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27 de Agosto de 2009

Artigo - O Direito Sucessório dos conviventes em relação aos cônjuges após a equiparação Constitucional das entidades familiares

1. Introdução

A formação do Direito, numa sociedade, apresenta-se de forma dinâmica e atrelada às mudanças e demandas da mesma. A trilogia fato, norma e lei, que permeiam a seara jurídica, decorrem dos valores morais desse grupo social. Dessa forma, pode-se considerar que a norma positiva está inserida no campo da moral, que é mais amplo e genérico, ou seja, a positivação de determinada lei, em seu caminho de formação, passa pela fase de valor moral, costume e fato, até alcançar a posição de norma positiva, no intuito de enquadrar situações fáticas, que encontram apoio nos hábitos e princípios de ordem valorativa de determinada sociedade, tornando-se lei de caráter geral, que passa a atingir a todos que nela se adeque.

Essa visão subjetiva e genérica é a mesma no âmbito do Direito das Famílias, podendo ser verificada tanto no contexto histórico de sua evolução jurídica bem como na evolução do comportamento humano, que parte do reconhecimento do matrimônio entre um homem e uma mulher como única forma de constituição de família, até as formas contemporâneas que incluem as famílias homoafetivas, monoparentais, pluriparentais e paralelas. Sem dúvida, essas diversas entidades familiares surgem por conta do reconhecimento da sociedade e das mudanças de valores que permeiam a mesma.

É interessante notar que os sentimentos de amor e afeto têm provocado a ocorrência dessa nova visão que redesenha o Direito das Famílias, tendo, inclusive, alcançado a tutela jurisdicional. Com muita propriedade, a ilustre doutrinadora Maria Berenice Dias¹ defende a eliminação da objetividade e do preconceito inseridos nesse ramo do Direito, além da eliminação dos excessos de rigores jurídicos que ainda impedem o avanço necessário.

A família é a base de sustentação de uma sociedade, com finalidade de constituir um LAR, em seu sentido estrito, nutrido de bons sentimentos e ensinamentos, que será responsável pela formação dos valores dessa sociedade. Nesse sentido, têm-se os princípios da solidariedade e da afetividade como norteadores do Direito das Famílias, os quais irão dar uma nova dimensão a este ramo jurídico, redesenhando as instituições de família com subsídio no afeto que une os membros que a compõe. Exemplo claro dessa adesão ao princípio da afetividade, ocorre no reconhecimento da união estável como entidade familiar, baseada na harmonia dos sentimentos que dão forma, mesmo que não seja jurídico-formal, a essa entidade, a qual é tutelada pela Constituição Federal de 1988, pelo Código Civil e pela legislação ordinária.

Diante da construção de um novo modelo para se enquadrar a família, pertinente é a referência ao instituto da União Estável, o qual já sofreu preconceitos por parte da sociedade, acabando por ser reconhecido juridicamente pelo Direito e moralmente pela sociedade. A sua equiparação a entidade familiar deu-se, principalmente, em decorrência das mudanças e da evolução dos valores sociais que antes estavam atrelados à visão religiosa, segundo a qual a família deveria ser constituída sobre o manto do matrimônio com a finalidade restrita de procriação.

O auge de tal evolução ocorreu com a Constituição Federal de 1988, a qual elevou a União Estável à condição de entidade familiar no mesmo patamar da família oriunda do casamento, bem como deu à mulher os mesmos direitos do homem, sendo a mesma a protagonista das novas formas de família que se têm atualmente, não mais restritas à antiga concepção de que a mulher trabalha em casa e cuida dos filhos e do marido, pelo contrário, já há uma inversão de papéis e de divisão de tarefas, onde a mulher contribui, mutuamente, com as despesas da família e demais tarefas do lar.

Não há dúvidas de que o papel da mulher em muito influenciou as mudanças dos paradigmas do Direito de Família, assim como foi elemento importante para a nova visão que se passou a ter em relação aos "companheiros", e para que os mesmos adquirissem direitos conferidos aos casais de "papel passado", a exemplo dos direitos sucessórios, através da legislação infraconstitucional.

Diante das explanações acima acerca dos novos conceitos e princípios da família, enquanto instituto formador de valores morais e éticos da sociedade, o presente trabalho propõe a discussão em torno do tratamento diferenciado do Código Civil em relação aos cônjuges e aos conviventes, no âmbito dos direitos sucessórios, dando-se maior foco à proteção constitucional da União Estável.

2. Noções de família

Há muito se persegue um conceito de família. Nas inúmeras tentativas resta uma sensação de incompletude, seja pela complexidade ou pela amplidão do tema. A família altera-se a cada instante. Mutante, dinâmica, plástica, suscetível a pressões externas, a família segue em busca de si mesma. Surgem muitas tentativas de conceituação, sociológica, jurídica ou dos tantos ramos do conhecimento. Em meio a essa complexidade, a família é vocacionada a ser lugar de troca de carinho, aconchego, amor; é propensa ao regozijo, à possibilidade de recarga de energia e ao alinhamento (ou re-alinhamento) de emoções.

Enquanto espaço de respeito mútuo e liberdade individual, apenas uma certeza se impõe: a família é lugar de realização pessoal e comunhão afetiva. Enquanto tal, pouco importa a forma de sua constituição ou o modelo em que se enquadre.

Maria Berenice Dias em seu "Manual de Direito das Famílias" ao tratar do tema, nos faz recordar que surgem novas estruturas de convívio chamando atenção para a ausência de terminologia que as diferencie. E, ao dar ênfase à afetividade como elemento basilar da família assegura:

Os novos contornos da família estão desafiando a possibilidade de se encontrar uma conceituação única para sua definição. Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias atuais é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Esse diferencial só pode ser identificado na afetividade. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um envolvimento relacional do âmbito do direito obrigacional - cujo núcleo é a vontade - para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde os patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. (Dias, 2007, p. 38-39).

Persiste a certeza da dificuldade de definição tendo em vista a natureza dinâmica das relações envolvidas. Dentre a pluralidade de modelos a serem levados em conta, tem-se que considerar a União Estável como uma nova forma de constituição da família.

A nova ordem jurídica da família baseia-se nos laços de afetividade, que por conseqüência resultam na solidariedade entre seus membros. Por essas razões, percebe-se que numa entidade familiar em que os membros mantêm entre si sentimentos de assistência mútua, afeto, amor e respeito, todos estabelecem um posicionamento de proteção aos demais, considerando que os benefícios decorrentes desse apoio serão revertidos para todos os membros. Ter sensibilidade para ser solidário e alcançar a plena afetividade, é o que tem caracterizado a família.

3. Proteção constitucional da união estável

A Constituição Federal de 1988 seguindo uma lógica forjada na realidade histórica e social do seu tempo busca dar unidade e sentido à legislação infraconstitucional, emprestando sentido a todo o ordenamento, sempre sob a supremacia dos princípios fundadores do ordenamento jurídico e com a observância do sistema de derivação hierárquica das normas².

Por sua vez, como não podia deixar de ser, encontra-se no topo da pirâmide legislativa submetendo toda a legislação civil codificada ou não, ao mesmo tempo em que a submete, a permeia e lhe dá exatidão. Neste sentido, Cristiano Farias explica com absoluta clareza que "a constituição promove uma alteração interna, modificando a estrutura, o conteúdo, das categorias jurídicas civis e não apenas impondo limites externos". (FARIAS, 2005, p. 29).

Dessa forma, dispõe o artigo 226, §3° que:

"Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

De acordo com este dispositivo, nota-se que a família continua a ser a base da sociedade a gozar de especial proteção do Estado. Contudo, esta proteção não mais de limita às famílias oriundas do casamento, conforme explicações supracitadas. A Constituição Federal inovou, trazendo uma concepção plural de família, que compreende não apenas a família matrimonializada, mas também as uniões estáveis.

Sendo assim, a Carta Política, baseada na tutela especial de proteção à família, estabelece a equiparação dessa entidade familiar ao casamento, reconhecendo, por conseqüência o afeto como elemento identificador do vínculo da família, buscando sempre como referência satisfazer ao princípio da dignidade da pessoa humana, promovendo o bem estar e a felicidade da pessoa humana, tornando a família um ente com função social e não mais um instituto com razões definidas pela existência de um vínculo formal.

A tendência marcante nas codificações dos séculos XVIII, XIX e do inicio do século XX cede lugar a um Direito civil-constitucionalizado que tem por valor principal a tutela da pessoa. Neste diapasão:

Entre sístole e diástole, se apreende uma travessia que apreende uma travessia que compreende a família e a filiação em novas definições. Bem se compreende o Direito de Família valores como amor e solidariedade. Superando a unidade de fontes estatuída pelo casamento no regime codificado, o Código Civil de 1916 cede espaço para família constitucionalizada.(FACHIN, 2003, p. 2 ).

A Constituição de 1988 continua sendo a lei maior, o texto ao qual toda a legislação se submete, para tanto, não é demais recordar as afirmações de Cristiano Farias ao afirmar ser ela a "norma suprema do sistema jurídico brasileiro, devendo-lhe obediência formal e material todos os demais atos normativos, sob pena de se lhes reconhecer a inconstitucionalidade, com a conseqüente expulsão do sistema". (FARIAS, 2005, p. 23). Contudo, faz-se imprescindível assinalar a repercussão do enfoque constitucional reinante, aquele que deixa de priorizar o individualismo e o patrimonial em prol do existencial, no direito civil.

Os valores trazidos pelos princípios constitucionais moldam o ordenamento civil e, como que numa imagem refletida, muitos deles se fazem presentes na Carta Magna. Esta constante integração seria o que a doutrina modernamente chama de constitucionalização do direito civil. Não se busca apenas chamar atenção para uma forma de estrutura (re-estruturação) legislativa, importa perceber o movimento de alteração valorativa do nosso sistema legal, delineado pela Constituição Federal, a qual mais que ocupar o ápice da pirâmide de Kelsen, possui função integrativa e interpretativa de todo o ordenamento, ou seja, a norma Constitucional ocupa o papel unificador do sistema jurídico tanto nos seus aspectos mais tradicionais civilísticos, quanto em outros temas de relevância pública.

O nascimento do direito civil - constitucional ocorre por uma evolução sócio-jurídica fortemente integrada e por justos motivos. Resulta da ruptura com paradigmas tradicionais de compreensão e interpretação legislativa, distanciados do patrimonialismo e do individualismo próprios do Código Civil de 1916. A unidade civil-constitucional (na qual o objetivo é a busca da igualdade real entre as pessoas pela preponderância do ser humano) é determinada pela hegemonia do princípio da dignidade da pessoa humana e por princípios constitucionais como: igualdade e fraternidade.

A Constituição Federal de 1988 seguindo uma lógica forjada na realidade histórica e social do seu tempo busca dar unidade e sentido à legislação infraconstitucional, emprestando sentido a todo o ordenamento, sempre sob a supremacia dos princípios fundadores do ordenamento jurídico e com a observância do sistema de derivação hierárquica das normas. Por sua vez, como não podia deixar de ser, encontra-se no topo da pirâmide legislativa submetendo toda a legislação civil codificada ou não, ao mesmo tempo em que a submete, a permeia e lhe dá exatidão. Neste sentido, Cristiano Farias explica com absoluta clareza que "a constituição promove uma alteração interna, modificando a estrutura, o conteúdo, das categorias jurídicas civis e não apenas impondo limites externos". (FARIAS, 2005, p. 29).

Permeando qualquer estudo jurídico sobre o tema, temos o princípio vértice de todo o ordenamento, um dos fundamentos da república, disposto no art. 1º, III³, da Constituição Federal de 1988. O princípio da dignidade da pessoa humana "impõe a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para as pessoas e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade" (FARIAS, 2005, 96).

O Código Civil de 2002, ao contrário do que propõe toda a visão constitucional exaustivamente detalhada, em seu artigo 1.790, caput, trata de forma diferenciada a ordem de vocação sucessória entre o cônjuge e o companheiro (a), demonstrando que o referido artigo não se coaduna com o texto constitucional, conforme transcrição abaixo colacionada:

"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança."

A título de ilustração, cite-se os artigos 12, parágrafo único e o artigo 25, ambos do Código Civil de 2002, demonstrando o caráter discriminatório dispensado à União Estável, quais sejam:

"Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau."

"Art. 25. O cônjuge do ausente, sempre que não esteja separado judicialmente, ou de fato por mais de dois anos antes da declaração da ausência, será o seu legítimo curador."

Diante da intenção do legislador constitucional de ampliar o conceito da União Estável, declarando-a como nova modalidade de constituição de família em seu aspecto afetivo, questiona-se o tratamento desigual dado pelo Código Civil às entidades familiares decorrentes do casamento e da união estável, sem respaldo constitucional, visto que a Constituição equiparou tais entidades e, por conseguinte, deve-se entender o mesmo de sua conseqüência patrimonial, principalmente em respeito ao princípio do da proibição do retrocesso social.

4. Legislações infraconstitucionais e direitos sucessórios

Para que se tenha a configurada a união estável, o relacionamento deve apresentar como requisitos a estabilidade, a continuidade, a comunhão de vidas, a notoriedade pública e a intenção de constituir família presentes .

Inicialmente, impende destacar que os direitos sucessórios deferidos aos companheiros no artigo 2º da Lei nº. 8.971/94 pressupõem que estejam atendidos os requisitos estabelecidos no artigo 1º, que exige para a configuração da hipótese do companheirismo o decurso de no mínimo 05 (cinco) anos de convivência, salvo se houver prole comum, além da inexistência de outra união e, ainda, que estivessem os companheiros vivendo efetivamente juntos por ocasião da abertura da sucessão.

Atendidos os requisitos antes citados, o companheiro sobrevivente passou a gozar do direito de usufruto sobre parte do patrimônio deixado por ocasião da morte do outro, variando o percentual conforme tenha o de cujus herdeiros descendentes ou apenas herdeiros ascendentes. No primeiro caso, o companheiro sobrevivente, enquanto não constituísse nova união, teria direito ao usufruto de ¼ do patrimônio hereditário. No segundo caso teria direito ao usufruto de ½ dos bens. Além do direito de usufruir de parte do patrimônio do defunto, a referida legislação no inciso III, do artigo 2º, modificou o art. 1603, do Código Civil então em vigência, para incluir o companheiro sobrevivente no rol de herdeiros legítimos, bastando para tanto que o defunto não houvesse deixado herdeiros descendentes ou ascendentes ou, nesta hipótese, não houvesse testado o patrimônio de forma a afastar da sua sucessão o convivente.

Por força deste inciso III, morrendo alguém sem filhos ou ascendentes vivos, ainda que tivesse herdeiros colaterais, tais como irmãos, a herança seria integralmente recolhida pelo (a) companheiro (a) sobrevivente. Muito embora o regime de bens aplicável a união estável seja o da comunhão parcial de bens, isso não modifica a ordem sucessória, até porque a meação, determinada pelo regime de bens, e a herança não se confundem. Em verdade, a Lei 8.971/94, em seu art. 2º, inciso III, nada mais fez do que igualar o convivente ao cônjuge supérstite na ordem de vocação hereditária. Assim, quando não houver ascendentes nem descendentes, herdará o convivente, sendo irrelevante perquirir-se da sua participação na formação do patrimônio comum.

Como se pode ver, a lei nº. 8971/94 estabelece o direito ao usufruto vidual, sem fazer qualquer restrição ao fato de também existir o direito de meação, conforme tratado no art. 3º, o que de plano disseminou ampla discussão doutrinária e jurisprudencial. Afinal, em havendo bens resultantes do esforço comum dos companheiros (o que garante a meação sobre este patrimônio comum ao sobrevivente), também teria direito o sobrevivo ao usufruto tratado no art. 2º? Apesar das divergências de posicionamentos, deve-se entender da mesma forma que se dá com os cônjuges, visto que não se pode dar tratamento privilegiando a entidades familiares que se encontram na mesma situação jurídica.

Apesar de imprecisa, a lei nº. 8.971/94 trouxe avanços no tocante ao reconhecimento de direitos sucessórios aos companheiros garantindo-lhes uma segurança jurídica até então só reservada aos casados. Não obstante, outros pontos poderiam ter sido definidos de uma vez por todas pela legislação em comento, o que infelizmente não ocorreu, vejamos, por exemplo, a tímida definição do direito de meação (artigo 3º), que na lei só se aplica à hipótese de dissolução da sociedade por morte de um dos companheiros, quando se poderia perfeitamente disciplinar a matéria inclusive para as hipóteses de dissolução intervivos, vez que da forma prevista no retrocitado artigo, o STF já havia pacificado a matéria por meio da súmula nº. 380:

"Art. 3º. Quando os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens."

Posteriormente, veio a Lei 9.278/96, na qual o legislador manifestou a intenção de legislar toda a matéria referente à união estável, suprindo as lacunas da primeira, a fim de que, de fato, se regulamentasse o §3º do artigo 226, da Constituição Federal. A nova legislação, que tinha por fim regulamentar o art. 226, § 3º, da CF/88, logo de início muda a concepção de união estável antes prevista pela Lei nº 8.971/94, deixando de exigir para sua caracterização o decurso de prazo mínimo de cinco anos de comprovada convivência, também passando a ser desnecessário que os interessados demonstrassem os requisitos pessoais outrora previstos.

A partir de então, considerava o legislador como sendo união estável e, portanto, merecedora da proteção legal, vez que reconhecida como entidade familiar, a convivência duradoura pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de vida em comum.

Note-se que a lei nº. 9.278/96 não exigia para a configuração da união estável a coabitação, haja vista que ao dispor sobre os deveres dos conviventes (art. 2º) o legislador não inclui o dever de morar sob o mesmo teto, fugindo, desta forma, à orientação adotada pelo legislador de 1916, que ao contrário, entendeu por fixar este dever no inciso II, do art. 231.

Uma das modificações introduzidas pela Lei nº 9.278/96 refere-se à presunção de existência de contribuição, e assim de sociedade, sobre os bens onerosamente adquiridos pelos conviventes na constância da relação. Tal regra afasta a necessidade de comprovação de esforço comum, como antes exigia a súmula 380 do Colendo STF.

Trata-se, portanto, de presunção absoluta, ressalvando-se, por óbvio, as exceções apresentadas na própria legislação, tais como a existência de contrato escrito dispondo em contrário e/ou a demonstração de terem sido os bens adquiridos com o produto da alienação de bens anteriores de propriedade exclusiva de um dos conviventes.

Em matéria sucessória, a Lei nº 9.278/96 estabelece em favor do convivente sobrevivo o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, em caráter vitalício, desde que o beneficiado não venha a constituir nova união estável ou casamento. Não há dúvida da natureza sucessória deste direito, exatamente porque se espelha no artigo 1.611, § 2º, do CC/1916, que reconhecia este mesmo direito ao cônjuge, portanto, ainda que se revista de um caráter de assistência material, que o colocaria, podemos dizer, na conta de uma conseqüência do direito alimentar, o direito real de habitação veio a acrescer o rol de direitos sucessórios deferidos em prol do convivente por ocasião da morte do outro, por força da vigência da Lei nº. 8.971/94.

Ao contrário do que sustentam alguns doutrinadores, a Lei nº. 9.278/96 não ab rogou a Lei nº. 8.971/94, que continuou perfeitamente vigente naquilo em que não foi modificada pela legislação posterior, como por exemplo, no que pertine à matéria referente à sucessão mortis causa presente no artigo 2º, acrescida do direito real de habitação que integra o parágrafo único do artigo 7º, da Lei nº 9.278/96. Sílvio Venosa, ao comentar as mudanças do Novo Código Civil, abordou logo de início a imprecisão gerada pela redação contida no caput do art. 1.790, que expressamente reserva a "participação" do consorte na herança do outro, somente quanto aos bens adquiridos de forma onerosa na vigência da união estável.

A aplicação literal da norma presente no artigo 1790 parece indicar que o desejo do legislador foi realmente restringir a participação do convivente ao patrimônio formado após o início da convivência, o que forçaria, como bem destaca Venosa, a adoção da solução testamentária quando a intenção dos conviventes fosse a de ampliar o campo de ação das regras sucessórias, já que o contrato escrito pactuado pelos conviventes, definindo regime de bens diverso do legal, efetivamente não pode substituir o testamento, conforme princípio que pontua esta figura jurídica.

Não há dúvidas de que essa previsão legal coloca os conviventes em posição bastante prejudicada em relação às pessoas casadas e pode ocasionar grandes injustiças, pelo fato do preceito legal, de forma equivocada, limitar e restringir o direito sucessório do companheiro, em qualquer caso, aos bens que tenham sido adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Dessa forma, depreende-se que se durante a união estável os companheiros não adquiriram nenhum bem, a título oneroso, não haverá possibilidade de o sobrevivente herdar coisa alguma, ainda que o de cujus tenha deixado valioso patrimônio, formado antes de constituir união estável.

Não adentrando no mérito, cumpre ressaltar que em tal dispositivo o legislador confundiu os institutos da meação e da herança, o primeiro decorre de uma relação patrimonial estabelecida em lei ou pela vontade das partes, existente em vida dos interessados; por outro lado, a sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme as previsões legais ou a vontade do de cujus, por meio de testamento. O que importa, para o direito sucessório nesse caso, é que tenha havido realmente uma união estável, cujo exame dos requisitos compete ao caso concreto. Por conta de tal disposição, alguns doutrinadores consideram o caput artigo 1790 do CC/02 inconstitucional, por violar flagrantemente o princípio da proteção à família, retirando direitos e vantagens dos conviventes.

Com efeito, o reconhecimento da absoluta igualdade dos conviventes e dos cônjuges, que nasceu no seio da sociedade brasileira, cresceu e se fortificou com a unanimidade jurisprudencial, até tornar-se lei, não pode ser desconsiderado. Tal reconhecimento tem por base os direitos fundamentais e os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, assentados na Constituição Federal.

5. Conclusão

A intenção de formar uma família, lastreada no afeto e no convívio harmônico, de forma pública e com comunhão de vidas, são os elementos que conferem à união estável o patamar de FAMÍLIA. Por conta dessa nova concepção é que se pode considerar que a entidade familiar, após a promulgação da Carta Magna, passou a se identificar não mais pelos aspectos formais, pelo contrário, os laços de afeto e amor passaram a conduzir as relações familiares. O art. 226, § 3º da CF/88 ao equiparar a união estável ao casamento, reconhecendo-a como entidade familiar, confirmou essa identificação da família no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da assistência mútua, conferindo a legitimidade devida ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Desta forma, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, não podem mais ser concebidas interpretações que privilegiem uma entidade familiar em detrimento das demais, pois a todas as entidades familiares é garantida especial proteção do Estado (art. 226, caput, da CF/88).

De fato, cada entidade familiar prevista na Constituição Federal possui peculiaridades e regulamentação próprias, mas a lei não pode dispensar tratamento discriminatório em relação a qualquer das entidades familiares, pois, caso contrário, estaria violando o comando constitucional supracitado.

Em razão do princípio da supremacia da Constituição, é imperioso que as normas regulamentadoras do instituto da União Estável, sejam as previstas na legislação especial ou as previstas no Código Civil, sejam relidas à luz dos princípios constitucionais, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proteção da família.

O aprendizado maior que se tira dessas observações é que a família é o palco principal onde estas relações se fixam, desdobram-se, alteram- se, organizam- se e se estruturam, e que as pessoas têm como um reduto, um afago, qualquer que seja sua forma de constituição.

6. Bibliografia

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

______. Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994.

______. Lei 9.278, de 10 de maio de 1996.

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[1] DIAS, Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias.

2 Vide Guilherme Calmon Nogueira da Gama. A Nova Filiação: O Biodireito e as Relações Parentais. 2006, p. 380.

³Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana.

Autora: Daiana Tanan da Silva é acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, servidora do Ministério Público do Estado da Bahia e associada do IBDFAM. E-mail: daianatanan@yahoo.com.br