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03 de Fevereiro de 2005
Artigo - "O Poder Judiciário e os serviços notariais e registrais"
Criados como exigência da sociedade para a segurança jurídica, principalmente para publicidade de fatos e situações jurídicas relevantes, os serviços notariais e registrais vêm passando por transformações ao longo da existência do país como nação e, agora, sob a égide da Constituição Federal de 1.988, intensos são os debates sobre os novos rumos, principalmente em relação à sua autonomia e independência.
Para uma reflexão responsável, não há como dispensar uma rápida passada d´olhos sobre seu passado, quando a existência dos serviços ou as nomeações dos respectivos titulares eram da alçada exclusiva do Presidente da República, passando, depois, a se constituir em serviços auxiliares do Poder Judiciário e a nível estadual, tanto assim que até o final da década de setenta, do século XX, no interior do Estado de São Paulo, o custeio e o funcionamento dos Ofícios Judiciais eram de responsabilidade dos titulares dos serviços extrajudiciais, ou seja, o Registro de Imóveis cuidava do Ofício de Menores e do Júri, os Tabelionatos dos Ofícios Judiciais e o Registro Civil do distribuidor, partidor e avaliador. Com a oficialização dos Ofícios Judiciais, a sua estrutura passou a ser de alçada exclusiva e direta do Estado, situação que perdura até hoje.
A decisão, acertada em sua essência, trouxe inegavelmente mudanças radicais na estrutura dos serviços, deixando de lado a consideração do extrajudicial como mero auxiliar do Judiciário, mas trazendo à cena debates interessantes, dentre outros, a nomeação dos titulares apenas mediante concurso público de provas e títulos; a criação, desmembramento e extinção dos cartórios; a contratação de auxiliares, sua elevação para o cargo de escrevente, a nomeação de então denominado Oficial Maior, hoje Substituto, após apreciação pelo Juiz, elaborando ele, em sendo o caso, provas de aptidão e conhecimento. O vínculo, como se vê, era de submissão e de existência ostensiva de hierarquia.
A Constituição Federal de 1. 988 trouxe um novo alento a esse segmento especializado e, pela primeira vez, consignou expressa referência aos notários e aos oficiais de registro, dispondo seu artigo 236 que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público". Sua anotação, não no capítulo do Poder Judiciário, mas nas disposições constitucionais gerais, gerou as interpretações as mais diversas, principalmente com auxílio das disposições da Lei n. º 8.935, de 18/11/1. 994, dando ênfase aos aspectos de independência funcional e de vinculação apenas à lei. Chegou-se a ponto até mesmo de sustentar que a fiscalização deveria se limitar apenas aos aspectos técnicos dos serviços prestados e, mais recentemente, restou idealizada a criação de órgão nos moldes da Ordem dos Advogados do Brasil para controle do exercício da atividade de notários e de registradores.
Há, em muitas passagens na vida cotidiana, visíveis e previsíveis conflitos e que decorrem do exercício do poder de fiscalização, nem sempre enfrentados com a serenidade e o equilíbrio desejados. Aliás, não poderia ser diferente nas relações entre fiscalizador e fiscalizado, principalmente na análise das infrações, onde pode haver exacerbação de parte a parte. Agora, porém, existe novo ingrediente no universo das serventias extrajudiciais. A Emenda Constitucional n. º 45, de 08 de dezembro de 2. 004, publicada no dia 31 do mesmo mês, que efetivou a denominada "Reforma do Judiciário", criou o Conselho Nacional de Justiça para exercer o controle externo do Judiciário e no artigo 103-B, § 4. º, estabelece que "compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: ... III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa".
Uma questão que, desde logo, surge ao intérprete, após leitura do inciso III, do § 4. º, do artigo 103-B, da Constituição Federal, é a análise da expressa referência aos serviços notariais e de registro como submetidos ao Conselho Nacional de Justiça.
Seria ela apenas para controle dos atos de fiscalização exercidos pelo Poder Judiciário, tendo como destinatários apenas os Juízes Corregedores Permanentes e os Desembargadores Corregedores Gerais de Justiça? A redação do dispositivo não prestigia tal assertiva, eis que as reclamações não se voltam tão somente aos "membros ou órgãos do Poder Judiciário", mas também "contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados", ou seja, o controle será exercido de forma ampla, tanto em relação aos magistrados como também em relação aos titulares das delegações. É evidente que estes não se encartam no conceito de auxiliares da Justiça (escrivão, oficial de justiça, perito, depositário, administrador, intérprete, etc.), e o próprio texto legal, ao lado dos serviços auxiliares, diz serventias, referindo-se naturalmente aos ofícios judiciais, e a órgãos prestadores de serviços notariais e de registro.
Enquadrou-os, de conformidade com o artigo 103-B, § 5. º, quando se refere às atribuições do Ministro-Corregedor do Conselho Nacional de Justiça, como prestadores de serviços judiciários, não como operadores do direito voltados para a correta composição dos conflitos, mas como profissionais que atuam necessariamente na prevenção de litígios, na outorga de paz jurídica e de segurança jurídica aos atos a eles confiados. Seus atos não ostentam natureza jurisdicional, mas administrativa, o que justifica enquadramento no conceito de serviços judiciários e vinculados ao Poder Judiciário.
Sem a integração desses conceitos não há fundamento jurídico para inclusão dos serviços extrajudiciais na área de atuação do Conselho Nacional de Justiça a quem compete, dentre outros, o controle da atuação administrativa do Poder Judiciário. Não se limita apenas à sua organização interna, mas a órgãos e serviços outros a ele ligados por laços fundamentais.
O legislador fez a opção e aos destinatários da norma cabe aceitá-la, competindo aos intérpretes a árdua tarefa de extrair as conclusões necessárias a partir da convicção de que os serviços notariais e registrais integram o Poder Judiciário, não como órgãos e dentre os quais se insere o Conselho Nacional de Justiça (art. 92 da Constituição Federal), mas como serviços judiciários vinculados ao Poder Judiciário.
Autor: Kioitsi Chicuta é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Fonte: Arpen Brasil
Para uma reflexão responsável, não há como dispensar uma rápida passada d´olhos sobre seu passado, quando a existência dos serviços ou as nomeações dos respectivos titulares eram da alçada exclusiva do Presidente da República, passando, depois, a se constituir em serviços auxiliares do Poder Judiciário e a nível estadual, tanto assim que até o final da década de setenta, do século XX, no interior do Estado de São Paulo, o custeio e o funcionamento dos Ofícios Judiciais eram de responsabilidade dos titulares dos serviços extrajudiciais, ou seja, o Registro de Imóveis cuidava do Ofício de Menores e do Júri, os Tabelionatos dos Ofícios Judiciais e o Registro Civil do distribuidor, partidor e avaliador. Com a oficialização dos Ofícios Judiciais, a sua estrutura passou a ser de alçada exclusiva e direta do Estado, situação que perdura até hoje.
A decisão, acertada em sua essência, trouxe inegavelmente mudanças radicais na estrutura dos serviços, deixando de lado a consideração do extrajudicial como mero auxiliar do Judiciário, mas trazendo à cena debates interessantes, dentre outros, a nomeação dos titulares apenas mediante concurso público de provas e títulos; a criação, desmembramento e extinção dos cartórios; a contratação de auxiliares, sua elevação para o cargo de escrevente, a nomeação de então denominado Oficial Maior, hoje Substituto, após apreciação pelo Juiz, elaborando ele, em sendo o caso, provas de aptidão e conhecimento. O vínculo, como se vê, era de submissão e de existência ostensiva de hierarquia.
A Constituição Federal de 1. 988 trouxe um novo alento a esse segmento especializado e, pela primeira vez, consignou expressa referência aos notários e aos oficiais de registro, dispondo seu artigo 236 que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público". Sua anotação, não no capítulo do Poder Judiciário, mas nas disposições constitucionais gerais, gerou as interpretações as mais diversas, principalmente com auxílio das disposições da Lei n. º 8.935, de 18/11/1. 994, dando ênfase aos aspectos de independência funcional e de vinculação apenas à lei. Chegou-se a ponto até mesmo de sustentar que a fiscalização deveria se limitar apenas aos aspectos técnicos dos serviços prestados e, mais recentemente, restou idealizada a criação de órgão nos moldes da Ordem dos Advogados do Brasil para controle do exercício da atividade de notários e de registradores.
Há, em muitas passagens na vida cotidiana, visíveis e previsíveis conflitos e que decorrem do exercício do poder de fiscalização, nem sempre enfrentados com a serenidade e o equilíbrio desejados. Aliás, não poderia ser diferente nas relações entre fiscalizador e fiscalizado, principalmente na análise das infrações, onde pode haver exacerbação de parte a parte. Agora, porém, existe novo ingrediente no universo das serventias extrajudiciais. A Emenda Constitucional n. º 45, de 08 de dezembro de 2. 004, publicada no dia 31 do mesmo mês, que efetivou a denominada "Reforma do Judiciário", criou o Conselho Nacional de Justiça para exercer o controle externo do Judiciário e no artigo 103-B, § 4. º, estabelece que "compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: ... III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa".
Uma questão que, desde logo, surge ao intérprete, após leitura do inciso III, do § 4. º, do artigo 103-B, da Constituição Federal, é a análise da expressa referência aos serviços notariais e de registro como submetidos ao Conselho Nacional de Justiça.
Seria ela apenas para controle dos atos de fiscalização exercidos pelo Poder Judiciário, tendo como destinatários apenas os Juízes Corregedores Permanentes e os Desembargadores Corregedores Gerais de Justiça? A redação do dispositivo não prestigia tal assertiva, eis que as reclamações não se voltam tão somente aos "membros ou órgãos do Poder Judiciário", mas também "contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados", ou seja, o controle será exercido de forma ampla, tanto em relação aos magistrados como também em relação aos titulares das delegações. É evidente que estes não se encartam no conceito de auxiliares da Justiça (escrivão, oficial de justiça, perito, depositário, administrador, intérprete, etc.), e o próprio texto legal, ao lado dos serviços auxiliares, diz serventias, referindo-se naturalmente aos ofícios judiciais, e a órgãos prestadores de serviços notariais e de registro.
Enquadrou-os, de conformidade com o artigo 103-B, § 5. º, quando se refere às atribuições do Ministro-Corregedor do Conselho Nacional de Justiça, como prestadores de serviços judiciários, não como operadores do direito voltados para a correta composição dos conflitos, mas como profissionais que atuam necessariamente na prevenção de litígios, na outorga de paz jurídica e de segurança jurídica aos atos a eles confiados. Seus atos não ostentam natureza jurisdicional, mas administrativa, o que justifica enquadramento no conceito de serviços judiciários e vinculados ao Poder Judiciário.
Sem a integração desses conceitos não há fundamento jurídico para inclusão dos serviços extrajudiciais na área de atuação do Conselho Nacional de Justiça a quem compete, dentre outros, o controle da atuação administrativa do Poder Judiciário. Não se limita apenas à sua organização interna, mas a órgãos e serviços outros a ele ligados por laços fundamentais.
O legislador fez a opção e aos destinatários da norma cabe aceitá-la, competindo aos intérpretes a árdua tarefa de extrair as conclusões necessárias a partir da convicção de que os serviços notariais e registrais integram o Poder Judiciário, não como órgãos e dentre os quais se insere o Conselho Nacional de Justiça (art. 92 da Constituição Federal), mas como serviços judiciários vinculados ao Poder Judiciário.
Autor: Kioitsi Chicuta é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Fonte: Arpen Brasil