger o destinatário de sua liberalidade. Se assim o fez, dedicando patrimônio a apenas um dos consortes, o outro não poderá participar desse benefício, visto que, se fosse da vontade do doador, expressaria sua intenção de beneficiar o casal. Já no relativo aos auferimentos por sucessão, importante citar as palavras de Sílvio Rodrigues, que explica:
Figure-se o exemplo do nubente, herdeiro necessário, cujo ascendente é vivo por ocasião do casamento. Embora a legítima a que terá direito por morte do ascendente não passe de uma expectativa de direito, a causa de sua aquisição, por subseqüente morte daquele, constitui uma perspectiva cuja probabilidade de ocorrer é imensa. Ademais, trata-se de causa de ganho anterior ao casamento. (2004, p.179).
A causa de ganho do patrimônio por sucessão é o vínculo familiar com o ascendente de um dos cônjuges que obviamente se originou muito antes de os nubentes se conhecerem. Por esse motivo, torna-se evidente e justificada a exclusão de tais ganhos. Visivelmente desnecessária se mostra a última parte do inciso que diz "e os sub-rogados em seu lugar", visto que o inciso posterior já trata dessa hipótese com suficiente abrangência.
O inciso II trata de bens adquiridos na constância do casamento, com valores exclusivos de um dos cônjuges, substituindo um bem particular por outro. Ao se referir a esse inciso, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 234) refere que "é a aplicação do princípio da sub-rogação. Vende-se um bem que o cônjuge tinha quando casou, e compra-se outro em negócio celebrado durante a sociedade conjugal. Perdura a manutenção do patrimônio próprio, embora se altere a espécie de bens".
Portanto, os bens pertencentes exclusivamente a um dos cônjuges podem ser vendidos para a aquisição de outros bens que se revestirão com a mesma incomunicabilidade dos substituídos. Porém, uma ressalva faz-se imprescindível ao abordar essa matéria. Quando se substitui um bem particular por outro bem de maior valor, mediante o pagamento da diferença, o valor referente a essa diferença se comunica aos consortes.
As obrigações anteriores ao casamento constam no inciso III do referido artigo. Se o patrimônio anterior à união não deve se comunicar, assim também devem ser as dívidas contraídas antes do casamento. Tal dispositivo tem a finalidade de salvaguardar o patrimônio do nubente que nada tem a ver com as dívidas passadas e particulares de seu par, elidindo, assim, uma possível ação de credores.
Todavia, há um ponto controvertido pela doutrina ao abordar esse assunto. Os juristas contrapõem-se com relação às dívidas contraídas para pagar os aprestos do casamento ou que se reverteram em proveito comum. De um lado, defendendo a exclusão dessas dívidas em qualquer hipótese, está Sílvio Rodrigues, que discorre:
Pelo regime da comunhão parcial, destaca-se o patrimônio anterior ao casamento. Assim separado o acervo de cada um previamente existente, também as obrigações anteriores são exclusivas do respectivo cônjuge. E nem mesmo as obrigações em função do casamento, se assumidas por apenas um, serão estendidas ao outro cônjuge, diferentemente do que ocorre no regime da comunhão universal. (2004, p. 180 e 181).
Ainda nessa mesma linha de pensamento, Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 367) aduz que "na comunhão parcial, não se comunicam as obrigações de cada consorte, ainda que contraídas para os aprestos".
De outra banda, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 635) ressalva que a dívida anterior ao casamento "apenas entra na responsabilidade comum se proveniente de despesas com os aprestos do casamento, ou se reverterem em proveito comum".
Parece-nos mais razoável a segunda assertiva, já que, inobstante a causa da obrigação seja anterior ao casamento, a cerimônia pertence a ambos os consortes, e o benefício proveniente da dívida aproveita os dois.
As obrigações decorrentes de atos ilícitos também são excluídas, segundo o inciso IV, salvo se revertidas em proveito do casal. A época em que ocorreu o ato ilícito é indiferente, nesse caso, obrigando-se somente o cônjuge causador do ato. Importante se faz a contribuição de Carvalho Santos, citado na obra de Arnaldo Rizzardo, (2004, p. 635) afirmando que "a responsabilidade pelo ato ilícito é pessoal e, por isso mesmo, como conseqüência, pessoal é a dívida resultante dessa responsabilidade".
Com isso, o cônjuge que não deu causa ao ato ilícito se exonera da obrigação de repará-lo, respondendo o causador com seus bens particulares e sua meação no patrimônio comum. Porém, se ambos obtiverem benefício decorrente do ato ilícito, há obrigação recíproca de reparação.
Conforme o inciso V, os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão também gozam de incomunicabilidade na partilha. Essa exclusão se deve ao caráter personalíssimo desses bens, sendo que somente devem pertencer a um dos consortes em sua individualidade ou utilizada para sua profissão. Ainda, tais objetos não devem possuir um valor muito elevado de modo a representar uma grande monta em relação aos bens do casal e não devem ter sido adquiridos com esforço comum.
Nos incisos VI e VII constam os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge e as pensões, meio soldos, montepios e outras rendas semelhantes, matéria muito discutida e fruto de inúmeras controvérsias na doutrina e jurisprudência atuais. A incomunicabilidade concernente a esses rendimentos é o tópico desse trabalho e será minuciosamente analisada no decorrer da pesquisa.
Os bens cujo título tenham uma causa anterior ao casamento também são incomunicáveis, como refere o artigo 1.661 do Código Civil de 2002. Essa disposição se mostra um tanto óbvia, visto que o artigo 1.659 e seus incisos exaurem as hipóteses de exclusão e em suas entrelinhas já trazem o conteúdo do dispositivo. Entretanto, esse artigo pode ser considerado como um reforço de que as aquisições anteriores ao matrimônio, mesmo que pendentes à época de sua celebração e percebidas posteriormente, estarão excluídas do rol dos bens comunicáveis.
Quanto aos bens móveis, estabelece o artigo 1.662 a presunção de que foram adquiridos na constância do casamento, devendo haver a sua comunicabilidade. Contudo, como expressa o dispositivo, a idéia de que são pertencentes ao casal é presumida, podendo qualquer dos nubentes que deseja reservar para si a propriedade de bens móveis que trouxer à união, guardar documentos que comprovem sua aquisição exclusiva e anterior ao matrimônio ou elaborar um inventário minucioso sobre tais bens, com o reconhecimento através da assinatura de ambos. Ainda, os documentos a serem utilizados para afastar a comunicabilidade dos móveis devem apresentar sua perfeita descrição e individualização e a data de sua aquisição.
Para concluir, resta dispensar uma explicação acerca da administração dos bens no regime da comunhão parcial, aduzindo que qualquer dos cônjuges pode exercê-la livremente, consoante artigo 1.663 do novo Código Civil, necessitando a anuência expressa de ambos os consortes somente em negócios que envolvam imóveis. Porém, em casos de malversação do patrimônio, a gerência pode ser atribuída judicialmente a somente um dos nubentes.
3.2. Comunhão universal de bens
A comunhão universal, com sua origem consuetudinária dos primeiros tempos da nação lusitana, era o regime legal do Brasil na ausência de deliberação das partes, até ser substituída pela comunhão parcial, com o advento da Lei do Divórcio. Sua regulamentação encontra-se nos artigos 1.667 a 1.671 do diploma civil de 2002 e, em sua essência, todos os bens se comunicam, com poucas exceções, traduzindo-se esses bens numa massa única formada pelo patrimônio de ambos os consortes.
Compreendidos nessa massa estão os bens presentes e futuros, inclusive as dívidas do casal, pois, como afirma Washington de Barros Monteiro (2004, p. 198) "não é só o ativo dos cônjuges que se comunica, também o passivo. A comunicação opera-se igualmente no bom e no mau, no certo e no duvidoso".
Além dessa comunicação extremamente abrangente, outra peculiaridade desse regime é considerar todos os bens integrantes da massa insuscetíveis de retorno à propriedade originária quando do desfazimento da união. Conforme as explicações de Arnaldo Rizzardo (2004, p. 643) "há praticamente uma despersonalização do patrimônio individual, surgindo um patrimônio indivisível e comum, sem definir, especificar, ou localizar a propriedade nos bens".
São requisitos para essa universalização dos bens na sociedade conjugal o casamento válido e a convenção por instrumento público, reconhecendo-se, a partir daí, quotas partes iguais atribuídas a um e a outro nubente, relativas a cada bem integrante dessa comunhão. A esse respeito, Caio Mário da Silva Pereira contribui:
Na constância do casamento, nenhum deles tem direito exclusivo a qualquer das coisas que se acharem em estado de indivisão. É igualmente vedado a um ou outro apossar-se de qualquer delas, privando o consorte de sua utilização. A ambos, entretanto, compete defender a coisa possuída contra as vias de fato ou pretensões de terceiros. Somente com a cessação da sociedade conjugal, e liquidação da comunhão, é que vem a caber a cada um dos consortes (ou respectivos herdeiros) os bens que se comportam na sua meação. (2002, p.135 e 136).
E por referirmo-nos ao fato de a liquidação da massa de bens somente ocorrer em casos de cessação da união, devemos frisar que as formas dessa cessação estão estritamente dispostas no artigo 1.571 do diploma civil vigente. São elas: a morte de um dos cônjuges, a separação e o divórcio e a sentença de nulidade ou anulação do casamento.
Inobstante a essência da comunhão universal traduzida pela vasta comunicação dos bens, há algumas ressalvas que fogem à regra. Essas exceções, segundo Washington de Barros Monteiro, "são ditadas pelo caráter personalíssimo dos efeitos em questão, ou representam natural decorrência de sua própria índole". (2004, p. 198).
O jurista Fábio Ulhoa Coelho (2006, p. 75) traz brilhante explicação acerca da razão dessas exceções, aduzindo que "sempre preserva a lei uma margem mínima de incomunicabilidade de bens, em atenção à proteção dos cônjuges, que normalmente estão embriagados pelo espírito de desprendimento deles exigido às vésperas do matrimônio e não têm, por isso, plena isenção para tratar dos assuntos patrimoniais com racionalidade".
O artigo 1.668 e seus incisos explicitam de forma taxativa o rol de bens que extravasam o âmbito de comunicabilidade estabelecido pela comunhão universal.
O seu inciso I se refere aos bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar. Mostra-se de fácil entendimento esse dispositivo, visto que o testador ou doador, ao inserir referida cláusula, evidentemente objetivou excluir o outro cônjuge da liberalidade ofertada. E para esclarecer um ponto de grande importância quando se aborda essa matéria, Fábio Ulhoa Coelho (2006, p. 76) ressalta que, de igual forma, se gravado o bem com cláusula de inalienabilidade, esta importa implicitamente sua incomunicabilidade. Por outro lado, a cláusula de incomunicabilidade, por si só, não impede a alienação do bem gravado. No que concerne à segunda parte do inciso, trata-se mais uma vez de sub-rogação real, como explicado anteriormente ao analisarmos a comunhão parcial.
Os bens gravados de fideicomisso e os direitos do fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva, estão explícitos no segundo inciso do artigo em estudo. Ocorre a situação na qual o fideicomitente (autor da liberalidade) designa uma mesma herança ou legado na ordem sucessiva para duas pessoas, condicionando a transferência da propriedade do bem da primeira pessoa para a segunda a um acontecimento futuro. Enquanto não realizada a condição determinada pelo fideicomitente, a incomunicabilidade da herança ou legado mostra-se óbvia por duas justificativas:
Em relação ao fiduciário (primeiro sucessor), porque sua característica de proprietário está condicionada a um acontecimento futuro ou à sua própria morte, caracterizando-se sua propriedade, segundo Arnaldo Rizzardo (2004, p. 645), como "restrita e solúvel", devendo conservar o bem para depois restituí-lo ou entregar ao fideicomissário.
No que concerne ao fideicomissário (segundo sucessor), porque precisa aguardar a realização da condição ou a morte do fiduciário para se tornar o proprietário do bem, traduzindo-se sua relação com a herança ou legado até a implementação do evento como mera expectativa de direito, visto que pode morrer antes do fiduciário, ocasionando a caducidade do fideicomisso, caso em que se estabelece de forma irrestrita e definitiva a propriedade em favor deste último. Realizando-se o implemento da condição ou ocorrendo a morte do fiduciário, a propriedade consolida-se definitivamente em favor do fideicomissário, passando o bem, a partir daí, a ser comunicável ao seu cônjuge.
O inciso III trata da exclusão das dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos ou reverterem em proveito comum. O passivo contraído anteriormente à união deve ser adimplido pelo cônjuge devedor com seus bens particulares ou com os que trouxer para a sociedade. A despeito da inexistência de patrimônio exclusivo e do fato de formarem os bens comuns uma massa indissolúvel durante a constância do casamento, injusto seria ver-se o credor impossibilitado de cobrar seu crédito antes do desfazimento da união. Portanto, a exigibilidade de tal crédito é imediata, e, como ensina Sílvio Rodrigues (2004, p. 188) "a execução recai somente sobre a meação do devedor, exonerando-se a meação do outro cônjuge".
Contudo, se a dívida contraída for revertida em proveito comum, como as despesas de viagem do casal, ou decorreu para os aprestos matrimoniais, como a compra dos móveis, o débito é de ambos os consortes, devendo ser suportado de forma igualitária.
As doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade também são excluídas da comunhão, consoante inciso IV do artigo 1.668. Essa exclusão se mostra um tanto desnecessária, à medida em que a liberalidade com cláusula de incomunicabilidade é abordada com suficiente amplitude no inciso I do dispositivo em tela. Referindo-se especificamente ao inciso IV, com muita propriedade, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 646) chama atenção para as hipóteses de fraude à execução ou contra credores nas quais um dos cônjuges, na tentativa de frustrar o adimplemento de uma dívida própria, doa seus bens ao outro consorte. Neste caso, a liberalidade pode ser considerada ineficaz ou desconstituída por meio de ação pauliana.
O inciso V considera como exclusivos os bens referidos nos incisos V a VII do artigo 1.659 do novo Código Civil. Relativo ao inciso V do artigo 1.659, a matéria já foi exaurida quando abordada a comunhão parcial. Quanto aos incisos VI e VII, repetindo o já mencionado, serão abordados no decorrer da pesquisa.
Por fim, vistos os bens excluídos da comunhão universal, importante lembrar que seus frutos não gozam da mesma incomunicabilidade quando percebidos na vigência da união ou pendentes à época da dissolução, tornando-se bens comuns. No que compete à administração de todos os bens comuns, essa se rege nos mesmos termos da comunhão parcial, sendo de incumbência de ambos os cônjuges, atribuindo-se, por sua vez, a gerência dos bens particulares ao seu respectivo proprietário, ressalvadas estipulações diversas nos pactos antenupciais.
4. A incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão
4.1. Esclarecimentos acerca da abrangência da expressão "incomunicabilidade dos proventos trabalhistas"
O presente trabalho tem como objeto principal de estudo dois dispositivos do Código Civil de 2002, quais sejam: o artigo 1.659 e seu inciso VI e o artigo 1.668 e seu inciso V. O primeiro dispositivo comporta o enunciado que determina a exclusão dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge que concretizou seu casamento escolhendo como regime patrimonial a comunhão parcial de bens. Já o segundo trata da exclusão desses mesmos proventos para o cônjuge que se casou elegendo como regime patrimonial a orientar sua união a comunhão universal de bens. Este último, porém, determina tal exclusão de forma indireta, reportando-se ao primeiro dispositivo, que é alusivo à comunhão parcial de bens, para estabelecer idêntica situação no caso da comunhão universal.
Presume-se, por conseguinte, que quando se trata da partilha dos auferimentos laborais, tanto na comunhão parcial de bens como na comunhão universal, os efeitos são os mesmos. Por essa razão, ao se tratar especificamente do assunto neste capítulo, procurar-se-á referir-se à incomunicabilidade dos proventos laborais de maneira genérica, de modo a abranger os dois regimes patrimoniais, inobstante alguma citação trazida ao trabalho faça referência específica a um ou outro regime de comunhão.
Primeiramente, cabível uma breve conceituação, com o escopo de esclarecer alguns pormenores acerca da expressão "a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge", que será utilizada.
Quanto à expressão "incomunicabilidade", seu sentido no trabalho em tela é de fácil compreensão, podendo-se deduzir o significado sem maiores dificuldades. A despeito da singeleza de seu entendimento e para ilustrar com maior propriedade o conteúdo de sua significação, cita-se as palavras de Antonio de Paulo (2002, p. 166), que diz que incomunicabilidade é o "caráter de certos bens que, por determinação legal ou por disposição de vontade, não entram na comunhão do patrimônio".
Portanto, denomina-se incomunicável todo o bem, móvel ou imóvel, que, por lei ou convenção dos nubentes, não ingressa no rol dos bens destinados à partilha quando da separação conjugal, pertencendo na sua integridade a um só cônjuge.
Por sua vez, a palavra "proventos" veio com o Código Civil de 2002 em substituição à expressão "frutos cíveis do trabalho", da qual se utilizava o legislador de 1916 para se referir à exclusão das verbas trabalhistas nos regimes de comunhão. Se considerado o sentido técnico-jurídico atual da palavra "proventos", exprime a idéia de auferimentos obtidos com a aposentadoria do servidor público ou empregado. No entanto, quando o legislador se utilizou dessa expressão no inciso VI do artigo 1.659, visou uma significação mais abrangente. Veja-se a explicação de Paulo Nader:
Na linguagem técnica, provento significa os rendimentos auferidos pelos inativos; todavia, no inciso VI do artigo 1659, o legislador deu ao vocábulo um sentido mais amplo, a fim de abranger toda a espécie de recebimento em função de emprego, público ou privado (vencimentos, salários), de aposentadoria ou trabalho profissional, como honorários e pro labore. (2006, p. 476).
Cabe também ressaltar as palavras de Débora Vanessa Caús Brandão (2007, p. 210), que refere que "a lei empregou a palavra 'provento' genericamente, a fim de englobar todas as formas de remuneração por trabalho prestado".
Para todos os efeitos, então, ao se referir à expressão em pauta no presente trabalho, far-se-á de modo que abranja as aposentadorias em geral e também toda a remuneração obtida pelo trabalho prestado, seja o salário mensalmente percebido, o FGTS, a participação nos lucros, o PIS, entre outros.
4.2 Visão doutrinária e jurisprudencial da incomunicabilidade dos proventos nos regimes de comunhão
Como visto anteriormente, o artigo 1.659, inciso VI, e o artigo 1.668, inciso V, ambos do Código Civil atual, estabelecem a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes patrimoniais de comunhão no ordenamento jurídico brasileiro. Numa análise literal e prematura dos dispositivos (os quais já foram contemplados por inúmeras vezes sob essa ótica pelos tribunais brasileiros), dessume-se se constituir a incomunicabilidade como característica inerente à grande maioria dos bens auferidos na constância do casamento, levando-se em conta que no contexto da sociedade contemporânea quase a totalidade do que se aufere provém da atividade laboral.
Por conta disso, insurge-se a celeuma jurídica em razão da incongruência que se estabelece, comparando-se a consideração literal do que determinam os dispositivos com a finalidade da união conjugal regida pelos moldes das comunhões, visto que, na essência desses regimes, praticamente o todo patrimonial é comunicável.
Em suas explanações referentes ao assunto, Débora Vanessa Caús Brandão (2007, p. 210) lança uma dúvida, questionando sobre "como harmonizar a exclusão dos proventos do cônjuge da comunhão com o próprio regime da comunhão parcial, cuja essência é a comunhão do adquirido na constância do casamento".
Destarte, enseja-se vultosa discussão sobre o assunto, traduzida pela divergência de pensamentos jurisprudenciais e doutrinários, fulcrados nos mais diversos argumentos e abordando a problemática sob os mais distintos aspectos, buscando uma resposta adequada, a fim de assentar a celeuma, estabelecendo de forma definitiva e uniforme a preponderância de um ou de outro posicionamento. A complexidade que gira em torno da matéria é extremamente acentuada a ponto de fazer titubear os próprios juristas, influenciados ora por uma, ora por outra corrente. Outros como Sílvio de Salvo Venosa, por exemplo, preferem se reservar à imparcialidade:
O novel legislador foi expresso, encerrando a celeuma, estatuindo que se exclui da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (art. 1659, VI). O Projeto nº 6960, porém, exclui esse tópico do rol, adotando posição contrária, para evitar com isso problemas de ordem prática. Na verdade, é difícil precisar o momento exato em que os valores deixam de ser proventos do trabalho e passam a ser bens comuns, volatizados para atender as necessidades do lar conjugal. (2005, p. 368).
Em meio aos questionamentos sobre a destinação das verbas trabalhistas, ganha especial relevo a preocupação em não confundir o patrimônio exclusivo com o que deve ser partilhado de forma igualitária pelos consortes em virtude da conjugação de esforços na realização plena da vida em comum. E, na ânsia de assentar essa polêmica, as opiniões divergem, baseadas numa gama de argumentos que se multiplicam em função de fundamentar um ou outro posicionamento, que se revela, em síntese, contra ou a favor da incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge.
Para melhor ilustrar a divergência doutrinária e jurisprudencial que habita as mesas de estudos de grande parte dos civilistas brasileiros no que concerne a essa matéria, serão expostas algumas das mais respeitadas opiniões acerca do assunto, enfatizando-se os principais aspectos e peculiaridades constantes nas explanações de cada autor. De um lado, entre os que se contrapõem à incomunicabilidade dos proventos nos regimes de comunhão, encontram-se nomes de grande peso, como Sílvio Rodrigues, Paulo Nader, Rolf Madaleno, Maria Berenice Dias, Carlos Roberto Gonçalves e Alexandre Guedes Alcoforado Assunção.
Manifestando-se sobre o assunto, Maria Berenice Dias considera a exclusão dos proventos nos regimes de comunhão como absolutamente desarrazoada:
Flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte as suas economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. O casamento gera comunhão de vidas (CC 1511). Os cônjuges têm dever de mútua assistência (CC 1566 III) e são responsáveis pelos encargos da família (CC 1565). Assim, se um dos consortes adquire os bens para o lar comum, enquanto o outro apenas acumula as reservas pessoais advindas de seu trabalho, os bens adquiridos por aquele serão partilhados, enquanto o que este entesourou resta injustificadamente incomunicável. De regra, é do labor pessoal de cada um que advêm os recursos necessários à aquisição dos bens conjugais. (2006, p. 206).
A autora atenta para o caso de quem não tem atividade remunerada, como quem se dedica ao trabalho doméstico, o que na maioria das vezes é feito pela mulher. Ressalta a importância dessa atividade para a constituição do patrimônio conjugal, por possibilitar a ocorrência de sobras orçamentárias.
Sob essa mesma ótica se posiciona Rolf Madaleno, censurando a legislação no que se refere à incomunicabilidade de proventos trabalhistas no regime da comunhão parcial de bens. Entende que tais disposições desestimulam a colaboração mútua dos cônjuges no escopo de formar patrimônio, pois o que assumir a mantença familiar restará lesado, ao passo que o outro, que economizou, locupletar-se-á às suas custas. Assevera também o autor que o legislador de 2002, na tentativa de corrigir as falhas do Código Civil de 1916, cometeu flagrante injustiça ao inserir o inciso VI do artigo 1.659 no Diploma Civil atual:
Antes tivesse o legislador abortado a ressalva de incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, ainda que no regime da comunhão parcial, quando se sabe que, de regra, é do labor pessoal de cada cônjuge que advém os recursos necessários para a aquisição dos bens conjugais Premiar o cônjuge que se esquivou de amealhar patrimônio, preferindo conservar em espécie os proventos de seu trabalho pessoal é incentivar uma prática de evidente desequilíbrio das relações conjugais econômico-financeiras, mormente porque o regime matrimonial de bens serve de lastro para a manutenção da célula familiar. (MADALENO, 2005, p. 181).
Há também os que refutam a incomunicabilidade dos proventos, todavia sem criticar os dispositivos em estudo, apenas atribuindo-lhes uma interpretação distinta da literal. Aduzem que a incomunicabilidade a que se reporta o inciso VI diz respeito apenas ao direito de percepção desses numerários, passando esses a serem comuns a partir de seu recebimento. A esse raciocínio é adepto Sílvio Rodrigues, que, por sua vez, opta pela manutenção dos dispositivos:
O direito ao recebimento de tais valores, ou seja, à pensão, montepio, meio-soldo, salários etc., não se comunica com o casamento, em virtude de seu caráter personalíssimo. Mas, recebida a remuneração, o valor obtido passa para o patrimônio do casal. Da mesma maneira, os bens adquiridos com o seu produto. Assim, por exemplo, se um dos cônjuges, antes de casar, tinha direito a determinada pensão, tal direito não se comunica por força do casamento posterior. Mas o direito que mensalmente receber, após o casamento, comunica-se após o vencimento da prestação. Esse entendimento não frustra a regra do art. 1659, VI e VII, porque, se o casamento, por exemplo, for dissolvido por separação judicial, o cônjuge separado terá, além de sua meação, o direito à pensão e salários que não se comunicou. (2004, p.183).
Outro jurista que ataca a incomunicabilidade em moldes interpretativos, sem, contudo, ferir diretamente os dispositivos em tela, é Carlos Roberto Gonçalves:
Deve-se entender, na hipótese, que não se comunica somente o direito aos aludidos proventos. Recebida a remuneração, o dinheiro ingressa no patrimônio comum. Da mesma forma os bens adquiridos com o seu produto. Em caso de separação judicial, o direito de cada qual continuar a receber o seu salário não é partilhado. Se se interpretar que o numerário percebido não se comunica, mas somente o que for com ele adquirido, poderá esse entendimento acarretar um desequilíbrio no âmbito financeiro das relações conjugais, premiando injustamente o cônjuge que preferiu conservar em espécie os proventos de seu trabalho, em detrimento do que optou por converter suas economias em patrimônio comum. (2006, p. 417).
De outra banda, encontram-se doutrinadores que sustentam o entendimento de que as verbas trabalhistas são incomunicáveis e, portanto, não devem entrar na partilha quando da separação conjugal. Essa ótica doutrinária é fundamentada principalmente no fato de possuírem os proventos um caráter personalíssimo, ou seja, por serem destinados esses numerários única e exclusivamente ao prestador do serviço que deu origem ao seu recebimento. Dentre os mantenedores dessa outra lógica pertinente aos proventos se destacam: Arnaldo Rizzardo, Virgílio Parnagiotis Stavridis, Fábio Ulhoa Coelho, Orlando Gomes, Eduardo de Oliveira Leite, Silmara Juny Chinelato e Vicente Arruda, e outros.
Todos consideram os proventos como incomunicáveis quando do desfazimento da sociedade conjugal, porém advertem que essa exclusão das verbas trabalhistas abrange somente o que se conserva em espécie pelo consorte que as auferiu, seja em sua posse ou aplicado em estabelecimento bancário. As aquisições patrimoniais, mesmo que realizadas exclusivamente com esses valores, entram para a comunhão, tornando-se, portanto, integrantes do rol de bens que devem ser partilhados em decorrência da separação. Essa tendência é corroborada nas palavras de Arnaldo Rizzardo, que ensina:
Por tal disposição, os proventos de trabalho de cada cônjuge não se comunicam. O dispositivo se restringe unicamente aos proventos, salários, vencimentos ou rendimentos de atividade pessoal, seja no comércio ou em outros setores, não incluindo os bens adquiridos com os proventos. As aquisições, mesmo resultante dos proventos, passam para a comunhão. (2004, p. 636).
Essa tendência também é explicitada por Virgílio Parnagiotis Stavridis. Explica ele que o legislador corrigiu grande equívoco do Código Civil de 1916, pois este excluía os frutos civis do trabalho dos consortes na comunhão universal (art. 263, XII) e os incluía na comunhão parcial (art. 271, VI), sendo que o artigo 269, IV, dispunha que tudo que não se comunicasse na comunhão universal não podia se comunicar na comunhão parcial.
No que se refere ao alcance da disposição, parece que não quis o legislador deixar dúvidas quanto à não comunhão dos rendimentos decorrentes do trabalho, assalariado ou não, de cada cônjuge. Utilizou a expressão proventos, que, apesar de ter, atualmente, sentido técnico-jurídico de rendimentos decorrentes da aposentadoria do empregado, ou do servidor público, quer exprimir, num sentido mais amplo e comum, salário, vencimentos, subsídio ou qualquer rendimento, seja de trabalho assalariado ou não, e ainda os rendimentos decorrentes da aposentadoria. Assim, entende-se que qualquer verba percebida como ganhos decorrentes de atividade laborativa do cônjuge esteja excluída da comunhão, compondo apenas seu patrimônio particular. (2002, p. 342).
Ainda, impossível discorrer sobre essa seara jurídica sem referir os ensinamentos de Orlando Gomes. Citado na obra de Lydia Neves Bastos Telles Nunes (2005, p. 122), o doutrinador assevera que os proventos pessoais de cada cônjuge devem ter como destinação primordial a manutenção familiar, proporcionando o suporte para as suas despesas. Os valores que excederem essa responsabilidade integram o patrimônio exclusivo de quem os auferiu, se conservada a sua procedência. Porém, uma vez alterada sua espécie pela compra de bens, integram o patrimônio comum.
Vistos alguns dos diversos posicionamentos doutrinários favoráveis e contrários à incomunicabilidade dos proventos, passar-se-á a ilustrar o trabalho com alguns posicionamentos jurisprudenciais que auxiliarão a denotar a dissonância acerca da matéria em questão. Tais decisões, assim como os raciocínios doutrinários, apresentam suas variações nos mais diversos aspectos e contêm em sua fundamentação os mais diversos argumentos, com a finalidade de justificar suas opiniões.
A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão, se manifestou considerando literalmente o dispositivo que exclui os proventos na união conjugal, positivados no Código Civil:
DIVÓRCIO DIRETO. ALIMENTOS. DECLARAÇÃO DE DIREITO E PARTILHA DE BENS. CRÉDITOS TRABALHISTAS DO VARÃO. DESCABIMENTO. 1. Considerando que os litigantes foram casados pelo regime da comunhão parcial de bens, forçosa a exclusão dos créditos trabalhistas reclamados, que constituem apenas frutos civis do trabalho do varão. Inteligência do art. 269, inc. IV, e art. 263, inc. XIII, do CCB/1916 e art. 1.659, inc. VI, do CCB/2002. 2. Considerando que a ex-mulher sempre se dedicou ao lar, teve e criou os filhos, agora adultos, ficou desatualizada e sem condições de concorrer no competitivo mercado de trabalho, restando plenamente justificada a manutenção do liame obrigacional alimentar, como efeito residual do casamento desfeito. Recurso provido em parte.[1]
Fora reformada a parte da sentença que determinava a partilha dos créditos trabalhistas provenientes de reclamatória do marido, conferindo, assim, com o acórdão, a totalidade dos valores ao varão, cumprindo ipsis litteris o determinado no artigo 1.659, VI, do Código Civil de 2002.
Ainda, no referente à Sétima Câmara, faz-se mister destacar um acórdão, cuja relatora é a Desembargadora Maria Berenice Dias, que em seus ensinamentos, como demonstrado anteriormente, defende a todo custo a comunicabilidade dos proventos obtidos na vigência da sociedade conjugal.
Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo separando contra a decisão interlocutória que determinou o bloqueio dos valores depositados junto a estabelecimento bancário a pedido da separanda, a fim de se avaliar, no decorrer do processo, a pertinência de sua partilha. O agravante alegou serem proventos oriundos de rescisão contratual trabalhista e, portanto, incomunicáveis.
UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. INDENIZAÇÃO TRABALHISTA. A indenização trabalhista havida, ou não, durante o relacionamento, é fruto civil do trabalho, na definição do Código Civil de 1916, ou provento do trabalho, na nova denominação dada pelo atual Código Civil, e não integra o patrimônio comum, o que afasta a pretensão para bloquear o valor correspondente a tal verba.
POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO, VENCIDA A RELATORA.[2]
Fora dado provimento ao agravo por maioria, considerando os valores como incomunicáveis na qualidade de proventos pessoais, sendo vencida a relatora, que votou pela manutenção da decisão proferida pelo juiz. Quanto ao posicionamento da Desembargadora, conveniente expor uma ressalva referente ao FGTS. Os auferimentos oriundos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, segundo a doutrinadora, são incomunicáveis. Isso porque, consoante seu entendimento (DIAS, 2006, p. 207), o referido crédito possui um caráter personalíssimo, em benefício da pessoa do trabalhador, não integrando o conceito de aqüestos, diferentemente dos demais proventos. A doutrinadora cita, para ilustrar sua obra no concernente ao assunto, o seguinte acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL. SEPARAÇÃO. PARTILHA DE BENS. FGTS. devem ser excluídos do acervo a ser partilhado os valores recebidos DO FGTS, eis que tais verbas são indenizatõrias e CONSTITUEM proventos pessoais do trabalhador. art. 263, xiii, DO cÓDIGO CIVIL DE 1916. descabe arbitrar aluguel A SER PAGO PELA separanda EM RAZÃO DA utilização de imóvel do casal, ESPECIALMENTE QUANDO COM ELA SE ENCONTRAM LÁ RESIDINDO OS FILHOS. enquanto não ultimada a partilha de bens, tal imóvel é de propriedade COMUM. PROVERAM, PARCIALMENTE. por maioria.[3]
Por último, entende-se ser de grande contribuição destacar este último acórdão:
APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. PARTILHA DE BENS. VERBAS TRABALHISTAS recebidas pelo ex-cônjuge. INCOMUNICABILIDADE. arts. 269, IV e 263, XIII, do antigo Código Civil, combinados com o art. 2.039 do novo Código Civil.
As verbas trabalhistas, ainda que tenham sido auferidas durante o casamento, tanto no regime da comunhão universal, quanto no da comunhão parcial de bens, são incomunicáveis e, portanto, não podem ser objeto de partilha, porquanto são "frutos civis" do trabalho do ex-cônjuge.[4]
Nesse caso, a autora ajuizou ação postulando a divisão de valores oriundos de reclamatória trabalhista do ex-marido. O juízo indeferiu de pronto a inicial por impossibilidade jurídica do pedido e extinguiu a demanda sem o julgamento de mérito. A autora, no entanto, apelou, aduzindo serem verbas concernentes ao período de convívio marital. O Tribunal recebeu, porém julgou desprovido por maioria o recurso, sendo vencido o voto do Relator Rui Portanova, que defendeu a comunicabilidade dos créditos.
Interessante frisar parte da manifestação do Relator, extraída do acórdão: "Durante algum tempo decidi que créditos trabalhistas eram incomunicáveis. Mas mudei minha posição. Hoje penso que verbas oriundas de indenização trabalhista podem ser patrimônio comum a ser partilhado, se o seu período aquisitivo se deu na vigência do casamento ou da união estável".
Com essa última exposição, denota-se que as incertezas relativas à questão da incomunicabilidade das verbas trabalhistas variam tanto de acordo com a pessoa dos juristas como também à época em que os mesmos explicitam seus pareceres, defendendo ora uma, ora outra opinião.
Em que pese tais contradições, a tendência jurisprudencial do Rio Grande do Sul (ainda que não unânime) se traduz por considerar incomunicáveis os proventos de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal. Porém, a despeito dessa predominância dos Tribunais, insurgem-se questionamentos por parte da doutrina e dos magistrados acerca de tal consideração, que acentuam de modo crescente a celeuma instaurada em razão da matéria, que, ao que se percebe, está distante de uma solução uniformizada e livre de polêmicas.
5. Conclusão
Com o estudo apresentado, foi possível constatar a abrangência da problemática que envolve a destinação das verbas trabalhistas percebidas pelos cônjuges nos regimes de comunhão. Destarte, seja permitido destacar algumas observações que se fazem pertinentes e imprescindíveis ao abordar a matéria.
Em caso de consagração dos dispositivos em seu sentido literal, corre-se o risco de ensejar o desvirtuamento da economia individual de cada consorte, que deseja resguardar para si o produto de seu trabalho como forma de garantir um quinhão exclusivo em caso de separação, implicando redução ou quase ausência de patrimônio comum, prejudicando o desenvolvimento da família como um todo e destoando absolutamente do que deve ser a essência do matrimônio constituído nos moldes dos regimes de comunhão.
Já, em caso de não atender aos dispositivos, comunicando toda e qualquer verba trabalhista, enseja a possibilidade de ofensa ao aspecto profissional do nubente, desmerecendo seu esforço particular na busca pelo progresso e desconsiderando suas privações e economias no intuito de alcançar um determinado fim. Ocorre, nesse caso, o abalo do caráter pessoal da profissão, destituindo, muitas vezes, o consorte de seu direito de livre destinação de suas economias, fruto do trabalho que somente ele realizou, lesando-o plenamente em sua liberdade e individualidade.
A fria opção por uma ou outra corrente, por vezes, conduz ao inevitável cometimento de irreparáveis prejuízos a uma das partes e, por conseguinte, locupletamento da outra, o que é incessantemente combatido pelo Direito. Oportuniza-se, indefectivelmente nesse caso, uma considerável afronta, não apenas ao princípio da isonomia entre os cônjuges, mas à igualdade na sua mais ampla acepção, pois o que preceitua referida norma não é uma uniformidade jurídica dispensada à universalidade dos casos, e sim um tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais, estabelecendo tratamentos diferentes, porém adequados ao contexto de cada caso.
Por sua vez, a inércia do sistema jurídico, ao não assumir uma postura definitiva diante de tal celeuma, abala o princípio da livre estipulação do regime de bens. Considerando a importância do casamento, por ser este um dos principais pontos de partida para a formação de uma nova família, a maior parte de suas regras são marcadas por um protecionismo e inflexibilidade aos quais cabe aos consortes apenas aderi-los, exercendo sua autonomia unicamente em relação aos efeitos patrimoniais.
E sendo os efeitos patrimoniais o pouco que se pode dispor conforme a vontade, diz-se haver total liberdade quanto à convenção do regime de bens. Todavia, não se podendo precisar qual a definição do ordenamento quanto à questão em tela, não se podem prever os efeitos de uma união matrimonial norteada pelos regimes de comunhão quanto às percepções auferidas da atividade laboral. Conseqüentemente, não pode um ordenamento ostentar a plena liberdade quanto à convenção do regime de bens se não se pode mensurar os rumos dessas disposições de vontade, restando a liberdade, nesse âmbito, ferida em sua plenitude.
No decorrer da pesquisa, restou evidenciado que toda a discussão gerada em torno da matéria foi determinada e acentuada pela evolução de dois fatores primordiais.
O primeiro é a família, cujos valores e objetivos não mais são determinados pela discricionariedade paternalista, o que ocorria num passado não muito distante. Esse instituto, protegido constitucionalmente em tempos hodiernos, assume um caráter democrático, consagrando a afetividade como valor máximo e fator essencial à sua constituição, possibilitando, assim, o reconhecimento da importância da figura materna e lhe conferindo uma posição de equilíbrio e isonomia em todos os aspectos e decisões que envolvem o contexto familiar.
O segundo, por sua vez, é o próprio direito, que adquire uma postura muito mais dinâmica e realista frente aos impasses da sociedade, buscando atender ao finalismo e ao espírito da lei, possuindo nos princípios a estrutura sobre a qual se pode concretizar a justiça, e se desatrelando dos engessamentos e limitações que a regra escrita, outrora, muitas vezes o submetia.
A árdua tarefa de disciplinar a problemática exigirá uma temerosa cautela que não se resume em distorções hermenêuticas ou o falho apoio em meras interpretações literais. Na trajetória em busca de uma solução adequada, compreendem-se aspectos de extrema relevância que vão desde a valorização da profissão e do trabalho doméstico até a preservação da dignidade e da individualidade de cada consorte. Tais aspectos se apresentarão ora se somando, para dar razão a uma das partes, ora se contrapondo, por pertencerem a lados opostos.
A despeito dessa contraposição, todos esses aspectos, sem exceção, são merecedores de um profundo respeito e consideração por parte do magistrado, que deverá analisar cuidadosamente o caso concreto com todas as circunstâncias que o envolvem, lançando mão de um juízo de proporcionalidade, seja para abrandar o rigor da lei, seja para garantir o texto legal, a fim de contrabalançar os vários direitos envolvidos na relação jurídica e que se encontram à espera de justiça.
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[1] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70010990331, Sétima Câmara Cível. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 20/04/2005. Disponível em: . Acesso em: 12-03-2008. ANEXO II.
[2] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n. 70006870554, Sétima Câmara Cível. Relatora: Maria Berenice Dias. julgado em 01/10/2003. Disponível em: . Acesso em: 13-03-2008. ANEXO III.
[3] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70007191034, Sétima Câmara Cível. Relator:Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 05/11/2003. Disponível em: . Acesso em: 15-03-2008 ANEXO IV.
[4] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70014694574, Oitava Câmara Cível. Relator: Rui
Portanova. Julgado em 24/08/2006. Disponível em: . Acesso em: 16-03-2008 ANEXO VI.
Autora: Beatriz Helena Braganholo é Advogada, professora das disciplinas de Direito de Família e das Sucessões da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo e sócia do IBDFAM.
Autor: Homero Alvenis Dutra é Bacharel de Direito pela Universidade de Passo Fundo.