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21 de Janeiro de 2009
Artigo - O Afeto face ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Seus Efeitos Jurídicos no Direito de Família
1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é, através dos métodos dialético e comparativo e da documentação indireta, apresentar uma noção geral sobre o afeto face ao princípio da dignidade da pessoa humana e seus efeitos jurídicos no Direito de Família.
Para alcançá-lo, necessária é a conceituação de princípio, compreendendo também seu sentido e disciplina legal envolvida.
Ademais, indispensável também é compreender o afeto e sua definição em diversos aspectos, como direito da personalidade e princípio jurídico, bem como a conseqüência da sua falta, seus efeitos ou repercussões no direito de família e nos Poderes Legislativo e Judiciário.
A importância e a atualidade do assunto são constatadas em situações fáticas ocorridas na sociedade e na família, que vêm passando por grandes transformações e acarretando para o Judiciário a responsabilidade pela decisão sobre: união entre homossexuais, adoção por casal homossexual, paternidade socioafetiva, abandono afetivo e etc.
2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
2.1 Conceito de princípio
De forma geral, princípio pode ser conceituado como: "início, começo; preceito, regra; [...], noções básicas; regras de conduta moral; convicções". (HOUAISS, 2003, p. 421)
Este conceito apresentado é equivocado no entendimento de José Afonso da Silva (2005, p. 91). Para ele, "exprime a noção de mandamento nuclear de um sistema." Sendo assim, ele ensina que princípio é um parâmetro imperativo e norteador relevante para todo o ordenamento jurídico.
Na concepção de Rizzatto Nunes (2007, p. 5), "princípio é aquilo que, uma vez identificado, não pode mais ser alterado, devendo incidir sobre tudo. É algo universal, absoluto, do qual não se pode escapar."
No que diz respeito ao princípio jurídico, ele o conceitua como: "um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico [...] e vincula o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam." (NUNES, 2007, p. 37)
Na lição de Hans Kelsen (2003, p. 97), "a norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo não é, em compensação, nada mais que uma regra fundamental."
Para Norberto Bobbio (1999, p. 158), "os princípios gerais são apenas a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais [...]. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras."
Em sua exposição, ele cita Crisafulli (apud BOBBIO, 1999, p. 159), que demonstra a existência dos princípios gerais expressos e não expressos, mencionando que os últimos "são normas generalíssimas, e os não expressos aqueles considerados como o espírito do sistema".
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 elenca os princípios "expressos" ("soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político"), que estão inseridos nos incisos do artigo 1º. Estes princípios serão norteadores para o ordenamento jurídico e deverão ser abrangidos no sistema jurídico como um todo. (PEREIRA, 2006, p. 24)
Exemplificativamente, os princípios não expressos ou implícitos de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 85-102) e Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p.106, 126, 140, 152, 163) são:
1. Moralidade pública, na esfera dos atos administrativos: previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988;
2. Proporcionalidade: disciplinado nos artigo 5º, do texto constitucional, visando à resolução de conflitos entre princípios;
3. Razoabilidade, implícito na Carta Magna, nos artigos 5º, II e LXIX e 37, caput, que tratam do princípio da legalidade, mandado de segurança e atos administrativos;
4. Motivação, estabelecido nos artigos 1º, II e 5º, XXXV, da Constituição Federal que asseguram a cidadania e apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito;
5. Supremacia do interesse público sobre o interesse privado, nos incisos XXIV e XXV, do texto constitucional que disciplinam a desapropriação e requisição;
6. Monogamia, que visa orientar a organização de todos os tipos familiares, bem como a vedação ao incesto, para evitar casamentos entre pessoas com grau de parentesco próximo, inserido no Código Civil, artigo 1521 e incisos que trata dos impedimentos para o casamento.
7. Melhor interesse da criança e adolescente, no art. 227 da Carta Magna e arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente;
8. Igualdade e respeito às diferenças, nos arts. 5º, I e 226, § 5º da CF/88;
9. Autonomia e menor intervenção estatal, disposto no art. 1513 do Código Civil;
10. Pluralidade das formas de família, no art. 226 da Constituição Federal.
Diante disso, pode-se depreender que os princípios são os pilares que sustentam a ordem jurídica de um Estado por meio de sua Constituição e a legislação infraconstitucional, "garantindo o Estado Democrático de Direito". (PEREIRA, 2006, p. 94)
2.2 Sentido
O Professor Rizzatto Nunes (2007, p. 49-52) ensina que "a dignidade nasce com a pessoa, é inata e inerente à sua essência. O indivíduo nasce com integridade física e psíquica, cresce e vive no meio social, e tudo o que o compõe tem que ser respeitado", concluindo que: "a dignidade humana é um valor preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa."
A dignidade da pessoa humana não é apenas uma palavra com conotação ética, ela também expressa "o elemento que qualifica e completa o ser humano e dele não pode ser destacado", ou seja, aquilo que "assegura ao indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais". (BORGES, 2008, p. 230-231)
Ao mesmo tempo, na concepção de Alexandre de Moraes (2005, p. 16): "A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos."
Após a Segunda Guerra Mundial, houve a inserção do princípio objeto de nosso estudo neste item, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi "redigida sob o impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial e representou o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens no seu artigo 1º." (COMPARATO, 2004, p. 223)
Esclarecem Fabio Konder Comparato (2004, p. 21) e Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 96) que a expressão dignidade da pessoa humana é encontrada na obra do filósofo Immanuel Kant, "Fundamentação da metafísica dos costumes", de 1785, que já considerava "[...] que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas."
Na concepção de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 100) "[...] ocorreram diversos exemplos históricos de indignidade antes da Constituição Federal de 1988 que foram cometidos no Direito de Família", tais como: "a exclusão da mulher do princípio de igualdade colocando-a em posição inferior ao homem; a proibição de registrar o nome do pai nos filhos havidos fora do casamento se ele fosse casado e o não reconhecimento de outras formas de família que não fosse o casamento". Diante deste cenário, "o ser humano passou a ter garantias e a ser respeitado independente de raça, religião, condição social, sexo, idade, expressão de pensamento, crença, etc., pelo simples fato de fazer parte da sociedade". (GIRARDI, 2005, p. 49)
Sendo assim, "a dignidade por ser um princípio expresso, também, abrange outros não expressos tais como: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade". (PEREIRA, 2005, p. 94) Essa visão humanista, em que a pessoa humana é o enfoque central na Carta Magna é que "assegura a plena satisfação do ser humano nos seus aspectos biopsicofísicos". (GIRARDI, 2005, p. 56) Nesse sentido, "a sociedade constituída por valores, anseios e realidades diferentes traz em seu seio inúmeros projetos existenciais e de felicidade" (BORGES, 2008, p. 232).
Diante disso, o "Estado brasileiro deve assegurar a todos, mas de forma individual, sem qualquer forma de preconceito e discriminação, condições para a realização desses projetos." (GIRARDI, 2005, p. 56) Essa visão pode ser complementada pelo entendimento de que a dignidade da pessoa humana "resulta também do fato de que, por sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita." (COMPARATO, 2004, p. 21)
Na lição de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 106), "A dignidade, portanto, é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a funcionalização de todos os institutos jurídicos à pessoa humana."
E conforme o exposto, o "sentido do Princípio da Dignidade Humana só se torna efetivo, quando se verifica na Constituição de 1988, o poder atribuído a cada cidadão de se realizar plenamente em sua personalidade." (PEREIRA, 2006, p. 52)
2.3 Disciplina legal
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]; III - a dignidade da pessoa humana; [...]"
A Carta das Nações Unidas, assinada no dia 26 de junho de 1945 em São Francisco, nasceu após a Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional e reconhece no seu preâmbulo a dignidade da pessoa humana, tendo em vista as atrocidades ocorridas nas duas grandes guerras mundiais, e os países membros da ONU assumem esse compromisso respeitando os direitos humanos. (COMPARATO, 2004, p. 209-215)
Determina o preâmbulo mencionado no parágrafo anterior:
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.
RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES OBJETIVOS.
Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.
O princípio em comento também é encontrado no preâmbulo e artigo 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 que passamos a transcrever: "PREÂMBULO: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo [...] Artigo 1°. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."
No que diz respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica de 1969, vale lembrar que no seu artigo 11, item n. 1, também está disciplinado o princípio objeto de nosso estudo neste item e que foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, conforme se depreende do exposto: "Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade."
Pode-se verificar a proteção à dignidade da pessoa humana em diversas legislações, o que evidencia sua relevância no cenário mundial, nas relações entre países, no compromisso de cada um deles para com a sociedade e cada ser humano.
3 AFETO
3.1 Definição do ponto de vista da psicanálise
Do ponto de vista da psicologia e psicanálise, o afeto terá diversos entendimentos, tendo em vista a existência de diversas teorias e os enfoques na compreensão da natureza psíquica do ser humano.
De acordo com Luiz Alfredo Garcia-Roza (2005, p. 104), "o afeto será organizado por meio da evolução da libido que ocorrerá nas etapas da vida humana que Freud denominou como: oral, anal, fálica, período de latência e genital."
Na concepção de Winniccott (2005, p. 17), no afeto "nos tornamos pessoa em virtude da relação com outra pessoa."
Para Melanie Klein (2005, p. 7), o afeto pode ser entendido como "núcleos internos atribuidores de significado às vivências e às relações enquanto estas estão ocorrendo."
De um modo geral, o afeto pode ser compreendido como um aspecto subjetivo e intrínseco do ser humano que atribui significado e sentido à sua existência, que constrói o seu psiquismo a partir das relações com outros indivíduos.
3.2 Como direito da personalidade
Para compreender o afeto como direito da personalidade não previsto expressamente no Código Civil de 2002, porém, implicitamente, é necessário entender como os doutrinadores conceituam o direito da personalidade.
Os direitos da personalidade, para Silvio Rodrigues (2003, p. 61), "são aqueles que fazem parte da pessoa humana, e como tal, estão ligados de forma eterna e constante, não sendo possível existir um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade e àquilo que ele crê ser sua honra."
No entendimento de Goffredo Telles Junior (1979, p. 316): "Os direitos da personalidade são direitos subjetivos de primeiro grau, direitos comuns de existência, porque são simplesmente permissões, dadas a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta, sem mediação de normas jurídicas: o bem de existir como pessoa. O bem de ser indivíduo racional e autônomo."
Para Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 153), "os direitos da personalidade são prerrogativas individuais, inerentes à pessoa humana, que foram reconhecidas pela doutrina e pelo ordenamento jurídico, e também são direitos inalienáveis que merecem a proteção legal."
No conceito de Sílvio de Salvo Venosa (2004, p. 149), "há direitos que afetam diretamente a personalidade, que não possuem conteúdo econômico direto e imediato. A personalidade não é exatamente um direito; é um conceito básico sobre o qual se apóiam os direitos."
Ele complementa sua conceituação concluindo: "os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana." (VENOSA, 2004, p. 151)
O Código Civil dispõe no artigo 11 que "os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis," conforme se depreende da leitura do dispositivo legal que passamos a transcrever in verbis: "Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária."
Para Maria Helena Diniz (2004, p. 120), os direitos da personalidade "são intransmissíveis, visto não poderem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. Nascem e se extinguem com o seu titular, por serem dele inseparáveis." No que diz respeito aos direitos da personalidade serem irrenunciáveis, de acordo com a autora (2004, p. 120), significa que "são insuscetíveis de disposição."
Na lição de Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 156): "Não podem os seus titulares deles dispor, transmitindo-os a terceiros, pois nascem e se extinguem com eles, dos quais são inseparáveis."
Como se pode verificar de todo o exposto pelos doutrinadores, os direitos da personalidade são inerentes ao ser humano, já nascem com ele e são direitos subjetivos. Portanto, se o afeto é um aspecto que faz parte da humanidade, logo ele pode ser concebido como direito da personalidade merecendo a proteção legal do artigo 11 do Código Civil.
Em decisão única, ainda, no Brasil o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que o princípio da afetividade estrutura os direitos da personalidade.
EMENTA - INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE - A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno (dano - art.186), que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável (responsabilidade civil subjetiva - art. 927), com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (Apelação Cível 2.0000.00.408550-5/000(1), da Sétima Câmara Cível. TJ/MG. Relator Des. Unias Silva. DJ 29 abr. 2004)
3.3 Como princípio jurídico
Este é um tema novo e predominante na atualidade e vai além das questões patrimoniais ou biológicas, sendo debatido por doutrinadores na atualidade, como veremos a seguir e relevante pela jurisprudência dos tribunais em todo o País.
A importância do afeto foi destacada por João Baptista Villela. Em sua obra, VILLELA (1980, p. 45) considerou: "[...] a paternidade reside antes no serviço e no amor do que na procriação."
Para Paulo Lôbo (2008, p. 48), "o princípio da afetividade está implícito na Constituição. Nela encontram-se fundamentos essenciais do princípio da afetividade". Por tratar-se de "escolha afetiva", passou a adoção a receber igualdade de tratamento no que se refere a direitos, como se observa na leitura dos parágrafos quinto e sexto do artigo 227 do texto constitucional, da mesma forma que o parágrafo quarto do mesmo dispositivo legal prevê a proteção da "comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes", garantindo a dignidade da família, tendo em vista que "a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente" de acordo com o caput, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[...]
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Esclarece ainda Paulo Lôbo (2008, p. 48) que "a afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações.". Ele continua: "assim, a afetividade é um dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles." Desta forma, ele conclui: "Por isso, sem qualquer contradição, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência."
Na concepção de Maria Berenice Dias (2007, p. 68), o afeto merece destaque como princípio jurídico, pois "o novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos conjugais, sustentando-se no amor e no afeto. Na esteira dessa evolução, o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto."
No entendimento de Sérgio Rezende de Barros (2002):
"A liberdade de afeiçoar-se um a outro é muito semelhante à liberdade de contratar um com outro. Daí, não raro, confundir-se afeição com contrato, ensejando a patrimonialização contratual do afeto. Não se deve reduzir o afeto ao contrato, para o fim imediato e ora até exclusivo de retirar dessa redução e impor às 'partes contratantes' efeitos patrimoniais, às vezes nem sequer desejados por ambas. Mas a analogia entre afeição e contrato serve para um fim justo: mostrar que, como a liberdade de contratar, também a liberdade de afeto é um direito individual implícito na Constituição brasileira de 1988, cujo § 2o do art. 5o não exclui direitos que, mesmo não declarados, decorram do regime e dos princípios por ela adotados. É o que ocorre com a liberdade de contrato e a liberdade de afeto."
Na visão de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 182), vive-se "uma era de despatrimonialização do Direito Civil", ou seja, "o foco passou a ser a pessoa, em vez do patrimônio." Sendo assim, para ele "a família é o lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é nela que o ser humano vive suas primeiras experiências, seu desenvolvimento pessoal, para mais tarde se reportar às relações sociais."
A lição de Luiz Edson Fachin (2003, p. 317-318) traça uma perspectiva da família e a importância do afeto para a realização pessoal do indivíduo: "Na transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma 'comunidade de sangue' e celebra, ao final deste século, a possibilidade de uma 'comunidade de afeto'. Novos modos de definir o próprio Direito de Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível [...]. Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias do renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consangüíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro cultural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis, então, o direito ao refúgio afetivo."
O reconhecimento do valor jurídico do afeto permite admitir efetivamente seus efeitos sobre a legislação civil conforme Maria Berenice Dias (2007, p. 68):
a) ao estabelecer a comunhão plena de vida no casamento (CC, art. 1.511);
b) quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (CC, art. 1.593);
c) na consagração da igualdade na filiação (CC, art. 1.596);
d) ao fixar a irrevogabilidade da filiação (CC, art. 1.604);
e) quando trata do casamento e dissolução (CC, arts. 1511 e seguintes; 1571 e seguintes), fala antes das questões pessoais do que dos seus aspectos patrimoniais.
No que tange à Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) que trata da Violência contra a Mulher, o afeto está inserido no art. 5º, III: "em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação."
Por fim, a afetividade como princípio fundamental pode ser encontrado no Projeto de Lei n. 2285/2007 elaborado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), artigo 5º, que tramita no Congresso Federal, objetivando instituir o "Estatuto das Famílias" e demonstrando a sua importância como alicerce para as mesmas. Importante transcrever os cinco primeiros artigos do mencionado projeto:
[...] Art. 1.º Este Estatuto regula os direitos e deveres no âmbito das entidades familiares.
Art. 2.º O direito à família é direito fundamental de todos.
Art. 3.º É protegida como família toda comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar, em qualquer de suas modalidades.
Art. 4.° Os componentes da entidade familiar devem ser respeitados em sua integral dignidade pela família, pela sociedade e pelo Estado.
Art. 5.º Constituem princípios fundamentais para a interpretação e aplicação deste Estatuto a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade.
3.4 A falta do afeto
O abandono afetivo é atualmente um conceito novo atribuído à ausência de afeto entre pais e filhos, em que estes buscam por intermédio da demanda judicial a reparação desta lacuna existente em sua vida.
Para Paulo Lôbo (2008, p. 283), "o alcance do princípio jurídico da afetividade e a natureza laica, isto é, a separação da Igreja e do Estado de Direito, é de que não se pode obrigar o amor ou afeto às pessoas."
O primeiro caso levado à Justiça foi em Minas Gerais em 2005, em que o autor ingressou com ação de indenização por abandono afetivo contra seu pai. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acolheu a apelação, mas o STJ rejeitou e entendeu que a indenização por "abandono afetivo ser incapaz de reparação pecuniária." Passamos a transcrever a ementa da decisão:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido [...].
Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?
Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos [...]. (REsp 757.411-MG, da Quarta Turma. STJ. Relator Ministro Fernando Gonçalves. DJ 27 mar. 2006)
A fundamentação do Ministro Relator Fernando Gonçalves destaca que a intervenção do Judiciário pode dificultar a aproximação afetiva do pai junto ao filho no presente ou no futuro.
Paulo Lôbo (2008, p. 284) tem entendimento favorável à indenização por abandono afetivo. Para ele, "o artigo 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória." Desta forma, continua ele "o abandono afetivo nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade."
Sylvia Maria Mendonça do Amaral (2008) também concorda com a indenização por abandono afetivo, e fundamenta que "é uma maneira de ensinar, que as relações afetivas e familiares geram direitos e deveres para as pessoas nelas envolvidas e que essas relações têm que ser alvo de intensos cuidados."
Na visão de Rodrigo da Cunha Pereira (2008): "[...] como não é possível obrigar ninguém a dar afeto, a única sanção possível é a reparatória. Não estabelecer tal sanção aos pais significa premiar a irresponsabilidade e o abandono paterno."
Maria Berenice Dias (2007, p. 409) também é favorável à indenização por dano afetivo e destaca: "a indenização por dano afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais de acordo com a atualidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares."
Como se pode verificar, o abandono afetivo é um fato controvertido e merece ser abordado e questionado visando à compreensão de que a complexidade das relações humanas hoje, busca no âmbito jurídico a solução para os conflitos e desentendimentos. Desta forma, o direito civil na atualidade vem passando por grandes transformações paradigmáticas.
3.6 Os efeitos jurídicos no direito de família
A Constituição Federal de 1988 prevê apenas três modelos de família, a saber, a decorrente do casamento (artigo 226, § 1º), a união estável entre homem e mulher (artigo 226, § 3º) e a entidade familiar monoparental (artigo 226, § 4º).
Para Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 168 e 170), "os modelos familiares, em decorrência da fragmentação e diversificação de experiências de vida privada ficaram alterados", concluindo que, "uma das dificuldades e resistências de se reconhecer a pluralidade e as várias possibilidades dos vínculos parentais e conjugais reside no medo de que estas novas famílias signifiquem a destruição da 'verdadeira' família, isto é, da família tradicional nuclear, como por exemplo: pai, mãe e filho."
Ao mesmo tempo, Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 173-179) e Maria Berenice Dias (2007, p. 45-53) concebem a existência das seguintes famílias:
1) Homoafetiva - "constituída pela união de pessoas do mesmo sexo;"
2)Parental ou Anaparental - "formada por um grupamento de pessoas unidas pelos laços de parentesco biológico ou socioafetivo;"
3)Pluriparental ou Mosaico - formada pelo par e os filhos advindos de relações conjugais anteriores;
4)Paralela - formada pelo casamento e uma ou mais uniões estáveis;
5) Eudemonista - um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuos entre os membros que a compõe, independente do vínculo biológico.
Por outro lado, para uma compreensão maior de quais são os novos tipos familiares constituídos pelo afeto, há a necessidade de entender que a família ocidental na concepção de Elizabeth Roudinesco (2003, p. 19) apresenta três fases de evolução:
1) Família tradicional - existente para assegurar a transmissão do patrimônio;
2) Família moderna - ela é fundada no amor romântico, pautada na reciprocidade de sentimentos e desejos. Valoriza a divisão de trabalho e autoridade entre os cônjuges;
3) Família contemporânea ou "pós-moderna - une dois indivíduos em busca de relações íntimas, sexuais, felicidade e afeto.
Pode-se verificar que a adoção da afetividade será o cerne dessa família pós-moderna, em que "o afeto não se apresenta como fruto da biologia, mas deriva da convivência familiar, não resultando apenas da existência de laços consangüíneos." (SOARES, 2008, p. 19)
Para Luiz Edson Fachin (2003, p.26), "A posse de estado, como realidade sociológica e afetiva, pode mostrar tanto em situações em que também está presente a filiação biológica, como naquelas em que a vontade e o afeto são os únicos elementos - do que o exemplo mais evidente é o da adoção. Esta é ato puramente voluntário, que tem no afeto sua dimensão central, à margem da biologia."
Tânia da Silva Pereira (2004, p. 648) enfatiza: "a família constrói sua realidade através da história compartilhada de seus membros e caberá ao Direito, diante de novas realidades, criar mecanismos de proteção legal [...]."
Desta forma, Maria Berenice Dias (2004) expressa inconformidade com a atitude preconceituosa dos legisladores frente às mudanças na família: "mas negam-se não só direitos. Nega-se a existência de fatos. Situações e posturas que são reais, costuma-se dizer que simplesmente não ocorreram. [...] Basta lembrar: a vedação de reconhecimento dos filhos 'espúrios', a indissolubilidade do casamento, a rejeição às uniões extramatrimoniais." Ela complementa (2004): "essa rigidez normativa possui um efeito perverso. Não consegue impedir que as pessoas conduzam sua vida da forma que melhor lhes agrade. Negando a existência dos fatos, acaba fomentando irresponsabilidades", concluindo que, "não enxergar fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a Ética condiciona todo o Direito, principalmente, o Direito de Família."
Por outro lado, no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei n. 2285/2007, denominado como Estatuto das Famílias elaborado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e apresentado pelo Deputado Federal Barradas Carneiro (PT/BA), com o objetivo de revogar os dispositivos que regulamenta as Famílias nas Leis ns. 10.406, de 2002 (CC/02); 5.869, de 1973; 5.478, de 1968; 6.015, de 1973; 6.515, de 1977 e 8.560, de 1992; além do Decreto-Lei nº 3.200, de 1941. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007). [1]
Este projeto reconhece como entidades familiares: a união estável, a união homoafetiva, a família parental, monoparental e pluriparental. Assim sendo, há para estas famílias o reconhecimento e a legitimação de direitos e deveres não previstos atualmente em lei, conforme segue o teor dos arts. 63 a 69, do mencionado projeto:
CAPÍTULO III
DA UNIÃO ESTÁVEL
Art. 63. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Parágrafo único. A união estável constitui estado civil de convivente, independentemente de registro, o qual deve ser declarado em todos os atos da vida civil.
Art. 64. A união estável não se constitui:
I - entre parentes na linha reta, sem limitação de grau;
II - entre parentes na linha colateral até o terceiro grau, inclusive;
III - entre parentes por afinidade em linha reta.
Parágrafo único. A união formada em desacordo aos impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha de bens.
Art. 65. As relações pessoais entre os conviventes obedecem aos deveres de lealdade, respeito e assistência recíproca, bem como o de
guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 66. Na união estável, os conviventes podem estabelecer o regime jurídico patrimonial mediante contrato escrito.
§ 1.º Na falta de contrato escrito aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
§ 2.º A escolha do regime de bens não tem efeito retroativo.
Art. 67. A união estável pode converter-se em casamento, mediante pedido formulado pelo casal ao oficial de registro civil, no qual declarem que não têm impedimentos para casar e indiquem o regime de bens que passam a adotar, dispensada a celebração.
Parágrafo único. Os efeitos da conversão se produzem a partir da data do registro do casamento.
CAPÍTULO IV
DA UNIÃO HOMOAFETIVA
Art. 68. É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável.
Parágrafo único. Dentre os direitos assegurados, incluem-se:
I - guarda e convivência com os filhos;
II - a adoção de filhos;
III - direito previdenciário;
IV - direito à herança.
CAPÍTULO V
DA FAMÍLIA PARENTAL
Art. 69. As famílias parentais se constituem entre pessoas com relação de parentesco entre si e decorrem da comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar.
§ 1.° Família monoparental é a entidade formada por um ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a natureza da filiação ou do parentesco.
§ 2.° Família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais.
O Judiciário diante da lacuna legal que se apresenta na legislação, leva em consideração nas suas decisões, os princípios gerais do direito e a analogia previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil para solucionar situações que envolvem o afeto. Nesse caso, há a utilização da hermenêutica, ou seja, interpretação das normas jurídicas, pois "não havendo norma legal aplicável ao caso, a tarefa do juiz é de verdadeira integração da ordem jurídica; deve procurar e fixar a norma aplicável ao caso. Para isso, deve recorrer a dois elementos: a analogia e os princípios gerais de direito." (MONTORO, 2000, p. 381)
Essas formas de interpretação das normas utilizando a analogia e os princípios gerais do direito constitui para Paulo Nader (2004, p.185) o procedimento denominado "integração, que é um processo de preenchimento de lacunas, existentes na lei, por elementos que a própria legislação oferece ou por princípios jurídicos, mediante operação lógica e juízos de valor. [...] A integração se processa pela analogia e princípios gerais de Direito."
3.7 Na Jurisprudência
3.7.1 União Homoafetiva
Enquanto isso, no que diz respeito aos recentes julgados dos Tribunais do país, estes vêm reconhecendo diversos institutos não previstos na lei. Assim, o afeto origina união estável entre homossexuais, conforme se depreende da leitura dos julgados abaixo:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. - O entendimento assente nesta Corte, quanto à possibilidade jurídica do pedido, corresponde à inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. (REsp 820.475-RJ, Quarta Turma, STJ, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 06 out. 2008)
INDEFERIMENTO DA INICIAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. VARA DE FAMÍLIA. COMPETÊNCIA. SENTENÇA DE EXTINÇÃO AFASTADA. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR O PROSEGUIMENTO DO FEITO. - Ao cabo, merecem especial atenção, os inúmeros projetos de lei regulamentando a questão em trâmite no Brasil, o Estatuto das Famílias na Câmara Federal (Projeto de Lei n° 2285/2007), em cuja Exposição de Motivos o deputado SÉRGIO BARRADAS CARNEIRO argumenta que: O estágio cultural que a sociedade brasileira vive, encaminha-se para o pleno reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. A norma do art. 226 da Constituição é de inclusão - diferentemente das normas de exclusão das Constituições pré-1988-, abrigando generosamente os arranjos familiares existentes na sociedade, ainda que diferentes do modelo matrimonial. A explicitação do casamento, da união estável e da família monoparental não exclui as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, com finalidade de família, de modo público e contínuo. Em momento algum a Constituição veda o relacionamento de pessoas do mesmo sexo. A jurisprudência brasileira tenta preencher o vazio normativo infraconstitucional, atribuindo efeitos pessoais e familiares às relações entre essas pessoas. Ignorar essa realidade é negar direitos às minorias, incompatível com o Estado Democrático. Tratar essas relações cuja natureza familiar salta aos olhos como meras sociedades de fato, como se as pessoas fossem sócios de uma sociedade de fins lucrativos, é violência que se perpetra contra o princípio da dignidade das pessoas humanas, consagrado no art. 1º, III, da constituição. Se esses cidadãos brasileiros trabalham, pagam impostos, contribuem para o progresso do país, é inconcebível interditar-lhes direitos assegurados a todos, em razão de suas orientações sexuais. (Apelação 511.903.4/7, da Oitava Câmara de Direito Privado. TJ/SP, Relator: Desembargador Caetano Lagrasta. DJ 17 mai. 2008)
AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (Apelação Cível n. 1.0024.06.930324-6/001, da Sétima Câmara Cível, TJ/MG, Relatora Desembargadora Heloisa Combat. DJ 27 jul. 2007)
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PARTE LEGÍTIMA. NEGADO PROVIMENTO AO MP. - A União homoafetiva é, sem embargo, tema com intensos reflexos no mundo jurídico, não podendo, pois, o direito, em momento algum, fechar-se de modo a ignorar ou simplesmente repudiar a realidade existente, 'e assim é, na verdade, pois o direito não regula os sentimentos. Contudo, dispõe ele sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto, pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas interessando no Direito de Família, como o matrimônio e, hoje, a União Estável, outras ficando à margem dele. Relembre-se que, a própria mulher, por séculos a fio, era tratada pelo sistema jurídico como relativamente incapaz. Diante do exposto, preenchidas suficientemente as exigências da Lei n. 8.213/91, comprovadas a qualidade de segurado do "de cujus" e a convivência afetiva e duradoura entre o segurado falecido e o autor, nego provimento ao recurso especial. (REsp 395.904-RS, da Sexta Turma. STJ. Relator Ministro Paulo Gallotti. DJ 06 fev. 2006)
PROCESSO CIVIL E CIVIL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. UNIÃO HOMOAFETIVA. INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA. POSSIBILIDADE. DIVERGÊNCIA. JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. RECURSO PROVIDO. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de pré-questionamento. A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. (REsp 238.715-RS, da Terceira Turma. STJ. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros.DJ 02 out 2006)
3.7.2 Adoção por Casal Homossexual
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. NEGADO PROVIMENTO AO APELANTE MP. - Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. (Apelação 70013801592, Sétima Câmara Cível Comarca de Bagé. TJ/RS. Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias. DJ 12 abr. 2006)
DECISÃO MONOCRÁTICA FAVORÁVEL AO CASAL HOMOSSEXUAL. - É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. - De todo o exposto, visando atender ao comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes, defiro o pedido.
(Vara da Infância e Juventude de Catanduva. Autos 234/2006. Juíza Sueli Juarez Alonso. Catanduva, 30 de outubro de 2006)
3.7.3 Paternidade Socioafetiva
Preceitua o art. 1.593 do Código Civil, "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem."
Esclarecem Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2007, p. 1.029, grifo do autor):
[...] O parentesco natural é determinado pela consangüinidade. Consangüíneos são os parentes que têm, entre si, vínculos de sangue, descendendo uns dos outros (linha reta) ou de um tronco comum (linha colateral) [...].
O parentesco civil é determinado pela lei que, para fixá-lo, toma por fundamento outras causas que não a consangüinidade, como, por exemplo, a adoção (CC 1626) e o casamento (afinidade) (CC 1595) [...].
Afetividade. Fato jurídico. Podemos dizer que o direito é o mundo dos fatos jurídicos (Pontes de Miranda, Tratado, v. II, § 159, p. 183). Existem fatos que importam ao direito por trazer-lhe conseqüências, criando ou extinguindo situações jurídicas, ou modificando situações jurídicas existentes. Esses fatos que importam pra o direito, por criar, modificar, extinguir ou transmitir direitos são ocorrências do mundo dos fatos com interesse para o direito. Todo fato jurídico tem natureza constitutiva (Torquato, Situação jurídica, p. 28). A afetividade é um desses fatos que podem gerar efeitos jurídicos de, até mesmo, criar o parentesco civil por 'outra origem'.
APELAÇÃO CÍVEL. DESCONSTITUIÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PREPONDERANCIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA SOBRE A BIOLOGICA. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. NEGADO PROVIMENTO. - O reconhecimento voluntário de paternidade, daquele que, sabidamente, não é filho da pessoa, sem seguir o procedimento legal, é chamado de "adoção à brasileira".
A "adoção à brasileira", apesar de contrária a lei, vem sendo aceita pela sociedade em razão da preponderância da filiação sócio-afetiva sobre a biológica e do princípio do melhor interesse da criança. Deverá ser mantido o registro civil da criança, mesmo que contrariando a verdade biológica, quando lhe for o mais conveniente. Recurso improvido. (Apelação Cível 1.0672.00.029573-9/001(1), da Segunda Câmara Cível. TJ/MG. Relator Desembargador Nilson Reis. DJ 23 mar. 2007)
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. PECULIARIDADES. RECURSO PROVIDO. - A "adoção à brasileira", inserida no contexto de filiação sócio-afetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar 'adotivo' e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso especial provido. (REsp 833.712-RS, da Terceira Turma. STJ. Relatora Ministra Nancy Andrighi. DJ 04 jun. 2007)
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECURSO PROVIDO POR MAIORIA.- A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a "posse do estado de filho", que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. (Apelação Cível n. 70008795775, Sétima Câmara Cível Comarca de Porto Alegre. TJ/RS. Relator Des. José Carlos Teixeira Giorgis. DJ 05 ago. 2005)
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.[...] Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. (Apelação Cível 2.0000.00.408550-5/000(1), da Sétima Câmara Cível. TJ/MG. Relator Des. Unias Silva. DJ 29 abr. 2004)
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. AUTOR ABANDONADO PELO PAI DESDE A GRAVIDEZ DE SUA GENITORA E RECONHECIDO COMO FILHO SOMENTE APÓS PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL. DISCRIMINAÇÃO EM FACE DOS IRMÃOS. ABANDONO MORAL E MATERIAL CARACTERIZADOS. ABALO PSÍQUICO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO PARA ESTE FIM. Se o pai não alimenta, não dá amor, é previsível a deformação da prole. Isso pode acontecer, e acontece, com famílias regularmente constituídas. Não se trata de aferir humilhações no decorrer do tempo. Ninguém é obrigado a amar o outro, ainda que seja o próprio filho. Nada obstante, a situação é previsível, porém, no caso da família constituída, ninguém, só por isso, requer a separação; ocorre que, na espécie, o abandono material e moral, é atitude consciente, desejada, ainda que obstada pela defesa do patrimônio, em relação aos outros filhos - o afastamento, o desamparo, com reflexos na constituição de abalo psíquico, é que merecem ressarcidos, diante do surgimento de nexo de causalidade. (Apelação 552.574-4/4-00, da Oitava Câmara de Direito Privado. TJ/SP. Relator Des. Caetano Lagrasta. DJ 17 mai. 2008)
DECISÃO MONOCRÁTICA QUE CONDENOU UM PAI A PAGAR INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS À SUA FILHA POR ABANDONO. A par da ofensa à integridade física (e psíquica) decorrente de um crescimento desprovido do afeto paterno, o abandono afetivo se apresenta também como ofensa à dignidade da pessoa humana, bem jurídico que a indenização do dano moral se destina a tutelar. Para que o réu seja condenado a indenizar o dano moral por ele causado à autora não seria necessário que se demonstrasse que o requerido é o único culpado pelos dramas e conflitos atuais da autora, embora afinal não haja prova de nenhuma outra explicação para o estado psicológico atual da requerente além do abandono afetivo de que foi vítima por culpa do réu. Basta que se constate, como se constatou, o abandono de responsabilidade do requerido. Os autos não contêm apenas demonstração de problemas psicológicos de uma filha. Mostram também uma atitude de alheamento de um pai, com o que o réu não está sendo condenado apenas porque sua filha tem problemas, e sim porque deliberadamente se esqueceu da filha.
- Isto posto, julgo parcialmente procedente a ação, para condenar o réu a pagar à autora a quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), com atualização monetária a partir da data desta sentença e juros de mora desde a citação, para reparação do dano moral, e ao custeio do tratamento psicológico da autora, a ser apurado em liquidação. Condeno o réu ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios de 15% (quinze por cento) do valor atualizado da parte líquida da condenação, o que já leva em conta a sucumbência da requerente. (31ª Vara Cível Central de São Paulo. Autos n° 01.036747-0. Juiz Luis Fernando Cirillo. São Paulo, 05 de junho de 2004. Publicado em 26 de junho de 2004)
4 CONCLUSÃO
A abordagem do presente artigo científico permitiu o estudo do afeto como aspecto intrínseco e inerente ao ser humano, bem como verificar sua relevância como princípio implícito da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, constatando-se sua importância como estrutura basilar não expressa no ordenamento jurídico constitucional, o afeto também no âmbito da legislação civil pode ser equiparado a um direito da personalidade.
As atrocidades ocorridas na história, como o genocídio na segunda guerra mundial em que milhares de pessoas morreram por intolerância à sua condição étnica, religiosa ou de orientação sexual permitiram uma reflexão ética sobre a humanidade, em que os valores passaram a ser voltados para o ser humano e considerados em todos os seus aspectos, como por exemplo: respeito à diversidade de crenças religiosas, tolerância pela orientação sexual, não discriminação por gênero, raça ou sexo e etc.
E por meio dessa visão humanista, a Constituição Federal de 1988 assegurou o direito à realização do indivíduo nos seus aspectos subjetivos expressos no art. 5º como: honra, liberdade, igualdade, etc. Se a norma constitucional garante esse direito, portanto, logo, pode-se concluir que o princípio subliminar como o Afeto também está protegido pela Carta Magna.
Na sociedade atual constata-se o surgimento de várias formas familiares originadas pela predominância do afeto, porém, a norma constitucional prevê formalmente apenas três modelos (pelo casamento, união estável entre homem e mulher e monoparental). O Poder Legislativo encontra dificuldades em acompanhar as mudanças em determinados assuntos como, por exemplo, união homoafetiva, filiação socioafetiva, famílias múltiplas, concubinato e etc, e em produzir leis que regulamentem essas situações ou outras que possam surgir em decorrência do afeto.
Diante dessa lacuna legal, o Judiciário se vê obrigado a julgar e a levar em consideração nas suas decisões, os princípios gerais do direito previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil para solucionar situações que envolvem o afeto como por exemplo: união homoafetiva, adoção por casal homossexual, filiação socioafetiva e abandono afetivo.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) elaborou em conjunto com o Deputado Federal Barradas Carneiro (PT/BA) o Projeto de Lei n. 2285/2007 denominado "Estatuto das Famílias" visando a união de todos os artigos do Código Civil que trata do direito de família, bem como leis esparsas e o reconhecimento de diversos tipos familiares como entidades familiares. Esse Projeto permite às Famílias brasileiras a sua regulamentação de forma especial, levando em consideração seus aspectos peculiares e alcançando de forma prática os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil apregoados no art. 3º, I: "construir uma sociedade livre, justa e solidária."
O alcance desses objetivos para a família brasileira permitirá uma sociedade alicerçada e amparada por valores constitucionais, e assim, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação 511.903.4/7, da Oitava Câmara de Direito Privado. Relator: Des. Caetano Lagrasta. São Paulo, 12 de Março de 2008. Diário da Justiça, 17 de maio de 2008.
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________________________________
[1] Este Projeto de Lei encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) com a Deputada Rita Camata (PMDB/ES) desde 07 de novembro de 2007. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=373935> Acesso em: 02 dez. 2008.
Agradecimentos especiais:
- Sandra Ligian Nerling Konrad - Mestre, Doutoranda e Professora da PUC-SP, pela orientação no artigo e por acreditar que tudo é possível.
- Andréa Almeida Campos - Mestre pela UFPE e Professora Universitária, por acreditar no meu potencial.
- Defensoria Pública - Regional Santo Amaro - pela experiência e apoio dos colegas.
- Familiares e colegas da Faculdade.
- IBDFAM e seus maravilhosos Congressos.
- Maria Berenice Dias - inspiração para todos.
Marcia Elena de Oliveira Cunha é sócia do IBDFAM, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Uni-Radial Estácio de Sá - SP em 2008. Estagiária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Regional Santo Amaro na área de Direito de Família. Psicóloga.
Autor: Marcia Elena de Oliveira Cunha
O objetivo do presente trabalho é, através dos métodos dialético e comparativo e da documentação indireta, apresentar uma noção geral sobre o afeto face ao princípio da dignidade da pessoa humana e seus efeitos jurídicos no Direito de Família.
Para alcançá-lo, necessária é a conceituação de princípio, compreendendo também seu sentido e disciplina legal envolvida.
Ademais, indispensável também é compreender o afeto e sua definição em diversos aspectos, como direito da personalidade e princípio jurídico, bem como a conseqüência da sua falta, seus efeitos ou repercussões no direito de família e nos Poderes Legislativo e Judiciário.
A importância e a atualidade do assunto são constatadas em situações fáticas ocorridas na sociedade e na família, que vêm passando por grandes transformações e acarretando para o Judiciário a responsabilidade pela decisão sobre: união entre homossexuais, adoção por casal homossexual, paternidade socioafetiva, abandono afetivo e etc.
2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
2.1 Conceito de princípio
De forma geral, princípio pode ser conceituado como: "início, começo; preceito, regra; [...], noções básicas; regras de conduta moral; convicções". (HOUAISS, 2003, p. 421)
Este conceito apresentado é equivocado no entendimento de José Afonso da Silva (2005, p. 91). Para ele, "exprime a noção de mandamento nuclear de um sistema." Sendo assim, ele ensina que princípio é um parâmetro imperativo e norteador relevante para todo o ordenamento jurídico.
Na concepção de Rizzatto Nunes (2007, p. 5), "princípio é aquilo que, uma vez identificado, não pode mais ser alterado, devendo incidir sobre tudo. É algo universal, absoluto, do qual não se pode escapar."
No que diz respeito ao princípio jurídico, ele o conceitua como: "um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico [...] e vincula o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam." (NUNES, 2007, p. 37)
Na lição de Hans Kelsen (2003, p. 97), "a norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo não é, em compensação, nada mais que uma regra fundamental."
Para Norberto Bobbio (1999, p. 158), "os princípios gerais são apenas a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais [...]. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras."
Em sua exposição, ele cita Crisafulli (apud BOBBIO, 1999, p. 159), que demonstra a existência dos princípios gerais expressos e não expressos, mencionando que os últimos "são normas generalíssimas, e os não expressos aqueles considerados como o espírito do sistema".
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 elenca os princípios "expressos" ("soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político"), que estão inseridos nos incisos do artigo 1º. Estes princípios serão norteadores para o ordenamento jurídico e deverão ser abrangidos no sistema jurídico como um todo. (PEREIRA, 2006, p. 24)
Exemplificativamente, os princípios não expressos ou implícitos de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 85-102) e Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p.106, 126, 140, 152, 163) são:
1. Moralidade pública, na esfera dos atos administrativos: previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988;
2. Proporcionalidade: disciplinado nos artigo 5º, do texto constitucional, visando à resolução de conflitos entre princípios;
3. Razoabilidade, implícito na Carta Magna, nos artigos 5º, II e LXIX e 37, caput, que tratam do princípio da legalidade, mandado de segurança e atos administrativos;
4. Motivação, estabelecido nos artigos 1º, II e 5º, XXXV, da Constituição Federal que asseguram a cidadania e apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito;
5. Supremacia do interesse público sobre o interesse privado, nos incisos XXIV e XXV, do texto constitucional que disciplinam a desapropriação e requisição;
6. Monogamia, que visa orientar a organização de todos os tipos familiares, bem como a vedação ao incesto, para evitar casamentos entre pessoas com grau de parentesco próximo, inserido no Código Civil, artigo 1521 e incisos que trata dos impedimentos para o casamento.
7. Melhor interesse da criança e adolescente, no art. 227 da Carta Magna e arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente;
8. Igualdade e respeito às diferenças, nos arts. 5º, I e 226, § 5º da CF/88;
9. Autonomia e menor intervenção estatal, disposto no art. 1513 do Código Civil;
10. Pluralidade das formas de família, no art. 226 da Constituição Federal.
Diante disso, pode-se depreender que os princípios são os pilares que sustentam a ordem jurídica de um Estado por meio de sua Constituição e a legislação infraconstitucional, "garantindo o Estado Democrático de Direito". (PEREIRA, 2006, p. 94)
2.2 Sentido
O Professor Rizzatto Nunes (2007, p. 49-52) ensina que "a dignidade nasce com a pessoa, é inata e inerente à sua essência. O indivíduo nasce com integridade física e psíquica, cresce e vive no meio social, e tudo o que o compõe tem que ser respeitado", concluindo que: "a dignidade humana é um valor preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa."
A dignidade da pessoa humana não é apenas uma palavra com conotação ética, ela também expressa "o elemento que qualifica e completa o ser humano e dele não pode ser destacado", ou seja, aquilo que "assegura ao indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais". (BORGES, 2008, p. 230-231)
Ao mesmo tempo, na concepção de Alexandre de Moraes (2005, p. 16): "A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos."
Após a Segunda Guerra Mundial, houve a inserção do princípio objeto de nosso estudo neste item, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi "redigida sob o impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial e representou o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens no seu artigo 1º." (COMPARATO, 2004, p. 223)
Esclarecem Fabio Konder Comparato (2004, p. 21) e Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 96) que a expressão dignidade da pessoa humana é encontrada na obra do filósofo Immanuel Kant, "Fundamentação da metafísica dos costumes", de 1785, que já considerava "[...] que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas."
Na concepção de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 100) "[...] ocorreram diversos exemplos históricos de indignidade antes da Constituição Federal de 1988 que foram cometidos no Direito de Família", tais como: "a exclusão da mulher do princípio de igualdade colocando-a em posição inferior ao homem; a proibição de registrar o nome do pai nos filhos havidos fora do casamento se ele fosse casado e o não reconhecimento de outras formas de família que não fosse o casamento". Diante deste cenário, "o ser humano passou a ter garantias e a ser respeitado independente de raça, religião, condição social, sexo, idade, expressão de pensamento, crença, etc., pelo simples fato de fazer parte da sociedade". (GIRARDI, 2005, p. 49)
Sendo assim, "a dignidade por ser um princípio expresso, também, abrange outros não expressos tais como: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade". (PEREIRA, 2005, p. 94) Essa visão humanista, em que a pessoa humana é o enfoque central na Carta Magna é que "assegura a plena satisfação do ser humano nos seus aspectos biopsicofísicos". (GIRARDI, 2005, p. 56) Nesse sentido, "a sociedade constituída por valores, anseios e realidades diferentes traz em seu seio inúmeros projetos existenciais e de felicidade" (BORGES, 2008, p. 232).
Diante disso, o "Estado brasileiro deve assegurar a todos, mas de forma individual, sem qualquer forma de preconceito e discriminação, condições para a realização desses projetos." (GIRARDI, 2005, p. 56) Essa visão pode ser complementada pelo entendimento de que a dignidade da pessoa humana "resulta também do fato de que, por sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita." (COMPARATO, 2004, p. 21)
Na lição de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 106), "A dignidade, portanto, é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a funcionalização de todos os institutos jurídicos à pessoa humana."
E conforme o exposto, o "sentido do Princípio da Dignidade Humana só se torna efetivo, quando se verifica na Constituição de 1988, o poder atribuído a cada cidadão de se realizar plenamente em sua personalidade." (PEREIRA, 2006, p. 52)
2.3 Disciplina legal
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]; III - a dignidade da pessoa humana; [...]"
A Carta das Nações Unidas, assinada no dia 26 de junho de 1945 em São Francisco, nasceu após a Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional e reconhece no seu preâmbulo a dignidade da pessoa humana, tendo em vista as atrocidades ocorridas nas duas grandes guerras mundiais, e os países membros da ONU assumem esse compromisso respeitando os direitos humanos. (COMPARATO, 2004, p. 209-215)
Determina o preâmbulo mencionado no parágrafo anterior:
NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.
RESOLVEMOS CONJUGAR NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES OBJETIVOS.
Em vista disso, nossos respectivos Governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.
O princípio em comento também é encontrado no preâmbulo e artigo 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 que passamos a transcrever: "PREÂMBULO: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo [...] Artigo 1°. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."
No que diz respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica de 1969, vale lembrar que no seu artigo 11, item n. 1, também está disciplinado o princípio objeto de nosso estudo neste item e que foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, conforme se depreende do exposto: "Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade."
Pode-se verificar a proteção à dignidade da pessoa humana em diversas legislações, o que evidencia sua relevância no cenário mundial, nas relações entre países, no compromisso de cada um deles para com a sociedade e cada ser humano.
3 AFETO
3.1 Definição do ponto de vista da psicanálise
Do ponto de vista da psicologia e psicanálise, o afeto terá diversos entendimentos, tendo em vista a existência de diversas teorias e os enfoques na compreensão da natureza psíquica do ser humano.
De acordo com Luiz Alfredo Garcia-Roza (2005, p. 104), "o afeto será organizado por meio da evolução da libido que ocorrerá nas etapas da vida humana que Freud denominou como: oral, anal, fálica, período de latência e genital."
Na concepção de Winniccott (2005, p. 17), no afeto "nos tornamos pessoa em virtude da relação com outra pessoa."
Para Melanie Klein (2005, p. 7), o afeto pode ser entendido como "núcleos internos atribuidores de significado às vivências e às relações enquanto estas estão ocorrendo."
De um modo geral, o afeto pode ser compreendido como um aspecto subjetivo e intrínseco do ser humano que atribui significado e sentido à sua existência, que constrói o seu psiquismo a partir das relações com outros indivíduos.
3.2 Como direito da personalidade
Para compreender o afeto como direito da personalidade não previsto expressamente no Código Civil de 2002, porém, implicitamente, é necessário entender como os doutrinadores conceituam o direito da personalidade.
Os direitos da personalidade, para Silvio Rodrigues (2003, p. 61), "são aqueles que fazem parte da pessoa humana, e como tal, estão ligados de forma eterna e constante, não sendo possível existir um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade e àquilo que ele crê ser sua honra."
No entendimento de Goffredo Telles Junior (1979, p. 316): "Os direitos da personalidade são direitos subjetivos de primeiro grau, direitos comuns de existência, porque são simplesmente permissões, dadas a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta, sem mediação de normas jurídicas: o bem de existir como pessoa. O bem de ser indivíduo racional e autônomo."
Para Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 153), "os direitos da personalidade são prerrogativas individuais, inerentes à pessoa humana, que foram reconhecidas pela doutrina e pelo ordenamento jurídico, e também são direitos inalienáveis que merecem a proteção legal."
No conceito de Sílvio de Salvo Venosa (2004, p. 149), "há direitos que afetam diretamente a personalidade, que não possuem conteúdo econômico direto e imediato. A personalidade não é exatamente um direito; é um conceito básico sobre o qual se apóiam os direitos."
Ele complementa sua conceituação concluindo: "os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana." (VENOSA, 2004, p. 151)
O Código Civil dispõe no artigo 11 que "os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis," conforme se depreende da leitura do dispositivo legal que passamos a transcrever in verbis: "Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária."
Para Maria Helena Diniz (2004, p. 120), os direitos da personalidade "são intransmissíveis, visto não poderem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. Nascem e se extinguem com o seu titular, por serem dele inseparáveis." No que diz respeito aos direitos da personalidade serem irrenunciáveis, de acordo com a autora (2004, p. 120), significa que "são insuscetíveis de disposição."
Na lição de Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 156): "Não podem os seus titulares deles dispor, transmitindo-os a terceiros, pois nascem e se extinguem com eles, dos quais são inseparáveis."
Como se pode verificar de todo o exposto pelos doutrinadores, os direitos da personalidade são inerentes ao ser humano, já nascem com ele e são direitos subjetivos. Portanto, se o afeto é um aspecto que faz parte da humanidade, logo ele pode ser concebido como direito da personalidade merecendo a proteção legal do artigo 11 do Código Civil.
Em decisão única, ainda, no Brasil o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que o princípio da afetividade estrutura os direitos da personalidade.
EMENTA - INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE - A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno (dano - art.186), que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável (responsabilidade civil subjetiva - art. 927), com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (Apelação Cível 2.0000.00.408550-5/000(1), da Sétima Câmara Cível. TJ/MG. Relator Des. Unias Silva. DJ 29 abr. 2004)
3.3 Como princípio jurídico
Este é um tema novo e predominante na atualidade e vai além das questões patrimoniais ou biológicas, sendo debatido por doutrinadores na atualidade, como veremos a seguir e relevante pela jurisprudência dos tribunais em todo o País.
A importância do afeto foi destacada por João Baptista Villela. Em sua obra, VILLELA (1980, p. 45) considerou: "[...] a paternidade reside antes no serviço e no amor do que na procriação."
Para Paulo Lôbo (2008, p. 48), "o princípio da afetividade está implícito na Constituição. Nela encontram-se fundamentos essenciais do princípio da afetividade". Por tratar-se de "escolha afetiva", passou a adoção a receber igualdade de tratamento no que se refere a direitos, como se observa na leitura dos parágrafos quinto e sexto do artigo 227 do texto constitucional, da mesma forma que o parágrafo quarto do mesmo dispositivo legal prevê a proteção da "comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes", garantindo a dignidade da família, tendo em vista que "a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente" de acordo com o caput, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[...]
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Esclarece ainda Paulo Lôbo (2008, p. 48) que "a afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações.". Ele continua: "assim, a afetividade é um dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles." Desta forma, ele conclui: "Por isso, sem qualquer contradição, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência."
Na concepção de Maria Berenice Dias (2007, p. 68), o afeto merece destaque como princípio jurídico, pois "o novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos conjugais, sustentando-se no amor e no afeto. Na esteira dessa evolução, o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto."
No entendimento de Sérgio Rezende de Barros (2002):
"A liberdade de afeiçoar-se um a outro é muito semelhante à liberdade de contratar um com outro. Daí, não raro, confundir-se afeição com contrato, ensejando a patrimonialização contratual do afeto. Não se deve reduzir o afeto ao contrato, para o fim imediato e ora até exclusivo de retirar dessa redução e impor às 'partes contratantes' efeitos patrimoniais, às vezes nem sequer desejados por ambas. Mas a analogia entre afeição e contrato serve para um fim justo: mostrar que, como a liberdade de contratar, também a liberdade de afeto é um direito individual implícito na Constituição brasileira de 1988, cujo § 2o do art. 5o não exclui direitos que, mesmo não declarados, decorram do regime e dos princípios por ela adotados. É o que ocorre com a liberdade de contrato e a liberdade de afeto."
Na visão de Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 182), vive-se "uma era de despatrimonialização do Direito Civil", ou seja, "o foco passou a ser a pessoa, em vez do patrimônio." Sendo assim, para ele "a família é o lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é nela que o ser humano vive suas primeiras experiências, seu desenvolvimento pessoal, para mais tarde se reportar às relações sociais."
A lição de Luiz Edson Fachin (2003, p. 317-318) traça uma perspectiva da família e a importância do afeto para a realização pessoal do indivíduo: "Na transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma 'comunidade de sangue' e celebra, ao final deste século, a possibilidade de uma 'comunidade de afeto'. Novos modos de definir o próprio Direito de Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível [...]. Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias do renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consangüíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro cultural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis, então, o direito ao refúgio afetivo."
O reconhecimento do valor jurídico do afeto permite admitir efetivamente seus efeitos sobre a legislação civil conforme Maria Berenice Dias (2007, p. 68):
a) ao estabelecer a comunhão plena de vida no casamento (CC, art. 1.511);
b) quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (CC, art. 1.593);
c) na consagração da igualdade na filiação (CC, art. 1.596);
d) ao fixar a irrevogabilidade da filiação (CC, art. 1.604);
e) quando trata do casamento e dissolução (CC, arts. 1511 e seguintes; 1571 e seguintes), fala antes das questões pessoais do que dos seus aspectos patrimoniais.
No que tange à Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) que trata da Violência contra a Mulher, o afeto está inserido no art. 5º, III: "em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação."
Por fim, a afetividade como princípio fundamental pode ser encontrado no Projeto de Lei n. 2285/2007 elaborado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), artigo 5º, que tramita no Congresso Federal, objetivando instituir o "Estatuto das Famílias" e demonstrando a sua importância como alicerce para as mesmas. Importante transcrever os cinco primeiros artigos do mencionado projeto:
[...] Art. 1.º Este Estatuto regula os direitos e deveres no âmbito das entidades familiares.
Art. 2.º O direito à família é direito fundamental de todos.
Art. 3.º É protegida como família toda comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar, em qualquer de suas modalidades.
Art. 4.° Os componentes da entidade familiar devem ser respeitados em sua integral dignidade pela família, pela sociedade e pelo Estado.
Art. 5.º Constituem princípios fundamentais para a interpretação e aplicação deste Estatuto a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade.
3.4 A falta do afeto
O abandono afetivo é atualmente um conceito novo atribuído à ausência de afeto entre pais e filhos, em que estes buscam por intermédio da demanda judicial a reparação desta lacuna existente em sua vida.
Para Paulo Lôbo (2008, p. 283), "o alcance do princípio jurídico da afetividade e a natureza laica, isto é, a separação da Igreja e do Estado de Direito, é de que não se pode obrigar o amor ou afeto às pessoas."
O primeiro caso levado à Justiça foi em Minas Gerais em 2005, em que o autor ingressou com ação de indenização por abandono afetivo contra seu pai. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acolheu a apelação, mas o STJ rejeitou e entendeu que a indenização por "abandono afetivo ser incapaz de reparação pecuniária." Passamos a transcrever a ementa da decisão:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido [...].
Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?
Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos [...]. (REsp 757.411-MG, da Quarta Turma. STJ. Relator Ministro Fernando Gonçalves. DJ 27 mar. 2006)
A fundamentação do Ministro Relator Fernando Gonçalves destaca que a intervenção do Judiciário pode dificultar a aproximação afetiva do pai junto ao filho no presente ou no futuro.
Paulo Lôbo (2008, p. 284) tem entendimento favorável à indenização por abandono afetivo. Para ele, "o artigo 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória." Desta forma, continua ele "o abandono afetivo nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade."
Sylvia Maria Mendonça do Amaral (2008) também concorda com a indenização por abandono afetivo, e fundamenta que "é uma maneira de ensinar, que as relações afetivas e familiares geram direitos e deveres para as pessoas nelas envolvidas e que essas relações têm que ser alvo de intensos cuidados."
Na visão de Rodrigo da Cunha Pereira (2008): "[...] como não é possível obrigar ninguém a dar afeto, a única sanção possível é a reparatória. Não estabelecer tal sanção aos pais significa premiar a irresponsabilidade e o abandono paterno."
Maria Berenice Dias (2007, p. 409) também é favorável à indenização por dano afetivo e destaca: "a indenização por dano afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais de acordo com a atualidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares."
Como se pode verificar, o abandono afetivo é um fato controvertido e merece ser abordado e questionado visando à compreensão de que a complexidade das relações humanas hoje, busca no âmbito jurídico a solução para os conflitos e desentendimentos. Desta forma, o direito civil na atualidade vem passando por grandes transformações paradigmáticas.
3.6 Os efeitos jurídicos no direito de família
A Constituição Federal de 1988 prevê apenas três modelos de família, a saber, a decorrente do casamento (artigo 226, § 1º), a união estável entre homem e mulher (artigo 226, § 3º) e a entidade familiar monoparental (artigo 226, § 4º).
Para Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 168 e 170), "os modelos familiares, em decorrência da fragmentação e diversificação de experiências de vida privada ficaram alterados", concluindo que, "uma das dificuldades e resistências de se reconhecer a pluralidade e as várias possibilidades dos vínculos parentais e conjugais reside no medo de que estas novas famílias signifiquem a destruição da 'verdadeira' família, isto é, da família tradicional nuclear, como por exemplo: pai, mãe e filho."
Ao mesmo tempo, Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 173-179) e Maria Berenice Dias (2007, p. 45-53) concebem a existência das seguintes famílias:
1) Homoafetiva - "constituída pela união de pessoas do mesmo sexo;"
2)Parental ou Anaparental - "formada por um grupamento de pessoas unidas pelos laços de parentesco biológico ou socioafetivo;"
3)Pluriparental ou Mosaico - formada pelo par e os filhos advindos de relações conjugais anteriores;
4)Paralela - formada pelo casamento e uma ou mais uniões estáveis;
5) Eudemonista - um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuos entre os membros que a compõe, independente do vínculo biológico.
Por outro lado, para uma compreensão maior de quais são os novos tipos familiares constituídos pelo afeto, há a necessidade de entender que a família ocidental na concepção de Elizabeth Roudinesco (2003, p. 19) apresenta três fases de evolução:
1) Família tradicional - existente para assegurar a transmissão do patrimônio;
2) Família moderna - ela é fundada no amor romântico, pautada na reciprocidade de sentimentos e desejos. Valoriza a divisão de trabalho e autoridade entre os cônjuges;
3) Família contemporânea ou "pós-moderna - une dois indivíduos em busca de relações íntimas, sexuais, felicidade e afeto.
Pode-se verificar que a adoção da afetividade será o cerne dessa família pós-moderna, em que "o afeto não se apresenta como fruto da biologia, mas deriva da convivência familiar, não resultando apenas da existência de laços consangüíneos." (SOARES, 2008, p. 19)
Para Luiz Edson Fachin (2003, p.26), "A posse de estado, como realidade sociológica e afetiva, pode mostrar tanto em situações em que também está presente a filiação biológica, como naquelas em que a vontade e o afeto são os únicos elementos - do que o exemplo mais evidente é o da adoção. Esta é ato puramente voluntário, que tem no afeto sua dimensão central, à margem da biologia."
Tânia da Silva Pereira (2004, p. 648) enfatiza: "a família constrói sua realidade através da história compartilhada de seus membros e caberá ao Direito, diante de novas realidades, criar mecanismos de proteção legal [...]."
Desta forma, Maria Berenice Dias (2004) expressa inconformidade com a atitude preconceituosa dos legisladores frente às mudanças na família: "mas negam-se não só direitos. Nega-se a existência de fatos. Situações e posturas que são reais, costuma-se dizer que simplesmente não ocorreram. [...] Basta lembrar: a vedação de reconhecimento dos filhos 'espúrios', a indissolubilidade do casamento, a rejeição às uniões extramatrimoniais." Ela complementa (2004): "essa rigidez normativa possui um efeito perverso. Não consegue impedir que as pessoas conduzam sua vida da forma que melhor lhes agrade. Negando a existência dos fatos, acaba fomentando irresponsabilidades", concluindo que, "não enxergar fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a Ética condiciona todo o Direito, principalmente, o Direito de Família."
Por outro lado, no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei n. 2285/2007, denominado como Estatuto das Famílias elaborado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e apresentado pelo Deputado Federal Barradas Carneiro (PT/BA), com o objetivo de revogar os dispositivos que regulamenta as Famílias nas Leis ns. 10.406, de 2002 (CC/02); 5.869, de 1973; 5.478, de 1968; 6.015, de 1973; 6.515, de 1977 e 8.560, de 1992; além do Decreto-Lei nº 3.200, de 1941. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007). [1]
Este projeto reconhece como entidades familiares: a união estável, a união homoafetiva, a família parental, monoparental e pluriparental. Assim sendo, há para estas famílias o reconhecimento e a legitimação de direitos e deveres não previstos atualmente em lei, conforme segue o teor dos arts. 63 a 69, do mencionado projeto:
CAPÍTULO III
DA UNIÃO ESTÁVEL
Art. 63. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Parágrafo único. A união estável constitui estado civil de convivente, independentemente de registro, o qual deve ser declarado em todos os atos da vida civil.
Art. 64. A união estável não se constitui:
I - entre parentes na linha reta, sem limitação de grau;
II - entre parentes na linha colateral até o terceiro grau, inclusive;
III - entre parentes por afinidade em linha reta.
Parágrafo único. A união formada em desacordo aos impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha de bens.
Art. 65. As relações pessoais entre os conviventes obedecem aos deveres de lealdade, respeito e assistência recíproca, bem como o de
guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 66. Na união estável, os conviventes podem estabelecer o regime jurídico patrimonial mediante contrato escrito.
§ 1.º Na falta de contrato escrito aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
§ 2.º A escolha do regime de bens não tem efeito retroativo.
Art. 67. A união estável pode converter-se em casamento, mediante pedido formulado pelo casal ao oficial de registro civil, no qual declarem que não têm impedimentos para casar e indiquem o regime de bens que passam a adotar, dispensada a celebração.
Parágrafo único. Os efeitos da conversão se produzem a partir da data do registro do casamento.
CAPÍTULO IV
DA UNIÃO HOMOAFETIVA
Art. 68. É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável.
Parágrafo único. Dentre os direitos assegurados, incluem-se:
I - guarda e convivência com os filhos;
II - a adoção de filhos;
III - direito previdenciário;
IV - direito à herança.
CAPÍTULO V
DA FAMÍLIA PARENTAL
Art. 69. As famílias parentais se constituem entre pessoas com relação de parentesco entre si e decorrem da comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar.
§ 1.° Família monoparental é a entidade formada por um ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a natureza da filiação ou do parentesco.
§ 2.° Família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais.
O Judiciário diante da lacuna legal que se apresenta na legislação, leva em consideração nas suas decisões, os princípios gerais do direito e a analogia previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil para solucionar situações que envolvem o afeto. Nesse caso, há a utilização da hermenêutica, ou seja, interpretação das normas jurídicas, pois "não havendo norma legal aplicável ao caso, a tarefa do juiz é de verdadeira integração da ordem jurídica; deve procurar e fixar a norma aplicável ao caso. Para isso, deve recorrer a dois elementos: a analogia e os princípios gerais de direito." (MONTORO, 2000, p. 381)
Essas formas de interpretação das normas utilizando a analogia e os princípios gerais do direito constitui para Paulo Nader (2004, p.185) o procedimento denominado "integração, que é um processo de preenchimento de lacunas, existentes na lei, por elementos que a própria legislação oferece ou por princípios jurídicos, mediante operação lógica e juízos de valor. [...] A integração se processa pela analogia e princípios gerais de Direito."
3.7 Na Jurisprudência
3.7.1 União Homoafetiva
Enquanto isso, no que diz respeito aos recentes julgados dos Tribunais do país, estes vêm reconhecendo diversos institutos não previstos na lei. Assim, o afeto origina união estável entre homossexuais, conforme se depreende da leitura dos julgados abaixo:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. - O entendimento assente nesta Corte, quanto à possibilidade jurídica do pedido, corresponde à inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. (REsp 820.475-RJ, Quarta Turma, STJ, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 06 out. 2008)
INDEFERIMENTO DA INICIAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. VARA DE FAMÍLIA. COMPETÊNCIA. SENTENÇA DE EXTINÇÃO AFASTADA. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR O PROSEGUIMENTO DO FEITO. - Ao cabo, merecem especial atenção, os inúmeros projetos de lei regulamentando a questão em trâmite no Brasil, o Estatuto das Famílias na Câmara Federal (Projeto de Lei n° 2285/2007), em cuja Exposição de Motivos o deputado SÉRGIO BARRADAS CARNEIRO argumenta que: O estágio cultural que a sociedade brasileira vive, encaminha-se para o pleno reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. A norma do art. 226 da Constituição é de inclusão - diferentemente das normas de exclusão das Constituições pré-1988-, abrigando generosamente os arranjos familiares existentes na sociedade, ainda que diferentes do modelo matrimonial. A explicitação do casamento, da união estável e da família monoparental não exclui as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, com finalidade de família, de modo público e contínuo. Em momento algum a Constituição veda o relacionamento de pessoas do mesmo sexo. A jurisprudência brasileira tenta preencher o vazio normativo infraconstitucional, atribuindo efeitos pessoais e familiares às relações entre essas pessoas. Ignorar essa realidade é negar direitos às minorias, incompatível com o Estado Democrático. Tratar essas relações cuja natureza familiar salta aos olhos como meras sociedades de fato, como se as pessoas fossem sócios de uma sociedade de fins lucrativos, é violência que se perpetra contra o princípio da dignidade das pessoas humanas, consagrado no art. 1º, III, da constituição. Se esses cidadãos brasileiros trabalham, pagam impostos, contribuem para o progresso do país, é inconcebível interditar-lhes direitos assegurados a todos, em razão de suas orientações sexuais. (Apelação 511.903.4/7, da Oitava Câmara de Direito Privado. TJ/SP, Relator: Desembargador Caetano Lagrasta. DJ 17 mai. 2008)
AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (Apelação Cível n. 1.0024.06.930324-6/001, da Sétima Câmara Cível, TJ/MG, Relatora Desembargadora Heloisa Combat. DJ 27 jul. 2007)
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PARTE LEGÍTIMA. NEGADO PROVIMENTO AO MP. - A União homoafetiva é, sem embargo, tema com intensos reflexos no mundo jurídico, não podendo, pois, o direito, em momento algum, fechar-se de modo a ignorar ou simplesmente repudiar a realidade existente, 'e assim é, na verdade, pois o direito não regula os sentimentos. Contudo, dispõe ele sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto, pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas interessando no Direito de Família, como o matrimônio e, hoje, a União Estável, outras ficando à margem dele. Relembre-se que, a própria mulher, por séculos a fio, era tratada pelo sistema jurídico como relativamente incapaz. Diante do exposto, preenchidas suficientemente as exigências da Lei n. 8.213/91, comprovadas a qualidade de segurado do "de cujus" e a convivência afetiva e duradoura entre o segurado falecido e o autor, nego provimento ao recurso especial. (REsp 395.904-RS, da Sexta Turma. STJ. Relator Ministro Paulo Gallotti. DJ 06 fev. 2006)
PROCESSO CIVIL E CIVIL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. UNIÃO HOMOAFETIVA. INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA. POSSIBILIDADE. DIVERGÊNCIA. JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. RECURSO PROVIDO. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de pré-questionamento. A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. (REsp 238.715-RS, da Terceira Turma. STJ. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros.DJ 02 out 2006)
3.7.2 Adoção por Casal Homossexual
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. NEGADO PROVIMENTO AO APELANTE MP. - Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. (Apelação 70013801592, Sétima Câmara Cível Comarca de Bagé. TJ/RS. Relatora Desembargadora Maria Berenice Dias. DJ 12 abr. 2006)
DECISÃO MONOCRÁTICA FAVORÁVEL AO CASAL HOMOSSEXUAL. - É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. - De todo o exposto, visando atender ao comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes, defiro o pedido.
(Vara da Infância e Juventude de Catanduva. Autos 234/2006. Juíza Sueli Juarez Alonso. Catanduva, 30 de outubro de 2006)
3.7.3 Paternidade Socioafetiva
Preceitua o art. 1.593 do Código Civil, "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem."
Esclarecem Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2007, p. 1.029, grifo do autor):
[...] O parentesco natural é determinado pela consangüinidade. Consangüíneos são os parentes que têm, entre si, vínculos de sangue, descendendo uns dos outros (linha reta) ou de um tronco comum (linha colateral) [...].
O parentesco civil é determinado pela lei que, para fixá-lo, toma por fundamento outras causas que não a consangüinidade, como, por exemplo, a adoção (CC 1626) e o casamento (afinidade) (CC 1595) [...].
Afetividade. Fato jurídico. Podemos dizer que o direito é o mundo dos fatos jurídicos (Pontes de Miranda, Tratado, v. II, § 159, p. 183). Existem fatos que importam ao direito por trazer-lhe conseqüências, criando ou extinguindo situações jurídicas, ou modificando situações jurídicas existentes. Esses fatos que importam pra o direito, por criar, modificar, extinguir ou transmitir direitos são ocorrências do mundo dos fatos com interesse para o direito. Todo fato jurídico tem natureza constitutiva (Torquato, Situação jurídica, p. 28). A afetividade é um desses fatos que podem gerar efeitos jurídicos de, até mesmo, criar o parentesco civil por 'outra origem'.
APELAÇÃO CÍVEL. DESCONSTITUIÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PREPONDERANCIA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA SOBRE A BIOLOGICA. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. NEGADO PROVIMENTO. - O reconhecimento voluntário de paternidade, daquele que, sabidamente, não é filho da pessoa, sem seguir o procedimento legal, é chamado de "adoção à brasileira".
A "adoção à brasileira", apesar de contrária a lei, vem sendo aceita pela sociedade em razão da preponderância da filiação sócio-afetiva sobre a biológica e do princípio do melhor interesse da criança. Deverá ser mantido o registro civil da criança, mesmo que contrariando a verdade biológica, quando lhe for o mais conveniente. Recurso improvido. (Apelação Cível 1.0672.00.029573-9/001(1), da Segunda Câmara Cível. TJ/MG. Relator Desembargador Nilson Reis. DJ 23 mar. 2007)
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. PECULIARIDADES. RECURSO PROVIDO. - A "adoção à brasileira", inserida no contexto de filiação sócio-afetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal. Caracteriza violação ao princípio da dignidade da pessoa humana cercear o direito de conhecimento da origem genética, respeitando-se, por conseguinte, a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica. A investigante não pode ser penalizada pela conduta irrefletida dos pais biológicos, tampouco pela omissão dos pais registrais, apenas sanada, na hipótese, quando aquela já contava com 50 anos de idade. Não se pode, portanto, corroborar a ilicitude perpetrada, tanto pelos pais que registraram a investigante, como pelos pais que a conceberam e não quiseram ou não puderam dar-lhe o alento e o amparo decorrentes dos laços de sangue conjugados aos de afeto. Dessa forma, conquanto tenha a investigante sido acolhida em lar 'adotivo' e usufruído de uma relação sócio-afetiva, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à sua verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. Presente o dissenso, portanto, prevalecerá o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Nas questões em que presente a dissociação entre os vínculos familiares biológico e sócio-afetivo, nas quais seja o Poder Judiciário chamado a se posicionar, deve o julgador, ao decidir, atentar de forma acurada para as peculiaridades do processo, cujos desdobramentos devem pautar as decisões. Recurso especial provido. (REsp 833.712-RS, da Terceira Turma. STJ. Relatora Ministra Nancy Andrighi. DJ 04 jun. 2007)
AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECURSO PROVIDO POR MAIORIA.- A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a "posse do estado de filho", que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva, e todos os seus consectários. (Apelação Cível n. 70008795775, Sétima Câmara Cível Comarca de Porto Alegre. TJ/RS. Relator Des. José Carlos Teixeira Giorgis. DJ 05 ago. 2005)
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.[...] Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. (Apelação Cível 2.0000.00.408550-5/000(1), da Sétima Câmara Cível. TJ/MG. Relator Des. Unias Silva. DJ 29 abr. 2004)
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. AUTOR ABANDONADO PELO PAI DESDE A GRAVIDEZ DE SUA GENITORA E RECONHECIDO COMO FILHO SOMENTE APÓS PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL. DISCRIMINAÇÃO EM FACE DOS IRMÃOS. ABANDONO MORAL E MATERIAL CARACTERIZADOS. ABALO PSÍQUICO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO PARA ESTE FIM. Se o pai não alimenta, não dá amor, é previsível a deformação da prole. Isso pode acontecer, e acontece, com famílias regularmente constituídas. Não se trata de aferir humilhações no decorrer do tempo. Ninguém é obrigado a amar o outro, ainda que seja o próprio filho. Nada obstante, a situação é previsível, porém, no caso da família constituída, ninguém, só por isso, requer a separação; ocorre que, na espécie, o abandono material e moral, é atitude consciente, desejada, ainda que obstada pela defesa do patrimônio, em relação aos outros filhos - o afastamento, o desamparo, com reflexos na constituição de abalo psíquico, é que merecem ressarcidos, diante do surgimento de nexo de causalidade. (Apelação 552.574-4/4-00, da Oitava Câmara de Direito Privado. TJ/SP. Relator Des. Caetano Lagrasta. DJ 17 mai. 2008)
DECISÃO MONOCRÁTICA QUE CONDENOU UM PAI A PAGAR INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS À SUA FILHA POR ABANDONO. A par da ofensa à integridade física (e psíquica) decorrente de um crescimento desprovido do afeto paterno, o abandono afetivo se apresenta também como ofensa à dignidade da pessoa humana, bem jurídico que a indenização do dano moral se destina a tutelar. Para que o réu seja condenado a indenizar o dano moral por ele causado à autora não seria necessário que se demonstrasse que o requerido é o único culpado pelos dramas e conflitos atuais da autora, embora afinal não haja prova de nenhuma outra explicação para o estado psicológico atual da requerente além do abandono afetivo de que foi vítima por culpa do réu. Basta que se constate, como se constatou, o abandono de responsabilidade do requerido. Os autos não contêm apenas demonstração de problemas psicológicos de uma filha. Mostram também uma atitude de alheamento de um pai, com o que o réu não está sendo condenado apenas porque sua filha tem problemas, e sim porque deliberadamente se esqueceu da filha.
- Isto posto, julgo parcialmente procedente a ação, para condenar o réu a pagar à autora a quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), com atualização monetária a partir da data desta sentença e juros de mora desde a citação, para reparação do dano moral, e ao custeio do tratamento psicológico da autora, a ser apurado em liquidação. Condeno o réu ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios de 15% (quinze por cento) do valor atualizado da parte líquida da condenação, o que já leva em conta a sucumbência da requerente. (31ª Vara Cível Central de São Paulo. Autos n° 01.036747-0. Juiz Luis Fernando Cirillo. São Paulo, 05 de junho de 2004. Publicado em 26 de junho de 2004)
4 CONCLUSÃO
A abordagem do presente artigo científico permitiu o estudo do afeto como aspecto intrínseco e inerente ao ser humano, bem como verificar sua relevância como princípio implícito da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, constatando-se sua importância como estrutura basilar não expressa no ordenamento jurídico constitucional, o afeto também no âmbito da legislação civil pode ser equiparado a um direito da personalidade.
As atrocidades ocorridas na história, como o genocídio na segunda guerra mundial em que milhares de pessoas morreram por intolerância à sua condição étnica, religiosa ou de orientação sexual permitiram uma reflexão ética sobre a humanidade, em que os valores passaram a ser voltados para o ser humano e considerados em todos os seus aspectos, como por exemplo: respeito à diversidade de crenças religiosas, tolerância pela orientação sexual, não discriminação por gênero, raça ou sexo e etc.
E por meio dessa visão humanista, a Constituição Federal de 1988 assegurou o direito à realização do indivíduo nos seus aspectos subjetivos expressos no art. 5º como: honra, liberdade, igualdade, etc. Se a norma constitucional garante esse direito, portanto, logo, pode-se concluir que o princípio subliminar como o Afeto também está protegido pela Carta Magna.
Na sociedade atual constata-se o surgimento de várias formas familiares originadas pela predominância do afeto, porém, a norma constitucional prevê formalmente apenas três modelos (pelo casamento, união estável entre homem e mulher e monoparental). O Poder Legislativo encontra dificuldades em acompanhar as mudanças em determinados assuntos como, por exemplo, união homoafetiva, filiação socioafetiva, famílias múltiplas, concubinato e etc, e em produzir leis que regulamentem essas situações ou outras que possam surgir em decorrência do afeto.
Diante dessa lacuna legal, o Judiciário se vê obrigado a julgar e a levar em consideração nas suas decisões, os princípios gerais do direito previstos no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil para solucionar situações que envolvem o afeto como por exemplo: união homoafetiva, adoção por casal homossexual, filiação socioafetiva e abandono afetivo.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) elaborou em conjunto com o Deputado Federal Barradas Carneiro (PT/BA) o Projeto de Lei n. 2285/2007 denominado "Estatuto das Famílias" visando a união de todos os artigos do Código Civil que trata do direito de família, bem como leis esparsas e o reconhecimento de diversos tipos familiares como entidades familiares. Esse Projeto permite às Famílias brasileiras a sua regulamentação de forma especial, levando em consideração seus aspectos peculiares e alcançando de forma prática os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil apregoados no art. 3º, I: "construir uma sociedade livre, justa e solidária."
O alcance desses objetivos para a família brasileira permitirá uma sociedade alicerçada e amparada por valores constitucionais, e assim, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
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[1] Este Projeto de Lei encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) com a Deputada Rita Camata (PMDB/ES) desde 07 de novembro de 2007. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=373935> Acesso em: 02 dez. 2008.
Agradecimentos especiais:
- Sandra Ligian Nerling Konrad - Mestre, Doutoranda e Professora da PUC-SP, pela orientação no artigo e por acreditar que tudo é possível.
- Andréa Almeida Campos - Mestre pela UFPE e Professora Universitária, por acreditar no meu potencial.
- Defensoria Pública - Regional Santo Amaro - pela experiência e apoio dos colegas.
- Familiares e colegas da Faculdade.
- IBDFAM e seus maravilhosos Congressos.
- Maria Berenice Dias - inspiração para todos.
Marcia Elena de Oliveira Cunha é sócia do IBDFAM, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Uni-Radial Estácio de Sá - SP em 2008. Estagiária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Regional Santo Amaro na área de Direito de Família. Psicóloga.
Autor: Marcia Elena de Oliveira Cunha