Notícias
Artigo - O Direito achado na máquina
Por Sérgio Jacomino
No artigo anterior, traçamos uma linha de desenvolvimento
das especialidades dos ofícios da fé pública no curso da história, mostrando
como escrivães, tabeliães e registradores firmaram-se como órgãos
especializados, cada qual com suas atribuições bem definidas e demarcadas.
Vimos também como as transformações tecnológicas e normativas vêm de esboroar
os lindes definidores dessas especialidades, promovendo uma nova concentração
de atribuições e funções, com efeitos diretos na arquitetura tradicional da titulação
pública no Brasil.
De "volta para o futuro", experimentamos a
reconformação das especialidades, embora em outros termos. A digitalização dos
meios não apenas condiciona os conteúdos - como na boutade de McLuhan -, mas
põe em xeque os próprios fundamentos da titulação sob a perspectiva jurídica
tradicional. Bits substituem formulários; extratos espiritualizam os títulos,
agentes de IA (agentic AI) progressivamente absorvem atribuições do escrivão,
do notário, do registrador; e os títulos - outrora celebrados e cercados de
ritos cerimoniais e reconhecidos como verdadeiros pelo próprio Estado - agora
podem nascer diretamente das máquinas, sem qualquer intermediação dos ofícios
da fé pública.
Para onde caminha o nobile officium registral, da
escrivania e da notaria?
A ressureição da pública-forma
Voltando às cartas de sentença notariais, as NSCGJSP-II
dispõem o seguinte em seu Cap. XIV, no item 218, que, a critério do
interessado, "as cartas de sentença poderão ser formadas em meio físico ou
eletrônico, aplicando-se as regras relativas à materialização e
desmaterialização de documentos pelo serviço notarial".
As expressões contidas na norma paulista representam uma
figura de linguagem, eis que a "desmaterialização" (digitalização) e
"materialização" (impressão/reprodução/"papelização") nada
mais são do que processos de transporte e fixação da informação em um dado
suporte material - seja ele magnético, óptico, cartáceo etc. Trata-se do
fenômeno de transmigração intermediática, como veremos abaixo, mas note-se: um
documento "materializado" não o torna um original para todos os
efeitos legais. Será sempre uma mera cópia, à exceção de um original tirado de
um original, que é a reprodução dos documentos eletrônicos assinados
digitalmente com assinaturas qualificadas.
O que nos chama a atenção é que a operação de
transubstanciação midiática de documentos públicos e privados
(materialização/desmaterialização) nada mais seria do que a revivificação da
conhecida figura da pública-forma, ora ressurrecta, depois de abandonada pelo
Direito brasileiro há várias décadas. Aqui se dá o ressurgimento de uma antiga
figura do tabelionado medieval, repaginada para desafiar as novas demandas do
admirável mundo novo dos meios digitais.
Voltarei ao tema da pública-forma digital em outro artigo.
Noto, de passagem, que admitir-se a registro um título
"desmaterializado/materializado" será o mesmo que franquear o acesso
de meras cópias reprográficas (mesmo quando autenticadas pelo tabelião) como
título inscritível, o que sempre se obviou no âmbito dos registros
imobiliários.
Simulacros titulares
Estamos prestes a admitir simulacros de títulos no processo
registral. A realidade jurídica (um título com origem, materialidade, portando
presunções de legalidade e autenticidade) pode ser suprimida e substituída por
sua emulação funcional (bits, IA, algoritimização de processos e registros
dirigidos por dados (data-driven), um "duplo" que descortina um novo
direito.
Os espelhos e a cópula são abomináveis, disse um dos
heresiarcas de Uqbar: eles "multiplicam o número dos homens". Os
novos sistemas multiplicam as imagens arredias à sua densidade material e
autêntica, substituindo a realidade jurídica por espelhos multifacetados.
A modernidade é disruptiva. No contexto cultural em que
essas ideias vicejam, abundam metáforas para qualificar a revolução em curso.
Steven Pinker assegura-nos que "a revolução digital, ao substituir átomos
por bits, está desmaterializando o mundo bem diante de nossos olhos". Para
ele, a tecnologia digital "desmaterializa" o mundo. Ele parece
sugerir que os bits representariam os tijolos fundamentais do edifício de um
admirável mundo novo da hiper-realidade, como sugerido por Baudrillard. Nessa
visão atomista repaginada, nada existiria, exceto bits, exaurido o mundo de
tangibilidade concreta e substituído por representações.
Pinker reproduz o pensamento original de Nicholas
Negroponte, para quem a mudança de átomos para bits seria uma tendência
irreversível na sociedade - "não há como detê-la", dirá, com
indisfarçável otimismo. "A melhor maneira de avaliar os méritos e as
consequências da vida digital - diz ele - é refletir sobre a diferença entre
bits e átomos". Assim como os jornais, revistas, livros, títulos,
documentos, cartas de sentença, formais, certidões etc., que chegavam até nós
sob a forma de átomos (papeis, ofícios, correios etc.), na era da informação
nos chegarão por sequências de bits e bytes à velocidade da luz. As
palavras-chaves aqui são: descentralização e acesso remoto a instâncias
judiciais e extrajudiciais, instantaneidade, fiabilidade tecnológica (não jurídica)
- o que pode promover a redução de custos e tempos processuais. O público
"será mais bem servido por aqueles que souberem responder com maior
rapidez e imaginação no emprego dos bits."
Essa visão mostrou-se excessivamente otimista. É possível
cogitar que os meios digitais não apenas transformam os conteúdos, mas, no
limite, podem suprimir o real em sua substância tangível, substituindo-o por um
conjunto de signos funcionais, desvinculados de qualquer mediação dotada de
valor ético ou ancoragem institucional - como tradicionalmente se reconhecia no
papel do juiz, do escrivão e do notário.
Como a seu tempo sustentou João Mendes de Almeida Jr., os
órgãos oficiais "são subordinados somente à verdade e à realidade dos
fatos que eles próprios praticam, das declarações que tomam, dos fatos que se
passam na sua presença e assistência". E concluiu: "E esta posição é
uma garantia, não só para as partes, como também para os próprios Juízes".
No contexto dos títulos eletrônicos, formados sem o concurso dos órgãos da fé
pública, esvai-se a noção clássica de ato autêntico como fenômeno social,
jurídico e comunicativo que produz a prova dita autêntica e pré-constituída
(instrumentum), cercada de formalidades publicísticas e ritualísticas para
mobilizar a infraestrutura de garantia e segurança jurídica.
Clique aqui
para ler a íntegra da coluna.
Fonte: Migalhas