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Artigo - Reforma do Código Civil e os impactos práticos no Direito Notarial e Registral
Por Gabriel de Sousa Pires
1. Introdução
O CC/02 caminha para sua primeira grande revisão
estrutural. O PL 4/25, de autoria do Senado Federal, nasceu do trabalho da
Comissão de Juristas instituída pelo presidente Rodrigo Pacheco e pretende
atualizar institutos que já se mostram anacrônicos frente às transformações
sociais, econômicas e tecnológicas das últimas duas décadas.
O movimento não é apenas de modernização
terminológica: busca-se redesenhar o equilíbrio entre autonomia privada, tutela
estatal e desjudicialização de atos da vida civil, com impactos diretos no
sistema notarial e registral. Contratos, mandatos, curatelas, testamentos e
registros de imóveis estão no epicentro dessa transformação.
2. Linhas centrais da reforma
Entre os eixos confirmados no PL 4/25, destacam-se:
Capacidade civil: Restringe a incapacidade absoluta a
menores de 16 anos e àqueles que por nenhum meio possam exprimir vontade. A
deficiência, por si só, não afeta a capacidade.
Regimes de bens: Permite alteração extrajudicial do
regime no tabelionato de notas e admite cláusulas condicionais, como as
chamadas sunset clauses, que modificam o regime automaticamente após certo
tempo.
Diretiva antecipada de curatela: Cria o instituto,
possibilitando a designação prévia de curador por escritura pública, em caso de
futura incapacidade.
Contratos e sucessões: Abre espaço para pactos com
disposições sucessórias e renúncias condicionadas à herança futura.
Testamentos: Discute-se a flexibilização das
formalidades do testamento particular, sem supressão definitiva das exigências
de testemunhas, mas com tendência de redução da burocracia.
3. Contratos e mandatos
A previsão de pactos sucessórios e renúncias
condicionadas exigirá que os tabelionatos de notas desenvolvam novos modelos de
escrituras, com cautela redobrada na formulação de cláusulas de eficácia
diferida.
Nos mandatos, a ampliação da capacidade relativa e a
facilitação da emancipação impõem ao notário uma função mais ativa de
qualificação subjetiva: aferir se o outorgante dispõe de capacidade suficiente
para os poderes conferidos. O risco de nulidade por vício de capacidade exigirá
escrituras mais bem fundamentadas.
4. Tutela, curatela e diretiva antecipada
A Diretiva Antecipada de Curatela é inovação de
relevo. Permitirá que qualquer pessoa, em plena capacidade, indique previamente
seu futuro curador. Isso desloca para o notário uma atribuição hoje quase
exclusiva do Judiciário: organizar a sucessão da curatela.
O registro civil terá de criar mecanismos de averbação
para dar publicidade a essas diretivas, garantindo que sejam oponíveis a
terceiros. A proposta dialoga com a jurisprudência do STJ, que já vem
restringindo hipóteses de incapacidade absoluta e exigindo proporcionalidade na
curatela (REsp 1.927.423/SP).
5. Testamentos e sucessões
O PL sinaliza maior harmonia entre os Livros de
Família e Sucessões, evitando conflitos normativos sobre regimes de bens e
sucessão legítima.
Dois reflexos práticos para o notariado:
Ampliação da autonomia sucessória, com pactos e
renúncias em vida exigindo escritura pública.
Revisão das formalidades do testamento particular,
tema em debate pela doutrina (Flávio Tartuce, entre outros). Ainda não há texto
definitivo, mas a tendência é reduzir entraves formais sem comprometer a
segurança.
A jurisprudência reforça esse caminho: a 4ª turma do
STJ manteve testamento cerrado de 2005, afirmando que a capacidade deve ser
aferida no momento da lavratura (REsp 2.032.458/RS). Isso dá lastro à ideia de
flexibilização formal.
6. Registro de imóveis
O impacto sobre o registro imobiliário é sensível:
Alterações de regime de bens implicarão averbações
automáticas, aumentando a carga de serviço.
Pactos com cláusulas resolutivas ou condicionais
obrigarão o registrador a lidar com títulos de eficácia futura ou suspensa,
exigindo novos protocolos de qualificação.
A jurisprudência do STJ (REsp 1.855.689/DF) reafirmou
que a renúncia hereditária é irrevogável, indivisível e retroage à abertura da
sucessão, alcançando bens descobertos posteriormente. Esse entendimento deverá
orientar os registros sucessórios, especialmente quando houver bens ocultos ou
supervenientes.
7. Desafios práticos
A reforma abre oportunidades, mas também cria
gargalos:
Capacitação técnica de notários e registradores para
novos institutos.
Uniformização nacional de procedimentos, sob
coordenação do CNJ.
Custo tecnológico para digitalizar e interoperar bases
de dados.
Risco de exclusão digital em regiões carentes, onde a
população depende da via física.
O sistema notarial e registral terá de responder com
eficiência e segurança, sob pena de abrir espaço para litigiosidade.
8. Conclusão
A reforma do CC não é apenas uma atualização de
linguagem. É um reposicionamento do papel do notário e do registrador como
agentes de segurança jurídica.
Ao deslocar competências do Judiciário para a via
extrajudicial, o legislador reconhece a confiança social depositada na fé
pública. Caberá aos cartórios absorver esse protagonismo sem comprometer a
solidez que é sua marca histórica.
Mais que nunca, o futuro do Direito Notarial e
Registral dependerá de um equilíbrio fino: inovar sem perder a segurança,
ampliar a autonomia da vontade sem abrir brechas à fraude, e modernizar
procedimentos sem excluir o cidadão comum.
Fonte: Migalhas