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23 de Março de 2011

Jurisprudência STJ - Civil - Recurso especial - União homoafetiva - Sociedade de fato - Partilha - Patrimônio amealhado por esforço comum - Prova

EMENTA

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. UNIÃO HOMOAFETIVA. SOCIEDADE DE FATO. PARTILHA. PATRIMÔNIO AMEALHADO POR ESFORÇO COMUM. PROVA. 1. Esta Corte Superior, sob a ótica do direito das obrigações (art. 1.363 do CC/1916) e da evolução jurisprudencial consolidada na Súmula n.º 380/STF, firmou entendimento, por ocasião do julgamento do REsp n.º 148.897/MG, no sentido da possibilidade de ser reconhecida sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, exigindo, para tanto, a demonstração do esforço comum para aquisição do patrimônio a ser partilhado. 2. A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes da dita sociedade. 3. "A aplicação dos efeitos patrimoniais advindos do reconhecimento de união estável a situação jurídica dessemelhante, viola texto expresso de lei, máxime quando os pedidos formulados limitaram-se ao reconhecimento e dissolução de sociedade de fato" (REsp n.º 773.136/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU de 13/11/2006). 4. Recurso especial provido. (STJ - REsp nº 633.713 - RS - 3ª Turma - Rel. Min. Vasco Della Giustina - DJ 02.02.2011)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti.

Brasília, 16 de dezembro de 2010 (Data do Julgamento).
Ministro Vasco Della Giustina (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) - Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) (Relator): Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Carta Maior, no intuito de ver reformado acórdão prolatado pelo Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de ter o mesmo malferido os arts. 1.363 do Código Civil de 1916, 2.º, inciso III, da Lei n.º 8.971/94, 1.º da Lei n.º 9.278/96 e 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, bem como por restar configurado dissídio pretoriano acerca da questão versada nos autos.

Noticiam os autos que I L M, ora recorrido, em 05 de março de 1996, ajuizou "ação ordinária de reconhecimento de sociedade de fato com partilha de bens" em face do espólio de V D, objetivando, em síntese, ver declarada "a existência de sociedade de fato decorrente de união estável entre o Requerente e o 'de cujus' (...)" (fl. 24), com o reconhecimento de seus direitos sobre a totalidade da herança deste. Em sua exordial, teceu o autor da demanda considerações que, a seu sentir, demonstrariam a existência de relação homoafetiva entre ele e o falecido, V D, configurando, assim, verdadeira espécie de união estável, situação que teria sido levada a termo apenas com o óbito deste.

O d. Juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido formulado pelo autor da demanda, reconhecendo a sociedade de fato havida entre o autor e V D, "para o fim de que sejam os bens de V D devidos ao sobrevivente, I L M" (fl. 516).

Em face do julgado, o espólio de V D, representado por sua curadora especial, interpôs recurso de apelação, arguindo, preliminarmente, ser o autor carecedor de ação, ante a impossibilidade jurídica do pedido formulado decorrente da inteligência do art. 226, §3.º, da Constituição Federal. No mérito, aduziu o apelante que seria relação patrão-empregado aquela havida entre o autor e o falecido e, que, eventual envolvimento sexual entre ambos, não seria suficiente para configurar sequer a existência de sociedade de fato. Afirmou, ainda, não subsistir a pretensão patrimonial do autor da demanda, na medida em que não teria este contribuído para a formação do patrimônio do finado.

A Oitava Câmara Cível do Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pela maioria de votos dos seus integrantes, deu provimento ao apelo, em aresto que restou assim ementado:

"APELAÇÃO. RELACIONAMENTO HOMOSSEXUAL. INEXISTÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL. IMPOSSIBILIDADE DO SOBREVIVENTE SE BENEFICIAR DA HERANÇA DO FALECIDO NOS TERMOS DO ART. 2.º, INCISO III, DA LEI 8.971/94.

O RELACIONAMENTO HOMOSSEXUAL DE DOIS HOMENS NÃO SE CONSTITUI EM UNIÃO ESTÁVEL PARA OS EFEITOS DO §3.º, DO ARTIGO 226, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEIS 8.971/94 E 9.278/96. A UNIÃO ESTÁVEL PARA SER RECONHECIDA COMO ENTIDADE FAMILIAR EXIGE A CONVIVÊNCIA DURADOURA, PÚBLICA E CONTÍNUA DE UM HOMEM E UMA MULHER, ESTABELECIDA COM OBJETIVO DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA, INCLUSIVE COM A POSSIBILIDADE DE SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO. AS OUTRAS ESPÉCIES DE UNIÕES INFORMAIS, QUE NÃO SE ENCAIXEM NA NOÇÃO DE COMPANHEIRISMO, INCLUSIVE ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO, ESTÃO ABRANGIDAS PELA SÚMULA 380, DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL." (fl. 753)

Irresignado, interpôs o autor da demanda recurso de embargos infringentes, a que o 4.ª Grupo de Câmaras Cíveis daquela Corte Estadual, terminou por acolher, novamente em julgamento majoritário. O aresto na ocasião exarado recebeu a seguinte ementa:

"UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA.

Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança.

A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada.

Embargos infringentes acolhidos, por maioria." (fl. 831)

Irresignado com o teor do v. Acórdão prolatado, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL interpôs o recurso especial que ora se apresenta, aduzindo, em síntese, que, "o decisum, ao definir, por analogia, a união homossexual como união estável, interpretando ampliativamente o disposto no art. 226, §3.º, da Constituição Federal, regulamentado pelas Leis n.º 8.971/94 e n.º 9.278/96, acabou por negar vigência ao artigo 1.363 do Código Civil de 1916 e contrariar o artigo 2.º, inciso III, da Lei n.º 8.971/94, art. 1.º da Lei n.º 9.278/96 e artigo 4.º da LICC" (fl. 941). Aponta, ainda, a existência de dissídio jurisprudencial entre o aresto impugnado e precedente desta Corte Superior, que teria esposado entendimento de que caracterizada a sociedade de fato, decorrente de união homossexual, "o parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum".

Pugna, assim, o recorrente, pelo provimento de seu especial para que, reformado o julgado hostilizado, se defina apenas como sociedade de fato a união homossexual havida na hipótese vertente, estabelecendo-se, posteriormente, os efeitos patrimoniais daí advindos.

O ora recorrido apresentou suas contrarrazões ao apelo nobre (fls. 978/992), pugnando pela inadmissão ou não provimento do mesmo.

Na origem, em exame de prelibação, recebeu o recurso crivo positivo de admissibilidade, ascendendo, assim, a esta Corte Superior.

O Ministério Público Federal emitiu parecer opinando pelo não conhecimento do recurso, por entender proscrita a esta Corte Superior a análise de dispositivo constitucional (art. 226, §3.º) em sede de recurso especial.

É o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) (Relator): Assiste razão ao recorrente.

Consoante se infere dos autos, a Corte de origem, quando do julgamento de embargos infringentes, terminou por conferir, por meio de aplicação analógica à hipótese em apreço, reconhecimento de "união estável" à relação homoafetiva havida entre o falecido V D e o autor da demanda I L M, ora recorrido, aplicando, por conseguinte, os efeitos patrimoniais daí decorrentes, notadamente aqueles relativos à partilha do patrimônio deixado por V D
Ante a inexistência, in casu, de herdeiros necessários do falecido, coube, assim, ao autor, a integralidade do patrimônio acumulado em vida por V D, restando dispensado o mesmo de comprovar terem sido, os bens em disputa, obtidos durante a união, como fruto do esforço comum dos supostos "companheiros", haja vista o sabido fato de referida prova ser presumida quando se trata de união estável regida pelas Leis n.ºs 8.971/94 e 9.278/96 e, atualmente regulada nos arts. 1.723 a 1.727 do Código Civil vigente.
Cinge-se, assim, a controvérsia, a saber se, ao admitir, a Corte a quo, a aplicação analógica das normas que regem a União Estável (união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família) à relação havida entre dois homens que, ao sentir daquele órgão julgador colegiado, guardaria com ela as mesmas peculiaridades, se estaria afrontando a inteligência dos arts. 1.363 do Código Civil de 1916, 2.º, inciso III, da Lei n.º 8.971/94, 1.º da Lei n.º 9.278/96 e 4.º da LICC, bem como a interpretação dada por esta Corte Superior no julgamento de demandas semelhantes.

Pugna, assim, o Ministério Público Estadual, ora recorrente, que se defina apenas como sociedade de fato a união homossexual supostamente havida na hipótese vertente. É exatamente neste particular que, como dito, tenho por merecedora de acolhida a tese sustentada pelo recorrente.

Isto porque, esta Corte Superior, sob a ótica do direito das obrigações (art. 1.363 do CC/16) e da evolução jurisprudencial consolidada na Súmula 380 do STF, firmou entendimento, por ocasião do julgamento do REsp 148.897/MG, de relatoria do e. Min. Ruy Rosado de Aguiar, no sentido da possibilidade de ser reconhecida sociedade de fato havida entre pessoas do mesmo sexo, exigindo, para tanto, a demonstração do esforço comum para aquisição do patrimônio a ser partilhado. A repartição dos bens, sob tal premissa, deve acontecer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada um dos integrantes de dita sociedade. Confira-se a ementa do referido julgado:

"SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM.
O PARCEIRO TEM O DIREITO DE RECEBER A METADE DO PATRIMONIO ADQUIRIDO PELO ESFORÇO COMUM, RECONHECIDA A EXISTENCIA DE SOCIEDADE DE FATO COM OS REQUISITOS NO ART. 1363 DO C. CIVIL.

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ASSISTENCIA AO DOENTE COM AIDS. IMPROCEDENCIA DA PRETENSÃO DE RECEBER DO PAI DO PARCEIRO QUE MORREU COM AIDS A INDENIZAÇÃO PELO DANO MORAL DE TER SUPORTADO SOZINHO OS ENCARGOS QUE RESULTARAM DA DOENÇA. DANO QUE RESULTOU DA OPÇÃO DE VIDA ASSUMIDA PELO AUTOR E NÃO DA OMISSÃO DO PARENTE, FALTANDO O NEXO DE CAUSALIDADE. ART. 159 DO C. CIVIL.
AÇÃO POSSESSORIA JULGADA IMPROCEDENTE. DEMAIS QUESTÕES PREJUDICADAS.

RECURSO CONHECIDO EM PARTE E PROVIDO." (REsp 148897/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 10/02/1998, DJ 06/04/1998, p. 132)
Em julgado mais recente, a Eg. 3.ª Turma desta Corte Superior, emprestou à demanda idêntica a que ora se afigura a mesma solução encontrada pela 4.ª Turma desta Corte superior quando do julgamento do feito supra mencionado, destacando que "a aplicação dos efeitos patrimoniais advindos do reconhecimento de união estável a situação jurídica dessemelhante, viola texto expresso em lei, máxime quando os pedidos formulados limitaram-se ao reconhecimento e dissolução de sociedade de fato". Referido aresto, da lavra da e. Min. Nancy Andrighi, então relatora do feito, recebeu a seguinte ementa:

"Direito civil. Ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo. Efeitos patrimoniais. Necessidade de comprovação do esforço comum.

- Sob a ótica do direito das obrigações, para que haja partilha de bens adquiridos durante a constância de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, é necessária a prova do esforço comum, porque inaplicável à referida relação os efeitos jurídicos, principalmente os patrimoniais, com os contornos tais como traçados no art. 1º da Lei n.º 9.278/96.

- A aplicação dos efeitos patrimoniais advindos do reconhecimento de união estável a situação jurídica dessemelhante, viola texto expresso em lei, máxime quando os pedidos formulados limitaram-se ao reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, com a proibição de alienação dos bens arrolados no inventário da falecida, nada aduzindo a respeito de união estável.

Recurso especial conhecido e provido." (REsp 773136/RJ, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2006, DJ 13/11/2006, p. 259)

Também nesta esteira, faz-se oportuna a colação, à guisa de exemplo, dos seguintes precedentes oriundos desta Corte Superior:
"RECURSO ESPECIAL. RELACIONAMENTO MANTIDO ENTRE HOMOSSEXUAIS. SOCIEDADE DE FATO. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE. PARTILHA DE BENS. PROVA. ESFORÇO COMUM.
Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo configura sociedade de fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado.

Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido." (REsp 648763/RS, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 07/12/2006, DJ 16/04/2007, p. 204)

"DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO. COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. EXISTÊNCIA DE FILHO DE UMA DAS PARTES. GUARDA E RESPONSABILIDADE. IRRELEVÂNCIA.

1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações.

2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares.

3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados - arts. 1º e 9º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família.

4. Recurso especial não conhecido.
(REsp 502995/RN, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 26/04/2005, DJ 16/05/2005, p. 353)

Destarte, sendo certo que a situação do autor da demanda e de seu suposto companheiro falecido, quando muito, configuraria constituição de sociedade de fato, não se lhe podendo, assim, estender os efeitos decorrentes da União Estável e, resultando evidente dos autos que, sob esta ótica, não foi a demanda apreciada pela Corte de origem no tocante à comprovação de esforço comum na formação do patrimônio supostamente amealhado por ambos, impõe-se o retorno dos autos àquela Corte.

Ante o exposto, cumprindo a função uniformizadora desta Corte Superior, DOU PROVIMENTO ao presente recurso especial, para definir apenas como sociedade de fato a união homossexual havida na hipótese vertente e determinar, por conseguinte, o retorno dos autos à Corte de origem, para escorreita apreciação da prova, no que pertine ao esforço comum empregado pelo autor da demanda na formação do patrimônio amealhado pelo falecido.

É como voto.

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