Notícias
Artigo - Presunção de paternidade decorrente da recusa de exame de DNA
Por Carlos
Eduardo Pianovski
Filhos
sem pai: tragédia social e omissão legislativa que fere a igualdade
constitucional
Uma a cada
15 crianças nascidas no Brasil a partir 1º de janeiro de 2024 não tem o nome do
pai no registro de nascimento. Entre 2016 e 2025, segundo o Portal da
Transparência do Registro Civil, foram nada menos de que um milhão e
quatrocentas mil crianças registradas sem pai [1].
Essa
tragédia social, que priva tantas crianças do acesso à filiação paterna, não
passou despercebida pela Comissão de Juristas que elaborou o projeto de reforma
do Código Civil (PL 4/2025).
Na
legislação hoje vigente, quando os pais são casados, a paternidade já é
registrada em nome do marido da mãe, mesmo que este não compareça ao registro
civil para reconhecer a prole. Trata-se da presunção de paternidade dos filhos
da mulher casada, regra tradicional em nosso direito (presunção pater
is est).
Todavia,
quando os pais não são casados, se o homem indicado pela mãe como suposto pai
não reconhecer voluntariamente o filho, no âmbito do procedimento de
averiguação oficiosa de paternidade (Lei nº 8.560/1992), restará à criança,
apenas, o caminho da ação de investigação de paternidade.
No curso
desse processo judicial, atualmente, se o suposto pai se recusar a realizar o
exame de DNA, o juiz aplicará presunção de paternidade, conforme as regras do
Código Civil (artigo 231 e 232) e a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça (Súmula 301/STJ), determinando que o nome do pai seja registrado no
assento de nascimento do filho.
Isso,
porém, somente ocorre após vários anos, sendo que, por vezes, o trânsito em
julgado da decisão, que permite o seu registro, é consumado quando o filho já
atingiu a maioridade.
Enquanto
isso, o filho fica privado da paternidade, sem receber, na maioria dos casos,
sequer os alimentos devidos pelo pai, impondo-se às mães, durante todo o tempo
do processo, a integralidade dos encargos do cuidado e do sustento. A regra
vigente prejudica crianças e mulheres, estimulando a conduta de pais ausentes.
Trata-se
de realidade que não afeta aos filhos matrimoniais, aos quais assiste a
presunção pater ist est.
Questiona-se,
assim, se o tratamento legal vigente não implicaria violação ao princípio da
igualdade entre os filhos, independentemente da origem, assegurado pelo
parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição.
Presunção pater
is est e igualdade entre os filhos
O sistema
vigente mantém a dualidade entre filhos matrimoniais e extramatrimoniais, em
resquício da odiosa distinção pretérita entre filhos legítimos e ilegítimos.
Aos filhos
matrimoniais, a lei assegura a filiação presuntiva, que enseja a determinação
de paternidade; aos filhos extramatrimoniais, não há presunção de direito
material a assistir, pelo que não existe estabelecimento de paternidade, mas,
apenas, o reconhecimento, seja voluntário ou forçado – neste último caso, por
meio da ação de investigação de paternidade.
A
persistência de dois sistemas (estabelecimento presuntivo e reconhecimento)
para filhos de origens distintas pode ser compreendida como perturbador desafio
à plena aplicação do disposto no artigo 227, parágrafo 6º da Constituição, que
assegura, peremptoriamente:
“Art.
227. (…)
§6º Os
filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação.”
Seria
possível cogitar se a plena igualdade de direitos entre filhos havidos no
casamento e os concebidos fora dele poderia ser atingida mediante eliminação da
presunção pater is est, universalizando-se a solução pautada no
reconhecimento (voluntário ou forçado), com a extinção do estabelecimento
presuntivo. Não se trataria, porém, de solução adequada à luz do melhor
interesse da criança.
A
paternidade presumida é mais vantajosa à prole do que o reconhecimento, pela
elementar razão de que independe de ato a ser praticado pelo pai, eis que
decorre do fato do casamento.
A
presunção de paternidade derivada do casamento é, como se sabe, de direito
material, não detendo natureza processual.
Se, no
passado, era natural supor a filiação matrimonial como atribuível ao marido da
mãe, na contemporaneidade, em que não mais persiste uma associação automática
entre procriação e casamento – diante das novas formas familiares –, essa
suposição já não é tão óbvia. Seja pela fluidez dos relacionamentos, seja pelo
reconhecimento de modalidade de família que não se assentam no casamento, não
mais se reveste a presunção pater is est do caráter intuitivo
que era sua marca no passado.
Mesmo
assim, a alternativa da supressão da presunção não parece adequada, pois
sujeitaria também os filhos matrimoniais ao sistema de reconhecimento de
paternidade – que, se não ocorrer de modo voluntário, demanda a propositura de
ação para o reconhecimento forçado, declarando-se em juízo a paternidade.
A melhor
solução, assim, parece ser oposta à supressão da presunção: trata-se de
estender aos filhos extramatrimoniais o sistema de estabelecimento presuntivo,
desde que por meio de critérios racionais, dotados de razoabilidade e
proporcionalidade. É o que faz o PL nº 4/2025.
PL nº
04/2025 e presunção de paternidade dos filhos extramatrimoniais
A solução proposta
no projeto de reforma do Código Civil consiste em facilitar a determinação da
paternidade perante o registro civil, independentemente de propositura de ação
visando à obtenção de reconhecimento forçado de paternidade.
Se
aprovada a nova proposta legislativa que tramita no Senado, o suposto pai,
indicado pela mãe, será pessoalmente notificado para, se quiser, reconhecer
voluntariamente a paternidade, ou, em caso de dúvida, realizar o exame de DNA.
Caso o
exame de DNA resulte positivo, o nome do pai passará a constar do registro do
filho. Entretanto, caso o suposto pai se recuse a realizar o exame de DNA, sua
paternidade será presumida já no cartório de registro civil.
Trata-se
do disposto no artigo 1.609-A da legislação projetada:
“Art. 1.609-A.
Promovido o registro de nascimento pela mãe e indicado o genitor do seu filho,
o oficial do Registro Civil deve notificá-lo pessoalmente para que faça o
registro da criança ou realize o exame de DNA.
§1º Em
caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como
de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no
registro, encaminhando a ele cópia da certidão.
§2º
Após encaminhará o expediente ao Ministério Público ou à Defensoria Pública
para propor ação de alimentos e a fixação do regime de convivência.
§3º Não
sendo localizado o indicado como genitor, o expediente deverá ser encaminhado
ao Ministério Público ou Defensoria Pública para a propositura da ação
declaratória de parentalidade, alimentos e regulamentação da convivência.”
Ao homem
que se recusou à realização do exame de DNA, a lei projetada assegura a
possibilidade de, mediante processo judicial, afastar a presunção de
paternidade decorrente de sua prévia recusa:
Art.
1.609-A. (…)
§4º A
qualquer tempo, o pai poderá buscar a exclusão do seu nome do registro,
mediante a prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo.
Não se
trata, cabe ressaltar, de inversão do ônus da prova. A inversão do ônus
probatório é técnica processual, que, como tal, pressupõe, por evidente, a
existência de processo.
Diversamente,
o que se institui por meio do PL é uma verdadeira presunção de direito
material, como uma nova hipótese de estabelecimento presuntivo de paternidade,
que se soma à presunção pater is est, mas se destina aos filhos
extramatrimoniais.
Ou seja:
tanto filhos matrimoniais quanto filhos extramatrimoniais passam a ser
protegidos por meio de modalidade presuntiva de estabelecimento de paternidade,
sem relegar os últimos à inexorabilidade da sujeição ao ato de reconhecimento.
Em termos
concretos, no sistema vigente, a recusa em realizar exame de DNA durante a fase
instrutória do processo instituído pela ação de investigação de paternidade
enseja presunção juris tantum de paternidade.
Com
efeito, hoje, sem a reforma do Código Civil, a paternidade de quem se recusa ao
exame de DNA já é presumida, no curso do processo, mas essa presunção somente
ocorre após muitos anos, em um processo judicial.
O projeto
de reforma do Código, a rigor, antecipa os efeitos dessa presunção decorrente
da recusa para uma fase extrajudicial, em cartório, permitindo que o filho
tenha, desde logo, a paternidade registral. A regra também beneficia a mãe, que
dividirá com o pai os encargos financeiros com o sustento do filho, uma vez que
poderá, desde logo, pleitear os alimentos devidos à criança.
Trata-se
do que se consagrou na jurisprudência do STJ por meio da Súmula 301, que tem o
seguinte teor:
“Súmula
301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de
DNA induz presunção juris tantum de paternidade.”
Essa
presunção já tem sua base no direito material. Não é, mesmo no processo, uma
inversão do ônus da prova. Trata-se de aplicar o disposto nos artigos 231 e 232
do Código Civil, na redação vigente, que dispõem:
“Art.
231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá
aproveitar-se de sua recusa.
Art.
232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se
pretendia obter com o exame.”
O projeto
de reforma do Código Civil antecipa, para uma fase extrajudicial, essa
presunção, que ocorreria no curso do processo.
Mais que
isso, oferece a ela verdadeira e inequívoca natureza de direito material, em
proveito da igualdade entre filhos matrimoniais e extramatrimoniais.
A nova
presunção é dotada de proporcionalidade e razoabilidade. Se a presunção pater
is est deriva do fato do casamento formal entre a mãe e o suposto pai,
a nova presunção proposta no PL nº 4/2025 deriva da recusa em realizar o exame
em DNA que permite conhecer, com alto grau de certeza, a origem genética de uma
criança.
Não se
trata de presumir, de antemão, como verdadeira a afirmação materna: trata-se de
extrair presunção da recusa do suposto pai em realizar exame que pouca
repercussão gera em sua esfera de direitos da personalidade, e que pode
ensejar, em contrapartida, relevantíssima repercussão tanto na determinação da
identidade pessoal do filho quanto na determinação de seus vínculos familiares,
no estabelecimento de seu status familiae.
A redução
da integridade física do suposto pai, quando da realização de exame em DNA, é
diminuta, beirando a insignificância. A repercussão em seu espaço de
privacidade, a seu turno, se justifica pela prevalência do interesse da criança
em ter acesso aos laços parentais, como integrante do direito à convivência
familiar, de modo coerente com a prioridade absoluta de seus direitos, que
deriva do caput do artigo 227 da Constituição:
“Art.
227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.”
De resto,
tal repercussão na privacidade já ocorre no âmbito de uma ação de investigação
de paternidade, no sistema vigente, pelo que o sistema de estabelecimento
presuntivo proposto pela Reforma do Código Civil pouco altera a intervenção já
existente na esfera de direitos da personalidade do suposto pai.
Espera-se,
pois, que o Congresso Nacional, com sensibilidade social, acolha essa relevante
proposta, que se harmoniza aos comandos constitucionais que asseguram a
primazia do melhor interesse de crianças e adolescentes e a plena igualdade
entre os filhos, independentemente da sua origem.
Fonte:
Conjur