Notícias

03 de Março de 2010

Artigo - Efeitos patrimoniais da separação de fato - Por Fernanda Paes Leme Peyneau Rito

I. INTRODUÇÃO:

A separação de fato é, indubitavelmente, uma realidade na sociedade brasileira contemporânea. A pesquisa de registro civil, realizada pelo IBGE[1] nos anos de 2006 e 2007, de forma indireta e relativa, aponta que apenas nesses dois anos em análise, pelo menos, meio milhão de brasileiros formavam o conjunto de separados de fato.

Explica-se: a informação sobre o quantitativo de casais separados de fato é indireta, porque não há a pergunta "é separado de fato?", tampouco há esta opção como uma das respostas as perguntas formuladas. Assim, a referida pesquisa informa o quantitativo de casais separados de fato que procuraram o judiciário (ou a via extrajudicial) a fim de formalizarem o fim dos seus matrimônios. Por este mesmo motivo diz-se que a informação é relativa, mais precisamente, ao total de pessoas que buscaram as vias próprias para por termo aos deveres conjugais, via separação judicial ou extrajudicial, ou para dissolver a sociedade conjugal, através do divórcio.

A aparente incompletude da pesquisa reflete, em verdade, o vácuo legal para o tratamento daqueles que, apesar de formalmente casados, não comungam mais dos mesmos planos de vida, havendo já sido desfeita a affectio maritalis.

Separado de fato, como a expressão bem indica, qualifica uma situação informal, fática que, ainda que mencionada em alguns dispositivos jurídicos, não foi regulamentada pelo ordenamento. Conseqüentemente, separado de fato não é um estado civil e, não sendo, não é objeto da pesquisa do IBGE e, por isso, tem-se notícia apenas daqueles que buscaram formalizar esta situação, como já mencionado.
Apesar das observações tecidas sobre a base de dados do IBGE, especialmente no que tange ao seu caráter relativo, a mesma é de fundamental importância para denunciar uma situação que carece de um tratamento jurídico adequado. A saber, 40% das separações judiciais não consensuais em 2006 tiveram por natureza e fundamento da ação a separação de fato, tendo este percentual crescido em 3 pontos no ano de 2007 (ver Tabela 1 abaixo).

Tabela 1 - Separações judiciais concedidas em 1ª instância, por natureza e fundamento da ação.

20062007
Consensual7734676%6676473%
Não-consensual2422224%2496027%
- separação de fato970540%1070643%
-conduta desonrosa / grave1426559%1418457%
- grave doença mental630%700%
Total101820100%91743100%



Além disso, como pode ser observado na Tabela 2, 70% (69% para o ano de 2007) do total dos divórcios concedidos em 1ª instância no ano de 2006, foram na modalidade direto que, nos termos do parágrafo 2º do artigo 1580 do Código Civil de 2002, requer, pelo menos, 2 anos de separação de fato.

Por fim, ainda que não se saiba exatamente o contingente populacional que vivencie a situação de separação de fato, os dados do IBGE apontam que, pelo menos, meio milhão de brasileiros terminaram uma situação de separação de fato nos anos de 2006 e 2007. Ressalta-se que esse quantitativo representa tão somente o somatório das ações de separação judicial fundamentada na separação de fato e de divórcio direto concedidos em 1ª instância, multiplicado por dois por motivos que dispensam maiores explicações. Destaca-se que não foi considerada a presença de filhos, embora estes possam também ter seus interesses diretamente afetados pela informalidade da separação de fato, assim como não foram consideradas as separações e os divórcios concedidos em segunda instância.

Tabela 2 - Divórcios concedidos em 1ª instância, por tipo e natureza.

20062007
Divórcio Direto11368070%10470269%
- consensual7795169%6747964%
- não consensual3555331%3709235%
Divórcio Indireto4850430%4756031%
- consensual3060863%2791259%
- não consensual1780137%1955741%
Total de divórcios162 244100%152291100%



Atenta a realidade sinteticamente apresentada acima, o presente estudo tem por fim analisar alguns dos possíveis efeitos patrimoniais da separação de fato. Por certo que não se tem a pretensão de esgotar o assunto, mas tão somente, a de apontar algumas situações de âmbito patrimonial controvertidas, decorrentes da não regulamentação da separação de fato. Assim, o presente artigo encontra-se dividido em 8 seções, incluindo esta breve introdução, assim como as referências bibliográficas, apresentadas ao final. Na seção II trata-se em termos teóricos, da separação de fato, enfatizando os seus requisitos e características. Não seção III são apresentados os pressupostos teóricos segundo os quais será desenvolvida a análise do tema central. As seções IV a VI apresentam algumas implicações da falta de regulamentação da separação de fato em situações selecionadas. E, por fim, na seção VII, à guisa de conclusão, são tecidas as considerações finais.

II. SEPARAÇÃO DE FATO:

Separado de fato, como já mencionado na introdução, não constitui um estado civil, ao contrário, permite a coexistência muitas vezes conturbada, do estado civil de casado, com a realidade fática da separação. Entretanto, o fato de a aquisição (ou alteração) do estado pessoal civil decorrer em regra de ato público, não obsta que se reconheça a posse de estado, enquanto elemento hábil a sanar os defeitos do título do estado. O recurso à posse de estado tem sido cada vez mais utilizado no âmbito das relações familiares em relação à filiação sócio-afetiva (posse do estado de filho) e à união entre um homem e uma mulher com intuito de constituição de família (união estável).

Nesse contexto, PERLINGIERI[2] enuncia que o estado de cônjuge pode ser deduzido essencialmente do fato de duas pessoas terem vivido como marido e mulher, embora outros requisitos sejam necessários. A posse de estado de cônjuge é traduzida no ordenamento brasileiro pela relação companheiril estabelecida entre um homem e uma mulher, dotada de certas características que a qualificam como união estável, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar (Art. 226, §3º, CF/88). Contrario sensu, pode-se vislumbrar a posse de estado de separado. No entanto, a relação fática e informal de constituição de entidade familiar é reconhecida e regulamentada pelo ordenamento jurídico, sendo os seus efeitos explicitados pela norma, enquanto que em relação à separação de fato isto não se verifica.

Consigna-se que a separação de fato, após a Constituição de 1988, deixou de ser tão somente um requisito autorizador da separação judicial e do divórcio direto, sem contar que recebeu tratamento, ainda que indireto, da norma infraconstitucional em diversas passagens[3]. Assim, o que se constata é que o legislador ainda não disciplinou devidamente a matéria, deixando um grande espaço para a construção doutrinária e jurisprudencial.

Nesse sentido, resta a configuração da posse de estado de separado, assim como a sistematização dos efeitos desta situação, à medida que, da mesma forma que não são reconhecidos todos os efeitos do casamento à união estável, também não se pode pretender que todos os efeitos da separação, judicial ou extrajudicial, sejam reconhecidos na separação de fato.

Em relação à primeira questão, ou seja, a configuração da posse de estado de separado, a doutrina já caminhou bastante na direção da sua caracterização, de tal sorte que será adotada a sistematização já desenvolvida por GAMA[4].

II.1. CONFIGURAÇÃO, CARACTERÍSTICAS E REQUISITOS DA SEPARAÇÃO DE FATO

Com base no referencial teórico citado, a configuração da separação de fato ou do estado de separado pressupõe o preenchimento de cinco características, além de alguns requisitos objetivos e subjetivos.
As características configuradoras da separação de fato são: i) o objetivo de dissolução da sociedade conjugal, entendido como o fim do projeto familiar com o desfazimento da comunhão plena de vida; ii) a instabilidade, ou melhor dizendo, a estabilidade da instabilidade, observada quando a união mostra-se apta a ser dissolvida durante o transcurso de, pelo menos, 1 ano (Art. 1572, §1º, CC - separação-falência); iii) a continuidade do propósito de desfazimento da vida em comum (ausência de reconciliação), materializado pela não convivência; iv) a notoriedade da separação do casal, no sentido de a mesma ser de conhecimento do grupo social no qual estão inseridos; e, a ausência de formalismo, que significa "inexistência de qualquer medida judicial relacionada diretamente à dissolução da sociedade conjugal, sequer em sede cautelar (separação de corpos)"[5].

Os requisitos objetivos para a configuração da separação de fato são, a rigor, aqueles exigidos para a separação formal, judicial ou extrajudicial, e a posterior conversão da mesma em divórcio, ou seja, são aqueles que ensejam a dissolução da sociedade conjugal.

Neste sentido, o primeiro requisito objetivo é um casamento válido, apesar de ser possível o reconhecimento da separação de fato em relação aos casamentos nulos e anuláveis antes da sentença de nulidade ou de anulação, desde que finda a coabitação e presentes as demais características, a fim, por exemplo, de afastar a presunção de paternidade. Diante de um casamento inexistente, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo, ou celebrado sem o consentimento de pelo menos uma das partes ou por quem não tivesse competência para tal, não há que se falar em separação de fato.

A superveniente falta de comunhão de vida é o segundo requisito objetivo, à medida que a família funcionalizada se justifica e identifica pela comunhão plena de vida e pelo afeto em um ambiente democrático, ou seja, uma vez substituída a idéia de família-instituição pela de família-instrumento, a comunhão de vida torna-se requisito fundamental. A falta de comunhão de vida é caracterizada pela ausência de comunhão física (débito conjugal); financeira (dever de contribuição decorrente do regime primário patrimonial das relações familiares durante a fase fisiológica da família); e, pela ausência de comunhão espacial, consistente na residência no mesmo teto, sendo que esta última pode ser relativizada. Ou seja, a residência comum não impede a configuração da separação de fato, desde que a causa dessa coincidência esteja dissociada de um projeto conjugal. Por fim, o artigo 1573 do Código Civil enumera alguns motivos que podem ensejar a impossibilidade da comunhão de vida.

O lapso temporal de separação fática constitui também um dos requisitos objetivos para a separação de fato, no sentido do que já foi exposto de evidenciar a continuidade da instabilidade da relação, denotando que a mesma está apta a ser dissolvida. Importante destacar que a separação não pode ter por causa um justo motivo (quarto requisito objetivo), como uma internação hospitalar, afastamento do lar em decorrência de guerra ou de obrigações profissionais, por exemplo. Sobre o requisito em comento cabe a observação de que a separação pode ter inicialmente como causa um justo motivo, mas, pode se prolongar a permitir a presença de todos os demais requisitos e configurar a separação de fato[6], ou seja, pode também ser relativizada. Por fim, pode-se ainda remeter ao requisito consistente na ausência de óbice à dissolução da sociedade conjugal, conhecido como cláusula de dureza, previsto no artigo 6º da Lei 6.515, de 1.977 e não repetido no atual Código Civil.

III. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA O TRATAMENTO DOS EFEITOS PATRIMONIAIS DA SEPARAÇÃO DE FATO

No ordenamento jurídico brasileiro não há regra específica regulando as situações decorrentes da separação de fato. Assim, o primeiro desafio que surge diz respeito à unidade da família durante este momento. Esclarece-se que a unidade é aqui entendida como a igualdade substancial entre os cônjuges[7]. Assim, o pano de fundo de todo o estudo que se apresenta é a preocupação na delimitação do papel extramatrimonial da unidade da família, especialmente, enquanto "instrumento para a atuação do respeito, pleno e integral, da personalidade dos cônjuges e da prole"[8] na fase patológica da relação.

A idéia central de unidade da família impõe o reconhecimento de que o conjunto das relações conformadoras da comunidade familiar subsiste, em maior ou menor grau, ao próprio casamento. Esta observação é de fundamental importância para a análise das situações patrimoniais durante a separação de fato, especialmente quando se reconhece a existência de um regime primário fundamental e inderrogável das relações patrimoniais familiares, apto a atribuir obrigações de assistência e de colaboração entre os membros da comunidade familiar[9].

O regime primário das relações patrimoniais familiares identifica-se com o dever de contribuição atribuído a cada um dos membros da comunidade familiar, e exercido em função da família. No ordenamento pátrio está expresso no artigo 1566 do Código Civil, fundamentado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.

Esse dever de contribuição não deve ser analisado em relação à sua estrutura, não identificando-se, portanto, com um dever de manutenção recíproca. Mas sim, em razão da sua função, consistente na provisão das necessidades da família através da contribuição dos seus membros em consonância com as capacidades de cada um.

PERLINGIERI[10] afirma que o regime primário das relações patrimoniais familiares é inderrogável e dotado de ultra-atividade, subsistindo nas fases patológicas das relações familiares, assim como nas separações e nos divórcios. Acredita-se que este regime fundamente, dentre outros, o dever de mútua assistência transladado no dever de alimentos quando da separação e/ou divórcio e, principalmente, deva orientar a administração dos bens quando da separação formal ou de fato.

A partir dos pressupostos teóricos expostos e, tendo em vista a inexistência de regramento jurídico próprio acerca dos efeitos decorrentes da separação de fato, serão analisadas algumas situações controvertidas decorrentes deste estado, utilizando-se sempre que couberem os efeitos patrimoniais da separação formal - judicial ou extrajudicial - como paradigma. Não se pretende esgotar o assunto, que será tratado em termos exemplificativos, tão pouco solucionar as questões. Ao contrário, o objetivo é apontar situações conflitantes, ou seja, enumerar problemas.

IV. SEPARAÇÃO DE FATO E REGIME DE BENS

Dentre as conseqüências necessárias do casamento, há o regime de bens, ou seja, o regramento patrimonial que irá vigorar na constância do matrimônio, seja em relação aos cônjuges, seja em relação a estes e a terceiros.

O regime de bens consiste no "conjunto de regras que tutelam os interesses patrimoniais da sociedade conjugal, regulando as relações patrimoniais entre os cônjuges, e entre os terceiros e a sociedade conjugal"[11].

Independentemente de qual seja o regime de bens, legal ou convencional, perdurará enquanto vigorar o casamento, extinguindo-se com a sociedade conjugal que, nos termos do artigo 1571 do Código Civil se dará por morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial ou pelo divórcio.

Entretanto, salvo na hipótese de morte de um dos cônjuges, muitas vezes ocorre o fim da comunhão de vida sem que a sociedade conjugal esteja dissolvida, ou mesmo formalmente desfeita. Nestes casos, "como ficarão os bens adquiridos individualmente pelos separados de fato? Aplica-se a eles o regime de bens adotado por ocasião do casamento? Haverá partilha igualitária de tais bens se vigorava o regime da comunhão?"[12].

Em razão dos pressupostos da unidade da família, do regime primário das relações patrimoniais familiares e da função social da família, o princípio segundo o qual o regime de bens termina com a dissolução da sociedade conjugal, radicado no artigo 1576 do Código Civil não pode ser interpretado literalmente. O pressuposto da unidade da família é corroborado pelo método empírico: as relações, inclusive as patrimoniais subsistem ao casamento, sendo imprescindível que nesta fase seja mantida a igualdade substancial e não meramente formal dos cônjuges, em seus direitos e deveres decorrentes da relação conjugal finda.

Conseqüentemente, o segundo pressuposto impõe correição na administração dos bens que deve ser pautada no dever de contribuição. Assim, os bens adquiridos na constância real do casamento devem ser partilhados em observância ao regime de bens adotado e, os bens adquiridos durante a separação de fato, por não decorrerem do esforço comum, uma vez cessado o dever de contribuição, devem ser resguardados em sua integralidade a quem os adquiriu.

Já o pressuposto da função social da família, embora indique a mesma solução, o faz sob o fundamento do papel da família constitucionalizada que adquire uma nova concepção, a de família-instrumento, serviente ao desenvolvimento de seus membros. Sob esse fundamento, GAMA[13] (2008, pg. 172) afirma que: "caso tenha ocorrido a separação de fato dos cônjuges, não há mais, na contemporaneidade, como admitir a comunicação de bens ou a participação nos ganhos obtidos na época em que já cessou a convivência do casal".

Por fim, argumento comumente utilizado em defesa da incomunicabilidade dos bens adquiridos durante a separação de fato, muito provavelmente por ser um dos princípios mais importantes na dogmática civilista tradicional, é o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, positivado, sob a forma de cláusula geral, no artigo 884 do novo Código Civil brasileiro[14].

Em que pese o princípio da vedação do enriquecimento sem causa expressar a ótica patrimonialista do Direito Civil, não se pode olvidar que se adéqua a situação familiar em contento, apesar de considerar-se que os pressupostos da unidade familiar, do regime primário patrimonial das relações familiares e, sobretudo, o da função social da família, sejam suficientes.

Nessa linha de argumentação, o enriquecimento sem causa seria uma fonte genérica de obrigações[15], configurada a partir do preenchimento de três requisitos: i) existência de um enriquecimento; ii) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; e, iii) ausência de causa justificativa para o enriquecimento. A construção com fulcro no princípio da vedação do enriquecimento sem causa deriva do entendimento de que se um dos consortes não contribuiu para o incremento patrimonial, haja vista o anterior desfazimento da comunhão de vida e, este bem vier a ser com ele partilhado, haverá um enriquecimento que, por não decorrer (nem mesmo indiretamente) de esforço seu, será à custa de outrem. Por fim, se não havia mais a comunhão plena de vida e, não tendo o cônjuge beneficiado empenhado esforços para o incremento patrimonial, inexistirá justificativa para tal enriquecimento.

Algumas soluções para o problema dos bens adquiridos durante a separação de fato já foram propostas pela doutrina a partir de uma leitura e aplicação sistêmica do ordenamento.

OLIVEIRA[16] recorre ao art. 8º da Lei 6515/77, que dispõe sobre o efeito retroativo para fins de partilha e segregação patrimonial da decisão que tiver concedido a separação cautelar ou da sentença que julgar a separação, aduzindo que:

"Pela mesma razão ontológica que inspirou esse dispositivo, possível afirmar que refogem à partilha os bens adquiridos individualmente por este ou aquele cônjuge, sem mútua colaboração, após longo tempo de separação de fato do casal, mesmo sem prévia medida cautelar".

A idéia nuclear de que os bens adquiridos na constância do casamento pertencem a ambos os cônjuges (casados em regime comunitário) repousa na presunção de colaboração entre os consortes na formação do acervo, sendo esta presunção afastada quando da cessação da convivência, seja ela por medida cautelar de separação de corpos, por separação judicial ou por separação de fato. Em trabalho mais recente retoma a discussão, afirmando:

"Diante da separação de fato, cada um passando a agir isoladamente na prática do esforço para aumento do patrimônio, não faz sentido, a não ser por puro rigor formal, exigir partilha dos bens dos separados de fato, especialmente quando já tenham constituído novas uniões"[17].

GAMA[18] propõe que o artigo 1683 do Código Civil[19], que disciplina o regime da participação final nos aquestos, seja interpretado como uma disposição geral e, assim, aplicável a todos os regimes de bens.
"Cabe, pois, à doutrina e à jurisprudência interpretar que a regra constante do art. 1683 do Código Civil, na realidade, é uma disposição geral, aplicável, portanto, a todos os regimes de bens, e não apenas ao regime de participação final nos aquestos, sob pena de violação aos princípios e postulados constitucionais, além de ser clara hipótese de descumprimento do princípio que veda o enriquecimento sem causa. A regra deve, pois, ser aplicada aos regimes de comunhão (parcial e universal), não se podendo mais cogitar do ingresso dos bens adquiridos, no período de separação de fato, à massa dos bens comuns do casal"

FARIAS E ROSENVALD[20] defendem a incomunicabilidade de bens após a separação de fato com base no permissivo legal de constituição de união estável durante a separação de fato (Art. 1723, §1º, CC), vigorando no caso o regime da comunhão parcial de bens (Art. 1725, CC). Entendem que, se a separação de fato não ensejar o fim do regime de bens do matrimônio, haverá a possibilidade de dois regimes coexistindo e, assim a dupla comunicabilidade de bens. Neste sentido, lecionam:

"É sempre oportuno lembrar que o estado de comunhão universal somente perdura enquanto o casal estiver convivendo e, via de conseqüência, houver colaboração recíproca. Cessada a ajuda mútua pela separação de fato, não mais se comunicam os bens adquiridos individualmente, bem como não se dividem as obrigações assumidas por cada um. (...). Ademais, o art. 1.723, § 1º, do próprio Código Civil, reconheceu a possibilidade de constituição de união estável entre pessoas ainda casadas, porém separadas de fato. Em acréscimo, o art. 1.725 mandou aplicar as regras da comunhão parcial nas uniões estáveis. Diante desse quadro, considerando que o separado de fato já pode estar em união estável, inclusive comunicando os bens adquiridos onerosamente, somente se pode concluir que a simples separação de fato é suficiente para cessar a comunhão de bens".

O STJ tangenciou esta questão em um julgado de agosto de 2001, no qual a controvérsia versava exatamente sobre a possibilidade ou não de uma mulher separada de fato participar da meação do patrimônio constituído em uma união estável, durante o período de separação fática. Em primeira instância foi reconhecida a sociedade de fato e determinada a partilha dos bens adquiridos. O Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença, sob o argumento da incompatibilidade de duplo regime de bens, à medida que a autora era casada e meeira do marido, tendo adquirido no período de separação fática e união estável parte ideal de um apartamento com o marido, logo, não poderia pleitear também a meação dos bens adquiridos também durante o período de convivência na união estável.

A Terceira Turma do STJ, sem enfrentar a questão suscitada acerca da duplicidade de regimes, conheceu por unanimidade do recurso, nos termos da ementa:

Ementa. União estável. Partilha de bens. Mulher separada de fato. Precedentes da Corte.

1. Provada a separação de fato e a longa e estável união, cabível é que a mulher partilhe os bens adquiridos durante a convivência, não impedindo tal pretensão a circunstância de não ter havido a separação judicial.

2. Recurso especial conhecido e provido.
(STJ. Resp N° 202.278 - SP, Rel. Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 17/05/2001).

Recentemente o STJ se posicionou sobre outra questão controvertida, envolvendo a comunicabilidade de bens herdados por um dos cônjuges durante a separação de fato. A lide envolvia um casal formalmente unido sob o regime da comunhão universal de bens, e já separado de fato há mais de 6 anos, período no qual o marido constitui, inclusive nova união estável. A esposa pleiteava a meação dos bens herdados pelo marido. Foi reconhecida a incomunicabilidade deste acervo, sendo evocado para tal o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa. Além disso, foi suscitada a incompatibilidade de manutenção de dois regimes de bens, face ao permissivo legal do artigo 1725 do Código Civil sobre a constituição de união estável por pessoa separada de fato, como depreende-se da ementa abaixo trasncrita:

EMENTA: Direito civil. Família. Sucessão. Comunhão universal de bens. Inclusão da esposa de herdeiro, nos autos de inventário, na defesa de sua meação. Sucessão aberta quando havia separação de fato. Impossibilidade de comunicação dos bens adquiridos após a ruptura da vida conjugal. Recurso especial provido.

1. Em regra, o recurso especial originário de decisão interlocutória proferida em inventário não pode ficar retido nos autos, uma vez que o procedimento se encerra sem que haja, propriamente, decisão final de mérito, o que impossibilitaria a reiteração futura das razões recursais.

2. Não faz jus à meação dos bens havidos pelo marido na qualidade de herdeiro do irmão, o cônjuge que encontrava-se separado de fato quando transmitida a herança.

3. Tal fato ocasionaria enriquecimento sem causa, porquanto o patrimônio foi adquirido individualmente, sem qualquer colaboração do cônjuge.

4. A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil, que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725)

5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal.

Assine nossa newsletter