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22 de Setembro de 2005

Artigo - Santo Agostinho e sua concubina - Por José Carlos Teixeira Giorgis

Se um homem vive com uma mulher durante algum tempo, mas somente até encontrar outra que valha mais a pena em termos de posição social ou privilégios, comete adultério em seu coração, não contra aquela que ele buscava, mas contra quem ele vive, embora não sejam casados.

Quando começo alguma palestra sobre a união estável, sempre indago da platéia se imagina quem é o autor do trecho epigrafado, e colho a perplexidade dos ouvintes quando revelo que pertence a Santo Agostinho, que viveu durante 15 anos em concubinato com uma mulher e "somente com ela, já que fui fiel à sua cama", como narra em sua obra mais conhecida.

Agostinho nasceu em 13.11.354, no povoado africano de Tagaste, na Numídia romana, hoje território argelino, filho de Patrício, pagão e Mônica, cristã, pertencentes a uma classe média baixa. Tendo a mãe como pedagoga, estuda numa escola primária de sua cidade natal, e gosta mais de jogar que ler ou escrever.

O ensino médio ocorre na vila vizinha de Madaura, onde aprecia o latim, assimilando com perfeição a gramática, a sintaxe e a prosódia, deliciando-se com os versos de Virgílio.

Aos 16 anos, não podendo continuar os estudos por falta de recursos, sua ociosidade é abalada por uma puberdade de lascívia, interrompida pela generosidade de Romaniano, um mecenas que favorece sua educação em Cartago, cidade cosmopolita, onde se dedica à retórica, ali na companhia de Mônica, a mãe a quem diz tudo dever e que o converterá ao cristianismo.

Avizinhando-se dos 18 anos, com o coração incendiado pela paixão ardente por Una, passa a com ela viver maritalmente, o que se prolonga por catorze anos, nascendo o filho Adeodato, ou "Dado por Deus", pois o pai não queria tê-lo.

Retornando à cidade natal com a companheira e o filho, Agostinho inicia seu invulgar magistério, em escola particular, mas retorna para Cartago, aonde, por seu brilho pessoal vai para Roma lecionar Arte Retórica, logo sendo aprovado em concurso de provas para a Cátedra Imperial de Retórica de Milão, aos 30 anos.

Antes da conversão, Agostinho conhece as delícias do triunfo intelectual no exercício da cátedra Imperial de Retórica e Artes Liberais na metrópole milanesa; como visto, antes pertencera à baixa burguesia africana, seus pais eram de condições modestas, mas o exercício do magistério o eleva a dignitário do império romano, passando a pertencer à elite culta e a um dos mais altos estratos sociais.

A ascensão social tem um doloroso custo, pois só poderá casar com mulher da mesma hierarquia, o que vai ferir sua relação concubinária de tantos anos.

É que a parceira com quem possui filho natural, embora desfrute do estado de liberdade e cidadania e não seja escrava, tem impedimento jurídico para o casamento, em vista da desigualdade de ordens, níveis e classes: assim, é proibido aos varões com dignidade mais alta, contrair matrimônio com mulheres de dignidade inferior, consoante as prescrições das leis Júlia e Papia.

Na Roma clássica o conturbérnio, o concubinato e o matrimônio constituíam as três formas de uniões livres entre homem e mulher e que repercutiram na estrutura vigente no direito privado moderno.

O conturbérnio era a união estável de leito entre escravos ou entre um homem livre ou cidadão e uma escrava, e cujos filhos não era tidos como pessoas ou sujeitos jurídicos, mas como coisas, já que o servo não tinha qualquer direito.

O concubinato é o compartilhamento habitual de leito entre homem e mulher livres não
vinculados pelo casamento. A concubina é a companheira de cama (cum, companheira; cubare, leito), e os filhos nascidos desta união chamam-se naturais, com gozo limitado de direitos, sendo esta a situação de Adeodato.

O matrimônio era a união estável de tálamo (leito) entre homem e mulher livres, consagrada na lei, que era celebrado entre os romanos com o simbolismo do véu nupcial, tira rubra brilhante, colocada sobre os ombros dos nubentes para significar a vontade permanente de ajuda e serviços mútuos, e que substituiu anteriores correias ou tiras de couro (daí cônjuge, palavra composta por cum+ jungere, ou seja, unir com uma atadura ou jugo, conjugium ou casamento).

O matrimônio também era chamado de conubium (conúbio), significando velar-se ou cobrir-se com um véu (cum+ nubere). A mulher casada chamava-se nupta e sua festa de boda nuptiae (núpcias).

E retirada do meu lado, chora Agostinho, por ser impedimento ao matrimônio, àquela com quem eu compartilhava habitualmente o leito, meu coração amputada dessa parte a que estava unido, me ficara como uma chaga e jorrava sangue. Ela, em contrapartida, uma vez de volta à África, fez-te voto, Senhor, de não conhecer outro homem, deixando comigo o filho natural que eu com ela tivera (Confissões.,6, 15,25).

Em sua ânsia interior, segue os ensinamentos dos maniqueus, homens de grande fama e inteligência, que pregam a separação entre bem e mal, entre a luz e trevas, a pureza do espírito e a maldade da matéria, que torna o homem irresponsável suprimindo seu livre arbítrio.

Logo descobre as Cartas de São Paulo, a que chega depois da leitura dos platônicos e sob o influxo materno abraça o cristianismo; permanece em Milão, renuncia à cátedra, sendo batizado em 24 de abril de 386 pelo bispo Ambrósio, e após a morte de sua mãe regressa à África.

O filho Adeodato morre ainda moço. Seu sacerdócio o consagra como bispo de Hipona, falecendo aos setenta e seis anos em 28 de agosto de 430, como um dos maiores Doutores da Igreja, embora o concubinato que enriquecera sua vida.

José Carlos Teixeira Giorgis é desembargador aposentado (TJRS) e professor das Escolas da Magistratura e do Ministério Público

(*) E.mail: jgiorgis@terra.com.br

Obras consultadas: Santo Agostinho, de Garry Wills, Ed.Objetiva, Rio, 1999; Santo Agostinho e sua concubina de juventude, de Gabriel Del Estal, Ed.Paulus, São Paulo, 1999.

Fonte: Espaço Vital

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