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11 de Fevereiro de 2009
Artigo - Os serviços notariais e registrais, suas contraprestações e o imposto sobre serviços de qualquer natureza - final
Gilson Carlos Sant'Anna(*)
2ª Questão: O serviço notarial e registral é uma atividade de tutela do ordenamento jurídico, caracterizando-se pelo poder de coação próprio e privativo do Estado?
A jurisprudência e a doutrina dominantes enfatizam o fato da atividade notarial e registral ser uma atividade estatal e a utilização compulsória do serviço como fatores que conformariam a contraprestação notarial como taxa.
A tese de que o critério jurídico que conforma um ingresso como taxa ou preço público é o tipo de atividade exercida ("se for atividade econômica haverá preço; se for atividade própria do Estado, taxa"), foi desenvolvida por Marco Aurélio Greco e Hamilton Dias de Souza em um parecer elaborado para a OAB/SP, que serviu para embasar a argüição de inconstitucionalidade do Decreto nº 16685/81, do Estado de São Paulo que aumentou o valor das custas judiciais e dos emolumentos extraju-diciais (Resp 1094/SP-RTJ 141/430), sendo esse parecer, posteriormente, transformado no livro "A Natureza Jurídica das Custas Judiciais".
Neste parecer, esses autores criticam a Súmula 545 do STF que criou a distinção entre compulsoriedade da taxa e voluntariedade das demais receitas, para explicar e dar coerência ao item III do Art. 30 da Constituição de 1946.
Constituição de 1946
Art. 30 - Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar:
I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em conseqüência de obras públicas;
II - taxa;
III - quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços.
Dessa forma, o item III do art. 30 da Constituição de 1946 reunia realidades distintas em um mesmo dispositivo - a renda decorrente do exercício de atribuições públicas e aquelas provenientes da utilização de bens e serviços públicos. Tal fato gerou grande perplexidade doutrinária e criou-se a distinção entre compulso-riedade da taxa e voluntariedade das demais rendas, para explicar a norma constitucional e dar coerência a um explícito condicionamento de direito positivo.
Essa situação, segundo os autores, foi substancialmente alterada com o advento da E.C. 18/65 que, modificando o sistema constitucional-tributário, eliminou a referência a "outras rendas". Portanto, toda a discussão doutrinária a respeito da distinção entre taxa e preço público não poderia mais calcar-se na compulso-riedade ou facultatividade da exação, pela simples razão de que a discussão tinha origem num dispositivo constitucional que não existia mais. Dessa forma, para os autores é o tipo de atividade exercida que identifica taxa e preço público:
Se for uma atividade econômica, tal como definida no Título III da Constituição Federal, haverá preço; se for uma atividade própria do Estado, teremos taxa. (Hamilton Dias Souza e Marco Aurélio Greco, A Natureza Jurídica das Custas Jurídicas, ed. OAB/SP Resenha Tributária, 1982).
Essa teoria tem sofrido várias críticas de diversos juristas, entre as quais destacamos:
- Gilberto de Ulhôa Canto (Taxa e Preço Público. In: Cadernos de Pesquisas Tributárias, vol.10, Resenha Tributária, 1985, p.83-110) - O autor argumenta que a concepção de Greco não encontra fundamento constitucional. Da leitura dos dispositivos constitucionais vigentes naquela época, pode-se inferir que (a1) há serviços que a União tem encargo de organizar e fazer funcionar; (a2) alguns desses serviços podem ser executados por concessionários privados; (a3) pela maneira como são referidos, tais serviços são de uso facultativo. A norma constitucional pertinente à instituição e à cobrança de taxas (art.18, I) alude a serviços públicos, sem entretanto, extremá-los dos serviços públicos mencionados nos arts. 8º, XII (serviço postal) e XV (serviços de telecomunicações, de energia elétrica, de navegação aérea, de transportes entre portos marítimos e fronteiras nacionais e interestaduais), 164 (a União para a realização de serviços comuns, pode estabelecer regiões metropolitanas) e 167 (estabelecimento de tarifas para empresas concessionárias de serviços públicos), nem com eles confundi-los. Estes, embora sejam serviços específicos e divisíveis, pela sua natureza, não podem ser remunerados por taxas. Sendo assim, nos sistema de direito positivo daquela época existiam serviços públicos cuja contrapartida era a taxa, e serviços públicos remunerados mediante preço.
- Flávio Bauer Novelli (Opus cit. p.104), com base em M.S. Giannini, critica a visão de Greco, argumentando que o autor confunde serviço público com serviço regido por normas de direito público, esquecendo-se de que existem serviços públicos prestados de acordo com normas de direito privado. Novelli afirma que, segundo a interpretação de Greco, seriam taxas as contraprestações típicas que tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem como autênticos preços públicos ou tarifas, tais como as que são pagas pela utilização dos serviços de água e esgoto, de educação e instrução (anuidades ou mensalidades escolares), de transporte ferroviário, rodoviário e aéreo, de manutenção e limpeza de estações aeroportuárias ou rodoviárias, de armazenagem, de correios e telégrafos, de telefonia, de fornecimento de energia elétrica e de gás em domicílio, e, assim, muitas outras semelhantes.
- Luciano Amaro também discorda de Greco e aponta um erro de interpretação na teoria deste autor, uma vez que a Emenda n.18/65 não eliminou a expressão "outras rendas" com o intuito de restringir a remuneração dos serviços públicos ao instituto da taxa. A previsão de "outras rendas" não se encontrava na E.C. 18/65, assim como não consta no art.145, II , da atual Constituição, porque aquela norma disciplinou somente receitas tributárias. Ressalte-se que a Constituição de 1967, em seu art.160, II, mencionava, de modo expresso, "serviços públicos", em relação aos quais previa que a lei deveria estabelecer "tarifas", dispositivo que corresponde ao art.175, parágrafo único, III, da Constituição de 1988.
- Adilson Abreu Dallari(Direito Tributário Brasileiro. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002,p.42-43). Para o autor, a concepção de Greco trata-se apenas de uma "antiga polêmica", pois, com o art.175 da atual Constituição Federal, o pagamento de tarifas como forma de remuneração de serviços concedidos tem assento constitucional. Afirma, ainda, ser perfeitamente lícita a fixação de tarifa como forma de remuneração de serviços públicos concedidos, inclusive aqueles de utilização compulsória, como os serviços de saneamento básico e recolhimento domiciliar do lixo.
As críticas ao critério da compulsoriedade, enquanto característica isolada da relação, já foram elencadas acima, evidenciando que tal critério não serve para diferenciar taxa de preço público.
Analisando-se o atual regime jurídico dos serviços notariais e registrais e de suas contraprestações, pode-se afirmar que:
- desde a antiguidade e nas mais diferentes culturas, a sociedade humana sempre teve algum mecanismo de preservação da memória de atos e negócios jurídicos, com a finalidade de pré-constituição de provas e prevenção de litígios. Foram surgindo, assim, os encarregados de redigir e registrar documentos escritos e se configurando o que hoje se entende por atividade notarial;
- os serviços notariais e registrais existem atualmente em todos os Estados, que os organizam de formas diversas;
- na história das serventias notariais e registrais, há uma contínua e progressiva dinâmica que transcende os limites do território pátrio e, ao mesmo tempo em que coloca essa atividade como fenômeno gerado no âmbito central do próprio Estado, a desloca, todavia, para uma intermediação privada, realizada sempre em nome do próprio Estado;
- o Estado Brasileiro não fugiu à tradição histórica acima, adotando, por opção do legislador constituinte, o sistema que delega ao particular o exercício da fé pública. Na sistemática atual, notários e registradores são profissionais do direito, delegados de uma atividade estatal, que possuem autonomia administrativa e financeira para gerenciar suas serventias, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal;
- o serviço notarial e registral é uma das formas de intervenção do Estado em nossa sociedade, tendo por finalidade a prevenção de litígios;
- a Constituição de 1988 ressalta a distinção entre serviços judiciais em face dos serviços notariais e registrais. Compete privativamente aos Tribunais elaborar seus regimentos internos (CF, art. 96, I, a, b e d; II, b, c e d). Os serviços notariais e registrais estão previstos no art.236;
- as serventias do foro judicial prestam os serviços forenses, que são remunerados por custas / emolumentos judiciais, conforme o art. 24, IV e 98 § 2º da CF/88. Os serviços notariais e registrais são remunerados por outra categoria (emolumentos notariais), conforme explicita o § 2º, do art. 236 da Carta Magna Nacional e a Lei 10169/2000. Além disso, as receitas provenientes dos serviços notariais e registrais não fazem parte do Título VI, Capítulo I, da CF, que trata do Sistema Tributário Nacional;
- a competência para legislar em sede de serviços forenses é a concorrente do art. 24, IV da CF; enquanto que a referente a emolu-mentos é a privativa da União, em termos de normas gerais (Lei 10169/2000), consoante o disposto no art. 236, §2º; da Constituição. No regime jurídico das contraprestações notariais e registrais não se aplica o disposto no art. 24, §3º, da CF, pois não se trata de competência legisla-tiva concorrente;
- o termo serventia, contido no artigo 16, da Lei 8935/94, identifica especificamente o serviço e não a função, esta sim relacionada a cargos, classes e carreiras, ou seja, a atividades específicas dos funcionários públicos. As serventias notariais e registrais não são cargos públicos, mas órgãos estatais despersonali-zados que, por determinação do legislador constituinte, tiveram suas administrações transferidas para particulares, conforme, inclusive, o entendimento mais recente do STF (ADI 2602).
Dessa forma, a prestação do serviço notarial e registral não configura exercício de soberania do Poder Público, mas um serviço jurídico de utilidade ou relevância pública, que atende não apenas às necessidades individuais do usuário, mas principalmente à necessidade social de segurança jurídica e, em consequência, de prevenção de litígios. E, para concluir, se o serviço notarial e registral fosse típico do Estado, não poderia haver transferência de seu exercício a particulares.
O quadro abaixo sintetiza a natureza jurídica das contraprestações das serventias notariais e registrais:
Obs.: Tabela disponível em formato PDF, no site www.diariodasleis.com.br.
De tudo que foi exposto, pode-se concluir que as contraprestações notariais e registrais não obedecem ao princípio da destinação pública do tributo, e nem tampouco se configuram como contraprestação de serviço público exercido pelo Estado, na qualidade de ente soberano de Direito Público. As receitas provenientes da prestação dos serviços notariais e registrais são preços públicos, a sua cobrança se destina integralmente ao notário, e o seu regime jurídico é o da legalidade genérica do Estado de Direito, o qual permite sua regulamentação administrativa, dentro dos parâmetros traçados pelo Legislativo.
5. A definição da contraprestação notarial e registral como preço público e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)
A introdução da Lei complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, no sistema jurídico brasileiro, instituiu nova disciplina para o ISSQN. A nova Lei adiciona à antiga lista de serviços tributáveis (Dec. Lei 406/68) centenas de novos serviços e, dentre as novas atividades tributadas, encontra-se o serviço notarial (art.1º, §3º, item 21, subitem 21.1), cujas contraprestações foram fixadas pelo legislador como preço ou tarifa.
Com relação à constituciona-lidade da cobrança do ISSQN sobre o serviço notarial, existem duas correntes antagônicas que se diferenciam conforme o entendimento dado à natureza jurídica do serviço e da sua contraprestação . Este trabalho propõe uma terceira linha de interpretação.
5.1. Primeira corrente de interpretação: A lei complementar nº 116/03, no tocante aos serviços notariais, não desrespeita a Constituição Federal.
Para essa corrente, que defende o ponto de vista dos Municípios, existem serviços públicos que não são remunerados por taxas, como é o caso do serviço notarial. Dessa forma, não existe imunidade tributária recíproca, pois o artigo 150, §3º da Constituição Federal estabelece que a imunidade recíproca não se aplica ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades, em que haja contra-prestação ou pagamento de preços, ou tarifas, pelo usuário. Sendo assim, no tocante ao item 21, subitem 21.1, a LC 116/03 atuaria no âmbito de sua competência, delineada pelo art.146 da Carta Magna, estabelecendo fatos geradores, base de cálculo e contribuintes (III, a) e até regulando as limitações ao poder de tributar (II), ao firmar que nem todo serviço público é imune, harmonizando-se, assim, com o §3º do art.150, da CF/88.
5.2. Segunda corrente de interpretação: O serviço notarial e registral, sendo remunerado por taxa, não permite a incidência do ISSQN.
Os tributaristas Roque Antonio Carraza, Osires de Azevedo Lopes Filho, Fernando Neto Botelho, Álvaro Mello Filho e Betina Treiger Grupenmacher defendem a tese de que os serviços notariais não estão sujeitos à tributação por meio do ISSQN. O que se alega é, em resumo, o seguinte:
- as serventias notariais e registrais são serviços públicos estaduais, submetidas à disciplina de Direito Público. O ISSQN, como estabelecido no art. 156, III da Constituição, refere-se aos serviços realizados no âmbito do Direito Privado;
- a atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias privatizadas constituem, em decorrência de sua própria natureza, uma função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime jurídico de Direito Público. A base desse entendimento encontra-se na jurisprudência estudada nos capítulos anteriores;
ao utilizar a mesma base de cálculo e o mesmo fato gerador de taxas estaduais (emolumentos extrajudiciais), a Lei do ISSQN fere o art.150, VI, "a", da Constituição da República (imunidade recíproca).
O STF tem decidido que os emolumentos extrajudiciais são taxas, excluindo a natureza jurídica de preço público. Vale dizer: está-se diante de um tributo municipal (ISSQN-imposto), incidindo sobre outro tributo estadual (emolumentos-taxas), o que, nos planos fáticos e jurídicos, viola ditames e princípios constitucionais e tributários.
Essa doutrina enfatiza, ainda, que o serviço notarial e registral é público e específico e sobre ele incidem os emolumentos (taxas), conforme previsão dos arts.77 e 79, II, do Código Tributário Nacional. Isso significa, segundo esses autores, que o CTN concebe tão somente a taxa como contrapartida da prestação de serviços públicos, sendo vedada a instituição de qualquer imposto sobre serviços públicos, como decorrência da proibição expressa e direta insculpida no art.150, VI, "a", de nossa Carta Magna.
O STJ segue essa mesma linha de raciocínio, ao decidir que os serviços cartorários notariais e de registro não sofrem a incidência do ISSQN (Resp 612780/RO - DJ 17/10/05, p.180).
5.3. Linha de interpretação proposta: O serviço notarial é remunerado por preço público e não permite a incidência do ISSQN, pois o município é incompetente para instituir tributo sobre a prestação nota-rial.
Um dos aspectos básicos da nossa estrutura constitucional é a forma federativa do Estado Brasileiro. O regime federativo é variável, mas se caracteriza fundamentalmente pela união de diversos estados autônomos, sob uma única soberania. Diferencia-se dos Estados Unitários pela autonomia das unidades federadas, em sua capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.
A auto-organização se caracteriza pela liberdade de as unidades federativas elaborarem as suas Constituições, obedecidos os princípios gerais da União. O autogoverno é definido pela capacidade de organizar o seu governo, mediante eleição. A autoadministração se caracteriza pela faculdade de possuir administração própria, leis próprias para o funcionamento dessa administração, capacidade de gestão de seus negócios, arrecadação, fiscalização e aplicação dos tributos de sua competência.
Em nosso sistema federativo, é a Constituição que dá a titularidade dos tributos à União, aos Estados e aos Municípios. No entanto, para que o tributo seja criado é necessário que o ente federativo, possuidor da faculdade de criá-lo, venha a exercitar essa competência, através da edição de uma lei, com os requisitos de uma lei tributária, ou seja, com a definição do fato gerador, da base de cálculo da alíquota e dos sujeitos ativo e passivo. É a essa lei que se reconhece a qualidade de ser criadora do tributo. A titularidade dos tributos, dada pela Constituição aos entes federativos, é intransferível e inegociável, o que significa dizer que qualquer outra pessoa que tente instituir tributos de competência de outro ente é incompetente, pois não cria tributo quem quer, mas quem pode e de acordo com a Constituição Federal. Não existe, no entanto, o dever de instituir todos os tributos previstos na Constituição. O não exercício dessa competência não significa renúncia, já que essa competência permanece no campo das virtualidades, podendo ser exercida a qualquer momento, mediante edição da competente lei instituidora.
Para que não haja conflitos, a Constituição Federal estabeleceu critérios para a repartição da competência tributária. O primeiro ponto a se observar é que a Constituição adotou uma discriminação exaustiva, portanto dotou cada uma das entidades federativas de uma competência tributária privativa ou exclusiva. Dessa forma, os tributos são individualizados, para que possam ser repartidos. A técnica de repartição, adotada pelo texto constitucional, foi a de que se dividissem os tributos em modalidades e se adotassem critérios para a sua apropriação.
O art.145 da Constituição Federal especifica as modalidades de tributo que compõem o nosso sistema: impostos, taxas, contribuição de melhoria. Para que a divisão fosse rigorosa, foram instituídas as seguintes regras de repartição: para os impostos, foi adotada a técnica da atribuição da competência privativa (a única exceção a essa regra é a do art. 154, II da CF); e, para as taxas e contribuições de melhoria, a da competência comum. Como corolário, temos que os impostos são enumerados pelo nome e discriminados na Constituição, sendo atribuídos, privativamente, a cada uma das pessoas políticas, enquanto que as taxas e contribuições de melhoria são inominadas e atribuídas, em comum, a essas pessoas. Tal fato não significa que possam existir taxas e contribuições de melhoria que se sobreponham, pois a nossa Carta Magna distribuiu a competência para o exercício do poder de polícia, assim como para a prestação de serviços públicos. Dessa forma, só é regulável juridicamente a taxa cobrada com fundamento no poder de polícia ou na prestação de serviço público próprios de quem a instituiu.
Na realidade, o ISSQN não incide sobre os serviços notariais e registrais, porque cabe, ao Poder Judiciário Estadual, a competência constitucional de fiscalizar tais serviços (CF, art. 236, §1º e Lei 8935/94, Capítulo VII). Assim, cabe ao juízo competente, na órbita estadual e do Distrito Federal, a fiscalização dos atos notariais e registrais, o zelo para que o serviço seja prestado com rapidez, qualidade satisfatória, e de modo eficiente, podendo propor a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desse serviço, segundo critérios populacionais e sócio-econômicos. Logo, é o Estado, através de seu Poder Judiciário, quem possui a competência constitucional para instituir taxa, no exercício do poder de polícia sobre as atividades notariais e registrais. A cobrança do ISSQN pelo Município implica em uma invasão de competência e, conse-quentemente, em uma bitributação, por causa da existência dessa taxa estadual. Note-se que essa bitributa-ção não ocorre devido à natureza jurídico-tributária das contrapresta-ções notariais e registrais que, como já foi visto, são preços públicos, mas devido ao fato de que o nosso sistema tributário nacional não admite a existência de dois tributos (taxa de fiscalização estadual e ISSQN) incidindo sobre uma mesma base de cálculo (emolumentos) - art.145, §2º, CF.
O quadro abaixo resume as principais interpretações da Lei 116/03 com relação ao serviço notarial:
Obs.: Tabela disponível em formato PDF, no site www.diariodasleis.com.br.
Pode-se concluir que a classificação das contraprestações dos serviços notariais e registrais como preços públicos não serve como fundamento jurídico para os municípios cobrarem ISSQN sobre tais atividades, acontecimento que traria prejuízos para os usuários, que são os contribuintes de fato desse tributo.
(*) O autor é Doutor em Direito Econômico, Titular do 1º Distribuidor de Niterói, RJ.
2ª Questão: O serviço notarial e registral é uma atividade de tutela do ordenamento jurídico, caracterizando-se pelo poder de coação próprio e privativo do Estado?
A jurisprudência e a doutrina dominantes enfatizam o fato da atividade notarial e registral ser uma atividade estatal e a utilização compulsória do serviço como fatores que conformariam a contraprestação notarial como taxa.
A tese de que o critério jurídico que conforma um ingresso como taxa ou preço público é o tipo de atividade exercida ("se for atividade econômica haverá preço; se for atividade própria do Estado, taxa"), foi desenvolvida por Marco Aurélio Greco e Hamilton Dias de Souza em um parecer elaborado para a OAB/SP, que serviu para embasar a argüição de inconstitucionalidade do Decreto nº 16685/81, do Estado de São Paulo que aumentou o valor das custas judiciais e dos emolumentos extraju-diciais (Resp 1094/SP-RTJ 141/430), sendo esse parecer, posteriormente, transformado no livro "A Natureza Jurídica das Custas Judiciais".
Neste parecer, esses autores criticam a Súmula 545 do STF que criou a distinção entre compulsoriedade da taxa e voluntariedade das demais receitas, para explicar e dar coerência ao item III do Art. 30 da Constituição de 1946.
Constituição de 1946
Art. 30 - Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar:
I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em conseqüência de obras públicas;
II - taxa;
III - quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços.
Dessa forma, o item III do art. 30 da Constituição de 1946 reunia realidades distintas em um mesmo dispositivo - a renda decorrente do exercício de atribuições públicas e aquelas provenientes da utilização de bens e serviços públicos. Tal fato gerou grande perplexidade doutrinária e criou-se a distinção entre compulso-riedade da taxa e voluntariedade das demais rendas, para explicar a norma constitucional e dar coerência a um explícito condicionamento de direito positivo.
Essa situação, segundo os autores, foi substancialmente alterada com o advento da E.C. 18/65 que, modificando o sistema constitucional-tributário, eliminou a referência a "outras rendas". Portanto, toda a discussão doutrinária a respeito da distinção entre taxa e preço público não poderia mais calcar-se na compulso-riedade ou facultatividade da exação, pela simples razão de que a discussão tinha origem num dispositivo constitucional que não existia mais. Dessa forma, para os autores é o tipo de atividade exercida que identifica taxa e preço público:
Se for uma atividade econômica, tal como definida no Título III da Constituição Federal, haverá preço; se for uma atividade própria do Estado, teremos taxa. (Hamilton Dias Souza e Marco Aurélio Greco, A Natureza Jurídica das Custas Jurídicas, ed. OAB/SP Resenha Tributária, 1982).
Essa teoria tem sofrido várias críticas de diversos juristas, entre as quais destacamos:
- Gilberto de Ulhôa Canto (Taxa e Preço Público. In: Cadernos de Pesquisas Tributárias, vol.10, Resenha Tributária, 1985, p.83-110) - O autor argumenta que a concepção de Greco não encontra fundamento constitucional. Da leitura dos dispositivos constitucionais vigentes naquela época, pode-se inferir que (a1) há serviços que a União tem encargo de organizar e fazer funcionar; (a2) alguns desses serviços podem ser executados por concessionários privados; (a3) pela maneira como são referidos, tais serviços são de uso facultativo. A norma constitucional pertinente à instituição e à cobrança de taxas (art.18, I) alude a serviços públicos, sem entretanto, extremá-los dos serviços públicos mencionados nos arts. 8º, XII (serviço postal) e XV (serviços de telecomunicações, de energia elétrica, de navegação aérea, de transportes entre portos marítimos e fronteiras nacionais e interestaduais), 164 (a União para a realização de serviços comuns, pode estabelecer regiões metropolitanas) e 167 (estabelecimento de tarifas para empresas concessionárias de serviços públicos), nem com eles confundi-los. Estes, embora sejam serviços específicos e divisíveis, pela sua natureza, não podem ser remunerados por taxas. Sendo assim, nos sistema de direito positivo daquela época existiam serviços públicos cuja contrapartida era a taxa, e serviços públicos remunerados mediante preço.
- Flávio Bauer Novelli (Opus cit. p.104), com base em M.S. Giannini, critica a visão de Greco, argumentando que o autor confunde serviço público com serviço regido por normas de direito público, esquecendo-se de que existem serviços públicos prestados de acordo com normas de direito privado. Novelli afirma que, segundo a interpretação de Greco, seriam taxas as contraprestações típicas que tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem como autênticos preços públicos ou tarifas, tais como as que são pagas pela utilização dos serviços de água e esgoto, de educação e instrução (anuidades ou mensalidades escolares), de transporte ferroviário, rodoviário e aéreo, de manutenção e limpeza de estações aeroportuárias ou rodoviárias, de armazenagem, de correios e telégrafos, de telefonia, de fornecimento de energia elétrica e de gás em domicílio, e, assim, muitas outras semelhantes.
- Luciano Amaro também discorda de Greco e aponta um erro de interpretação na teoria deste autor, uma vez que a Emenda n.18/65 não eliminou a expressão "outras rendas" com o intuito de restringir a remuneração dos serviços públicos ao instituto da taxa. A previsão de "outras rendas" não se encontrava na E.C. 18/65, assim como não consta no art.145, II , da atual Constituição, porque aquela norma disciplinou somente receitas tributárias. Ressalte-se que a Constituição de 1967, em seu art.160, II, mencionava, de modo expresso, "serviços públicos", em relação aos quais previa que a lei deveria estabelecer "tarifas", dispositivo que corresponde ao art.175, parágrafo único, III, da Constituição de 1988.
- Adilson Abreu Dallari(Direito Tributário Brasileiro. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002,p.42-43). Para o autor, a concepção de Greco trata-se apenas de uma "antiga polêmica", pois, com o art.175 da atual Constituição Federal, o pagamento de tarifas como forma de remuneração de serviços concedidos tem assento constitucional. Afirma, ainda, ser perfeitamente lícita a fixação de tarifa como forma de remuneração de serviços públicos concedidos, inclusive aqueles de utilização compulsória, como os serviços de saneamento básico e recolhimento domiciliar do lixo.
As críticas ao critério da compulsoriedade, enquanto característica isolada da relação, já foram elencadas acima, evidenciando que tal critério não serve para diferenciar taxa de preço público.
Analisando-se o atual regime jurídico dos serviços notariais e registrais e de suas contraprestações, pode-se afirmar que:
- desde a antiguidade e nas mais diferentes culturas, a sociedade humana sempre teve algum mecanismo de preservação da memória de atos e negócios jurídicos, com a finalidade de pré-constituição de provas e prevenção de litígios. Foram surgindo, assim, os encarregados de redigir e registrar documentos escritos e se configurando o que hoje se entende por atividade notarial;
- os serviços notariais e registrais existem atualmente em todos os Estados, que os organizam de formas diversas;
- na história das serventias notariais e registrais, há uma contínua e progressiva dinâmica que transcende os limites do território pátrio e, ao mesmo tempo em que coloca essa atividade como fenômeno gerado no âmbito central do próprio Estado, a desloca, todavia, para uma intermediação privada, realizada sempre em nome do próprio Estado;
- o Estado Brasileiro não fugiu à tradição histórica acima, adotando, por opção do legislador constituinte, o sistema que delega ao particular o exercício da fé pública. Na sistemática atual, notários e registradores são profissionais do direito, delegados de uma atividade estatal, que possuem autonomia administrativa e financeira para gerenciar suas serventias, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal;
- o serviço notarial e registral é uma das formas de intervenção do Estado em nossa sociedade, tendo por finalidade a prevenção de litígios;
- a Constituição de 1988 ressalta a distinção entre serviços judiciais em face dos serviços notariais e registrais. Compete privativamente aos Tribunais elaborar seus regimentos internos (CF, art. 96, I, a, b e d; II, b, c e d). Os serviços notariais e registrais estão previstos no art.236;
- as serventias do foro judicial prestam os serviços forenses, que são remunerados por custas / emolumentos judiciais, conforme o art. 24, IV e 98 § 2º da CF/88. Os serviços notariais e registrais são remunerados por outra categoria (emolumentos notariais), conforme explicita o § 2º, do art. 236 da Carta Magna Nacional e a Lei 10169/2000. Além disso, as receitas provenientes dos serviços notariais e registrais não fazem parte do Título VI, Capítulo I, da CF, que trata do Sistema Tributário Nacional;
- a competência para legislar em sede de serviços forenses é a concorrente do art. 24, IV da CF; enquanto que a referente a emolu-mentos é a privativa da União, em termos de normas gerais (Lei 10169/2000), consoante o disposto no art. 236, §2º; da Constituição. No regime jurídico das contraprestações notariais e registrais não se aplica o disposto no art. 24, §3º, da CF, pois não se trata de competência legisla-tiva concorrente;
- o termo serventia, contido no artigo 16, da Lei 8935/94, identifica especificamente o serviço e não a função, esta sim relacionada a cargos, classes e carreiras, ou seja, a atividades específicas dos funcionários públicos. As serventias notariais e registrais não são cargos públicos, mas órgãos estatais despersonali-zados que, por determinação do legislador constituinte, tiveram suas administrações transferidas para particulares, conforme, inclusive, o entendimento mais recente do STF (ADI 2602).
Dessa forma, a prestação do serviço notarial e registral não configura exercício de soberania do Poder Público, mas um serviço jurídico de utilidade ou relevância pública, que atende não apenas às necessidades individuais do usuário, mas principalmente à necessidade social de segurança jurídica e, em consequência, de prevenção de litígios. E, para concluir, se o serviço notarial e registral fosse típico do Estado, não poderia haver transferência de seu exercício a particulares.
O quadro abaixo sintetiza a natureza jurídica das contraprestações das serventias notariais e registrais:
Obs.: Tabela disponível em formato PDF, no site www.diariodasleis.com.br.
De tudo que foi exposto, pode-se concluir que as contraprestações notariais e registrais não obedecem ao princípio da destinação pública do tributo, e nem tampouco se configuram como contraprestação de serviço público exercido pelo Estado, na qualidade de ente soberano de Direito Público. As receitas provenientes da prestação dos serviços notariais e registrais são preços públicos, a sua cobrança se destina integralmente ao notário, e o seu regime jurídico é o da legalidade genérica do Estado de Direito, o qual permite sua regulamentação administrativa, dentro dos parâmetros traçados pelo Legislativo.
5. A definição da contraprestação notarial e registral como preço público e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)
A introdução da Lei complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, no sistema jurídico brasileiro, instituiu nova disciplina para o ISSQN. A nova Lei adiciona à antiga lista de serviços tributáveis (Dec. Lei 406/68) centenas de novos serviços e, dentre as novas atividades tributadas, encontra-se o serviço notarial (art.1º, §3º, item 21, subitem 21.1), cujas contraprestações foram fixadas pelo legislador como preço ou tarifa.
Com relação à constituciona-lidade da cobrança do ISSQN sobre o serviço notarial, existem duas correntes antagônicas que se diferenciam conforme o entendimento dado à natureza jurídica do serviço e da sua contraprestação . Este trabalho propõe uma terceira linha de interpretação.
5.1. Primeira corrente de interpretação: A lei complementar nº 116/03, no tocante aos serviços notariais, não desrespeita a Constituição Federal.
Para essa corrente, que defende o ponto de vista dos Municípios, existem serviços públicos que não são remunerados por taxas, como é o caso do serviço notarial. Dessa forma, não existe imunidade tributária recíproca, pois o artigo 150, §3º da Constituição Federal estabelece que a imunidade recíproca não se aplica ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades, em que haja contra-prestação ou pagamento de preços, ou tarifas, pelo usuário. Sendo assim, no tocante ao item 21, subitem 21.1, a LC 116/03 atuaria no âmbito de sua competência, delineada pelo art.146 da Carta Magna, estabelecendo fatos geradores, base de cálculo e contribuintes (III, a) e até regulando as limitações ao poder de tributar (II), ao firmar que nem todo serviço público é imune, harmonizando-se, assim, com o §3º do art.150, da CF/88.
5.2. Segunda corrente de interpretação: O serviço notarial e registral, sendo remunerado por taxa, não permite a incidência do ISSQN.
Os tributaristas Roque Antonio Carraza, Osires de Azevedo Lopes Filho, Fernando Neto Botelho, Álvaro Mello Filho e Betina Treiger Grupenmacher defendem a tese de que os serviços notariais não estão sujeitos à tributação por meio do ISSQN. O que se alega é, em resumo, o seguinte:
- as serventias notariais e registrais são serviços públicos estaduais, submetidas à disciplina de Direito Público. O ISSQN, como estabelecido no art. 156, III da Constituição, refere-se aos serviços realizados no âmbito do Direito Privado;
- a atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias privatizadas constituem, em decorrência de sua própria natureza, uma função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime jurídico de Direito Público. A base desse entendimento encontra-se na jurisprudência estudada nos capítulos anteriores;
ao utilizar a mesma base de cálculo e o mesmo fato gerador de taxas estaduais (emolumentos extrajudiciais), a Lei do ISSQN fere o art.150, VI, "a", da Constituição da República (imunidade recíproca).
O STF tem decidido que os emolumentos extrajudiciais são taxas, excluindo a natureza jurídica de preço público. Vale dizer: está-se diante de um tributo municipal (ISSQN-imposto), incidindo sobre outro tributo estadual (emolumentos-taxas), o que, nos planos fáticos e jurídicos, viola ditames e princípios constitucionais e tributários.
Essa doutrina enfatiza, ainda, que o serviço notarial e registral é público e específico e sobre ele incidem os emolumentos (taxas), conforme previsão dos arts.77 e 79, II, do Código Tributário Nacional. Isso significa, segundo esses autores, que o CTN concebe tão somente a taxa como contrapartida da prestação de serviços públicos, sendo vedada a instituição de qualquer imposto sobre serviços públicos, como decorrência da proibição expressa e direta insculpida no art.150, VI, "a", de nossa Carta Magna.
O STJ segue essa mesma linha de raciocínio, ao decidir que os serviços cartorários notariais e de registro não sofrem a incidência do ISSQN (Resp 612780/RO - DJ 17/10/05, p.180).
5.3. Linha de interpretação proposta: O serviço notarial é remunerado por preço público e não permite a incidência do ISSQN, pois o município é incompetente para instituir tributo sobre a prestação nota-rial.
Um dos aspectos básicos da nossa estrutura constitucional é a forma federativa do Estado Brasileiro. O regime federativo é variável, mas se caracteriza fundamentalmente pela união de diversos estados autônomos, sob uma única soberania. Diferencia-se dos Estados Unitários pela autonomia das unidades federadas, em sua capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.
A auto-organização se caracteriza pela liberdade de as unidades federativas elaborarem as suas Constituições, obedecidos os princípios gerais da União. O autogoverno é definido pela capacidade de organizar o seu governo, mediante eleição. A autoadministração se caracteriza pela faculdade de possuir administração própria, leis próprias para o funcionamento dessa administração, capacidade de gestão de seus negócios, arrecadação, fiscalização e aplicação dos tributos de sua competência.
Em nosso sistema federativo, é a Constituição que dá a titularidade dos tributos à União, aos Estados e aos Municípios. No entanto, para que o tributo seja criado é necessário que o ente federativo, possuidor da faculdade de criá-lo, venha a exercitar essa competência, através da edição de uma lei, com os requisitos de uma lei tributária, ou seja, com a definição do fato gerador, da base de cálculo da alíquota e dos sujeitos ativo e passivo. É a essa lei que se reconhece a qualidade de ser criadora do tributo. A titularidade dos tributos, dada pela Constituição aos entes federativos, é intransferível e inegociável, o que significa dizer que qualquer outra pessoa que tente instituir tributos de competência de outro ente é incompetente, pois não cria tributo quem quer, mas quem pode e de acordo com a Constituição Federal. Não existe, no entanto, o dever de instituir todos os tributos previstos na Constituição. O não exercício dessa competência não significa renúncia, já que essa competência permanece no campo das virtualidades, podendo ser exercida a qualquer momento, mediante edição da competente lei instituidora.
Para que não haja conflitos, a Constituição Federal estabeleceu critérios para a repartição da competência tributária. O primeiro ponto a se observar é que a Constituição adotou uma discriminação exaustiva, portanto dotou cada uma das entidades federativas de uma competência tributária privativa ou exclusiva. Dessa forma, os tributos são individualizados, para que possam ser repartidos. A técnica de repartição, adotada pelo texto constitucional, foi a de que se dividissem os tributos em modalidades e se adotassem critérios para a sua apropriação.
O art.145 da Constituição Federal especifica as modalidades de tributo que compõem o nosso sistema: impostos, taxas, contribuição de melhoria. Para que a divisão fosse rigorosa, foram instituídas as seguintes regras de repartição: para os impostos, foi adotada a técnica da atribuição da competência privativa (a única exceção a essa regra é a do art. 154, II da CF); e, para as taxas e contribuições de melhoria, a da competência comum. Como corolário, temos que os impostos são enumerados pelo nome e discriminados na Constituição, sendo atribuídos, privativamente, a cada uma das pessoas políticas, enquanto que as taxas e contribuições de melhoria são inominadas e atribuídas, em comum, a essas pessoas. Tal fato não significa que possam existir taxas e contribuições de melhoria que se sobreponham, pois a nossa Carta Magna distribuiu a competência para o exercício do poder de polícia, assim como para a prestação de serviços públicos. Dessa forma, só é regulável juridicamente a taxa cobrada com fundamento no poder de polícia ou na prestação de serviço público próprios de quem a instituiu.
Na realidade, o ISSQN não incide sobre os serviços notariais e registrais, porque cabe, ao Poder Judiciário Estadual, a competência constitucional de fiscalizar tais serviços (CF, art. 236, §1º e Lei 8935/94, Capítulo VII). Assim, cabe ao juízo competente, na órbita estadual e do Distrito Federal, a fiscalização dos atos notariais e registrais, o zelo para que o serviço seja prestado com rapidez, qualidade satisfatória, e de modo eficiente, podendo propor a elaboração de planos de adequada e melhor prestação desse serviço, segundo critérios populacionais e sócio-econômicos. Logo, é o Estado, através de seu Poder Judiciário, quem possui a competência constitucional para instituir taxa, no exercício do poder de polícia sobre as atividades notariais e registrais. A cobrança do ISSQN pelo Município implica em uma invasão de competência e, conse-quentemente, em uma bitributação, por causa da existência dessa taxa estadual. Note-se que essa bitributa-ção não ocorre devido à natureza jurídico-tributária das contrapresta-ções notariais e registrais que, como já foi visto, são preços públicos, mas devido ao fato de que o nosso sistema tributário nacional não admite a existência de dois tributos (taxa de fiscalização estadual e ISSQN) incidindo sobre uma mesma base de cálculo (emolumentos) - art.145, §2º, CF.
O quadro abaixo resume as principais interpretações da Lei 116/03 com relação ao serviço notarial:
Obs.: Tabela disponível em formato PDF, no site www.diariodasleis.com.br.
Pode-se concluir que a classificação das contraprestações dos serviços notariais e registrais como preços públicos não serve como fundamento jurídico para os municípios cobrarem ISSQN sobre tais atividades, acontecimento que traria prejuízos para os usuários, que são os contribuintes de fato desse tributo.
(*) O autor é Doutor em Direito Econômico, Titular do 1º Distribuidor de Niterói, RJ.