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Artigo - Gratuidade sem lei: Um atalho perigoso no sistema notarial e registral
Por Fabiana Aurich e Carolina Romano
Brocco
Por que ainda se discute a gratuidade dos
atos notariais e registrais?
A discussão sobre a concessão de gratuidades dos
serviços notariais e registrais é recorrente na rotina dos serviços
extrajudiciais. Pedidos são feitos diretamente nos balcões das serventias e,
quando não há previsão normativa, são negados. Assim, muitas vezes, desaguam no
Poder Judiciário para análise e decisão.
E por que são negados? A gratuidade perpassa,
necessariamente, pela análise da natureza jurídica dos emolumentos. A doutrina
majoritária1 e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal2 e do
Superior Tribunal de Justiça3 reconhecem que tais valores possuem natureza
tributária, mais precisamente de taxa, haja vista que decorrem do exercício do
poder de polícia e da prestação de serviços públicos específicos e divisíveis,
prestados ou postos à disposição do usuário.
Tratando-se de espécie tributária, a dispensa de seu
pagamento consiste em isenção, a qual exige lei em sentido estrito para sua
concessão de modo que a concessão de gratuidades por provimentos das
Corregedorias nacional ou locais ou, ainda, por decisão judicial, afrontam o
artigo 150, §6º da Constituição Federal de 1988.
Emolumentos não são "preço", sim
tributo.
Nos termos do artigo 145, II, da Constituição da
República, as taxas podem ser instituídas em razão do exercício do poder de
polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico
e divisível.
É justamente aí que se enquadram os emolumentos
cartorários, possuindo estes
[...] natureza tributária, qualificando-se como taxas
remuneratórias de serviços públicos, e por isso sujeitam-se, quer no que
concerne à sua instituição e majoração, quer no que se refere à sua
exigibilidade, ao regime jurídico constitucional pertinente a essa modalidade
de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam,
dentre outras, as garantias da reserva de competência impositiva, da
legalidade, da isonomia e da anterioridade4.
O Supremo Tribunal Federal reafirmou esse entendimento
em vários julgamentos5, deixando claro que os emolumentos têm caráter de taxa,
afastando qualquer interpretação que os qualificasse como preço público ou
tarifa.
Como espécies tributárias que são, a sua definição
geral decorre dos artigos 236, §1º, CF, bem como da Lei Federal 10.169/2000,
que fixa as regras gerais. Ato contínuo, cada Estado da federação possui a
competência para editar lei estadual que institui a tabela de custas e
emolumentos, a qual deve observar parâmetros de razoabilidade e
proporcionalidade, de modo a assegurar que o custo do serviço não exceda o
valor necessário à sua adequada remuneração e manutenção.
Normas das Corregedorias nacional e local podem
complementar e regulamentar a cobrança de emolumentos mas, jamais, criar,
majorar ou isentar o pagamento dos emolumentos, ante os preceitos
constitucionais que regem a matéria tributária. A atuação administrativa é
meramente executória, cabendo ao legislador a definição material dos
emolumentos.
A atualização monetária, entretanto, pode ser
realizada anualmente, mediante índice oficial de correção estabelecido na lei
de emolumentos local, não se tratando de aumento real e sim preservação do
poder aquisitivo do valor cobrado.
Nos casos em que não há previsão legislativa expressa,
qualquer reajuste feito por ato normativo infralegal será considerado
inconstitucional, por violar o princípio da reserva legal tributária e o art.
150, I, da Constituição Federal.
Por que a gratuidade precisa de lei?
Sendo os emolumentos tributos, a concessão de
gratuidade consiste em isenção tributária, logo não podem ser feitas por ato
infralegal, provimento ou mesmo decisão judicial isolada.
Afinal, a Constituição Federal, em seu artigo 150, §
6º, é expressa em estabelecer que isenções só podem ser instituídas mediante
lei específica emanada do Poder Legislativo.
Nesse ínterim, qualquer tentativa de se instituir
gratuidade fora do processo legislativo viola frontalmente os princípios da
legalidade tributária (art. 150, I, CF) e da reserva legal.
Os limites da atuação tributária do
Conselho Nacional de Justiça e das Corregedorias
Sabe-se que o Conselho Nacional de Justiça e as
Corregedorias locais possuem competência normativa para regulamentar a
atividade notarial e registral. Entretanto, não detêm poder de criar ou majorar
emolumentos e nem conceder gratuidades ou ampliar hipóteses de isenção de
emolumentos.
A edição de provimentos ou resoluções que concedam
gratuidade de serviços sem respaldo legal extrapola a competência destes órgãos
e constitui inconstitucionalidade por afronta ao artigo 150, §6º da
Constituição Federal de 1988.
Reforça esta afirmação o disposto no artigo 504 do
Provimento nº. 149 do Conselho Nacional de Justiça que, ao tratar do
reconhecimento de paternidade, diz de forma clara que deve-se respeitar as
gratuidades previstas em lei. Para tanto, prevê o artigo 102, §6º da Lei nº.
8069 a isenção de emolumentos para os reconhecimentos de paternidade. A técnica
normativa, neste caso, foi constitucional, pois assegurou previsão antes
definida pelo legislador.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo prevê a
gratuidade dos registros de óbito e nascimento e respectivas primeiras vias,
independente de se tratar de hipossuficiente. A Lei nº. 6015 prevê a gratuidade
das segundas vias das certidões do registro civil de pessoas naturais para os
hipossuficientes.
Vê-se, assim, que o sistema exige a edição de lei
formal para a concessão de gratuidade e assim procede nas situações em que
entende necessário isentar o pagamento de emolumentos.
Logo, somente após um processo legislativo amplo é que
são veiculadas isenções tributárias, o que também atende ao princípio da
isonomia, com a fixação de elementos de equidade para as concessões dos
benefícios.
Nessa linha, discute-se muito a concessão de
gratuidade para os pedidos de alteração de nome e nome e gênero de
hipossuficientes, o que não pode ocorrer, justamente porque não há previsão
legal para a concessão de isenção nestes casos. Desta forma. as decisões
judiciais ou os provimentos neste sentido ressoam ilegais e inconstitucionais.
O que está em jogo: segurança jurídica e
sustentabilidade.
A concessão indevida de gratuidade por provimentos ou
decisões judiciais compromete o equilíbrio do sistema de custeio da atividade
notarial e registral e ameaça a própria sustentabilidade do serviço público
delegado.
Os serviços extrajudiciais são prestados por delegação
do Estado e financiados exclusivamente por emolumentos pagos diretamente pelo
usuário do serviço. Essa metodologia garante justiça distributiva: quem utiliza
o serviço arca com seu custo, sem transferi-lo à coletividade.
Em que pese se tratar de delegação de serviço público,
o modelo se assemelha ao das concessionárias de rodovia, em que paga o pedágio
quem trafega pela via, e ninguém cogita isentar o motorista do pagamento.
Assim, qualquer alteração na política de custeio deve
ser objeto de deliberação legislativa, com respeito à previsão orçamentária e à
responsabilidade fiscal (art. 113 do ADCT e Lei Complementar nº 101/2000).
Caso o Estado deseje ampliar hipóteses de gratuidade,
deverá fazê-lo mediante repasses ou compensações financeiras. Afinal, a
atividade notarial e registral é exercida em caráter privado, por delegação do
poder público a pessoas físicas. Assim, não se pode impor ao delegatário o ônus
de custear políticas públicas, de responsabilidade do Estado, cabendo a este
planejar e financiar medidas de inclusão social.
Conclusão: boa intenção não basta
Garantir acesso à cidadania é um valor constitucional,
mas não se alcança justiça violando a legalidade. A gratuidade de emolumentos
só pode ser instituída por lei em sentido estrito, respeitando os princípios da
legalidade, da reserva legal e da responsabilidade fiscal. O respeito à forma
é, nesse caso, o próprio conteúdo da segurança jurídica.
1 A discussão é objeto do capítulo 3 da obra
Responsabilidade tributária de notários e de registradores, de Norton Luís
Benites. --1. ed. --São Paulo : Almedina, 2021
2 Nesse sentido, ADI 1378. MC, Relator(a): Min.
CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1995, DJ 30-05-1997 PP-23175
EMENT VOL-01871-02 PP-00225
3 Nesse sentido RECURSO ESPECIAL Nº 1.187.464 -
RS
4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos -
Teoria e Prática. 12ª Ed. Ver e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023. P.
106.
5 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
REQUERIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR. REGISTROS PÚBLICOS. LEI N. 3.929/2013, DO
AMAZONAS, PELA QUAL CRIADO O FUNDO DE APOIO AO REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS
NATURAIS DO ESTADO DO AMAZONAS - FARPAM. ALEGADA OFENSA AO INC. XXV DO ART. 22,
INC. I DO ART. 154, ART. 155 E INC. IV DO ART. 167 DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. AUSENTE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR
SOBRE REGISTROS PÚBLICOS. RECURSOS QUE COMPÕEM O FUNDO EM EXAME: NATUREZA
JURÍDICA DE TAXA. VALIDADE DA DESTINAÇÃO DESSES RECURSOS A FUNDO ESPECIAL.
PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Nas normas impugnadas não se
altera a disciplina relativa à validade, à forma, ao conteúdo ou à eficácia dos
atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e de registro no
Amazonas. 2. A remuneração pela prática dos serviços notariais e de registro
decorre do pagamento de emolumentos, fixados por normas estaduais ou
distritais, considerada natureza pública e o caráter social dos serviços
prestados, conforme § 2º do art. 236 da Constituição da República e arts. 1º e
2º da Lei federal n. 10.169/2006. 3. O selo eletrônico de fiscalização e os
emolumentos previstos pelos incs. I e II do art. 2° da Lei estadual n.
3.929/2013 configuram-se como taxa, espécie tributária prevista no inc. II do
artigo 145, da Constituição da República. 4. São constitucionais as normas
estaduais pelas quais preveem a destinação de parcela dos emolumentos recebidos
pelos notários e registradores a fundos especiais do Poder Judiciário.
Precedentes. 5. É constitucional a Lei n. 3.929/2013, do Amazonas, pela qual
criado o Fundo de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado do
Amazonas - FARPAM, supervisionado e fiscalizado pela Corregedoria-Geral do
Tribunal de Justiça do Amazonas. 6. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada improcedente.
(ADI 5672, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno,
julgado em 21-06-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128 DIVULG
29-06-2021 PUBLIC 30-06-2021).
Fonte: Migalhas