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Vítimas da chacina de Acari terão seus registros de óbito alterados por ato do CNJ
O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou nesta terça-feira (16/9), durante a
12.ª Sessão Ordinária, proposta normativa que determina aos cartórios de
registro civil a emissão e retificação dos assentos de óbito dos 11 jovens
desaparecidos na chamada Chacina de Acari, ocorrida em 1990, no Rio de Janeiro.
A medida atende à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) no caso Leite de Souza Vs Brasil, que reconheceu a responsabilidade do
Estado brasileiro por graves violações cometidas na investigação do caso.
A
sessão contou com a presença de irmãs, irmãos, filhos, tio, mães e pais dos
jovens desaparecidos.
O Ato Normativo n.
0006629-43.2025.2.00.0000 estabelece
que as certidões de óbito deverão conter: como causa da morte, “não natural,
violenta, causada por agente do Estado brasileiro no contexto do
desaparecimento forçado das vítimas da Chacina de Acari”; como local do crime,
“Magé”; a anotação remissiva à sentença da CIDH e à Lei Estadual n. 9.753/2022, que prevê reparação financeira às
famílias; e que sejam gratuitos, com ressarcimento aos registradores por meio
de fundos próprios, evitando custos adicionais às famílias. “Trata-se de medida
necessária ao amadurecimento de uma Justiça que valoriza a memória, a verdade e
a reparação das graves violações de direitos humanos”, disse o relator do voto,
ministro Mauro Campbell Marques, corregedor nacional de Justiça.
Durante
o julgamento, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro
Luis Roberto Barroso, pediu desculpas em nome do Estado brasileiro aos parentes
das vítimas da chacina. “Esse é um momento simbólico muito importante, mas é um
momento em que o Estado brasileiro pede desculpas às vítimas dessa violência,
lamenta que não tenha sido possível evitá-la e que não seja possível repará-la
inteiramente”, afirmou Barroso.
Direitos
assegurados
A
certidão de óbito com os dados corretos permitirá aos familiares conseguirem
acessar a indenização prevista pela Lei Estadual n. 9.753/2022. A norma do CNJ
também permite que os familiares não precisem entrar com ações judiciais para
obter ou corrigir os registros. A resolução estabelece um fluxo administrativo
padronizado, com base nas informações consolidadas pelo Ministério dos Direitos
Humanos e da Cidadania, e busca evitar a revitimização dos familiares, que não
precisarão ingressar com ações judiciais individuais para obter os documentos.
O
corregedor nacional de Justiça ressaltou a importância de as especificações
sobre a morte constarem nas certidões de óbito. Ele reforçou que as informações
não são meros detalhes formais. “Elas constituem medidas de satisfação e de não
repetição. Oficializam a verdade dos fatos, reconhecidos internacionalmente, e
conferem aos registros públicos a função de preservar a memória histórica, tal
como já se fez em casos como o do jornalista Vladimir Herzog, cuja retificação
do assento de óbito foi um marco na luta pela verdade e justiça no país”, disse
em seu voto.
Desaparecidos
Trinta
e cinco anos depois do desaparecimento dos 11 jovens, nenhum corpo foi
encontrado e ninguém foi responsabilizado. A presidente da Associação de Mães
de Acari, Aline Leite de Souza, destacou que esse é o primeiro caso brasileiro
de desaparecimento forçado ocorrido após a redemocratização do país no âmbito
da Corte Interamericana. “Que bom que temos ainda duas mães hoje, vivas, e que
puderam aguardar e receber a certidão de óbito de seu filho, porque é muito
duro para uma mãe saber que seu filho desapareceu forçadamente por um agente do
Estado e não ter sequer uma certidão para ter em mãos”.
A
Lei Estadual n. 9.753/2022 foi sancionada três décadas depois do crime,
prevendo reparação financeira às famílias das vítimas. No entanto, era preciso
que os cartórios emitissem as certidões de óbito, incluindo informações
específicas, para garantir o acesso das famílias aos seus direitos.
Conheça
o caso
Em
julho de 1990, onze jovens desapareceram após serem sequestrados por homens
encapuzados na Favela de Acari, zona norte do Rio de Janeiro. Os autores,
segundo investigações, integravam um grupo de extermínio, que contaria com
integrantes de policiais militares, conhecido como Cavalos Corredores.
Desde
então, Wallace Souza do Nascimento, Hedio Nascimento, Luiz Henrique da Silva
Euzebio, Viviane Rocha da Silva, Cristiane Leite de Souza, Moisés dos Santos
Cruz, Edson de Souza Costa, Luiz Carlos Vasconcellos de Deus, Hoodson Silva de
Oliveira, Rosana de Souza Santos e Antônio Carlos da Silva passaram a
simbolizar uma das mais emblemáticas violações de direitos humanos no país.
Três
anos após o crime, a primeira líder do movimento Mães de Acari, Edimeia da
Silva Euzébio, foi assassinada junto com sua sobrinha na estação de metrô da
Praça Onze. O crime ocorreu pouco depois de Edimeia denunciar a participação de
policiais militares envolvidos em grupos de extermínio nos desaparecimentos.
Rosângela, filha de Edimeia, também esteve presente na cerimônia.
Apesar
de tentativas judiciais, os crimes enfrentaram obstáculos legais, como a
prescrição, e os processos não resultaram em condenações. Em 2024, os policiais
acusados pelos homicídios foram absolvidos.
Para
Alini de Souza, irmã de Wallace de Souza Nascimento, a certidão de óbito é um
consolo. “O documento não apaga a dor de anos de busca por justiça. Ainda
sentimos a tristeza e o vazio em nossas famílias. Estamos dando seguimento à
luta que nossas mães iniciaram com tanta força, com tanta coragem. Com certeza,
a certidão é um consolo”, diz Alini, que tinha 15 anos na época do
desaparecimento forçoso do irmão.
Aos
50 anos, ela diz que guarda na memória o dia em que o irmão foi para o sítio da
avó com os amigos e de lá nunca mais voltou.
Corte
Interamericana
O
caso voltou à pauta institucional após decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos em responsabilizar o Brasil por violações aos direitos à vida,
à liberdade pessoal, à integridade pessoal e de compromissos previstos na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Convenção Interamericana sobre
Desaparecimento Forçado de Pessoas.
“A
Corte reconheceu que o caso é de desaparecimento forçado causado por agentes do
Estado e que ele (o Estado) não investigou como deveria. Dessa forma,
determinou que se faça uma reparação integral e histórica, que vai desde o
pedido de retratação e acompanhamento médico psicológico até medidas de não
repetição pelo Estado e reparações”, explica o advogado da causa, Carlos
Nicodemos.
Entre
as reparações, estão previstos o pagamento de indenizações por danos materiais
e imateriais, a tipificação do desaparecimento forçado no ordenamento jurídico
brasileiro, além de elaboração de estudo sobre a atuação de milícias e grupos
de extermínio no Rio de Janeiro.
Fonte:
CNJ